Vila das mulheres


Conta a lenda que na pequena vila de Santa Luzia só nasciam meninas. As parteiras já saíam de casa para a nobre função levando na sacola panos cor-de-rosa, a fim de envolver as crianças antes de entregá-las às mães. 
O estranho fenômeno vinha se repetindo há alguns anos, despertando a curiosidade, senão a apreensão, das autoridades municipais. 
_ Estou cansado de lavrar nomes femininos lá nos livros do cartório _ reclamava o doutor Fagundes.
_ Se continuarmos nesta toada, logo vou ficar desassistido de peões na Santa Madalena _ concordava o coronel Teodomiro. _ Onde já se viu mulher que derrube touro à unha ou dome cavalos? E olha que os meus homens já estão ficando velhos para a função...
O prefeito ouvia a tudo com ansiedade. Os olhos miúdos ocultos atrás de grossos óculos, as sobrancelhas constantemente sacudidas por tiques nervosos incontroláveis. Tião Saracura só conseguia engalfinhar o pelos da longa barba com os dedos nodosos. Os lábios do velho político ficavam tremendo, uma espuminha de doente dos nervos se formando nos cantos da boca. 
_ Meus amigos, de todas as situações, a minha é a mais grave! Como os senhores sabem, mulheres não podem votar. Ora, quem vai me eleger daqui a alguns anos?
Todos olharam para o prefeito com ar surpreso. Não é possível que um político tão limitado pensasse em reeleição no futuro. 
Mas o fato é que, a despeito de todas as preocupações dos homens, as mulheres continuavam nascendo aos borbotões. Espalhavam-se pelas vielas como praga, de diferentes tamanhos, idades e cores. Quando chegavam aos quinze anos, deparavam-se com outra dificuldade própria da idade: arranjar marido. Como, numa terra sem homens? Os vizinhos de Pedra Alta não pareciam interessados em desposar as luzienses – não faltavam candidatas a esposa em sua terra de origem. Casar com uma pedraltina representava um conforto e uma facilidade. Não era preciso gastar com a própria mudança ou a da noiva.
Dessa forma, Santa Luzia tornou-se uma espécie de versão moderna da Ilha das Amazonas. Diante dos olhos descrentes de coronel Teodomiro, elas começaram a ocupar, sim, posições tradicionalmente masculinas. Pelas fazendas vizinhas à Santa Madalena, onde o pensamento era menos machista, grassavam as peoas tocando gado, ferrando alazões. Logo a taxa de natalidade da vila caiu pelas beiradas, sem homens que fertilizassem os ventres. Mudanças políticas levaram à emancipação das mulheres em cargos públicos e eletivos. 
O passamento de coronel Teodomiro, Tião Saracura, doutor Fagundes e toda uma geração de mandatários abriu caminho de vez para o domínio feminino. A população de machos reduziu-se a uns esparsos grupos de poucas unidades. E desses poucos, parte resolveu fazer as malas e ganhar a estrada, rumo a algum lugar onde ainda se encontrasse quem coçasse o saco, cuspisse no chão e falasse palavrões na venda depois de um gole de pinga. Entrementes, as mulheres que ainda tinham marido continuavam povoando a vila de novas mulheres. Até que foram abandonadas pelos esposos assustados. 
Foi mais ou menos nessa época que a curandeira da vila notou um fato bizarro: todas as mulheres que atingiam a idade das regras começaram a ter seus ciclos ao mesmo tempo. O dia 15 de cada mês passou a ser conhecido como o “dia do recolhimento”, todas as moças do lugar recolhidas em casa, indispostas em cólicas sanguíneas. Nessa data, Santa Luzia tornava-se uma cidade fantasma, salvo por algumas corajosas que ainda se dispunham a caminhar até a padaria ou à igreja – onde, por sinal, não havia mais pároco desde a morte de padre Ludovico. Em menos de ano, a população masculina desapareceu completamente. Os moradores de cidades vizinhas espalharam rapidamente a crença de que Santa Luzia era um lugar amaldiçoado, condenado à extinção, sem homens que renovassem a população local.
Padre Astolfo, de Pedra Alta, afirmou que se tratava de intervenção do diabo, e urgia tomar providências. Deveriam as moradoras todas ser caçadas e queimadas como bruxas, antes que espalhassem a praga para os vilarejos próximos. 
Assustados e crédulos, os homens das redondezas organizaram milícias armadas de revólveres, carabinas e tochas. Rumaram para Santa Luzia na calada da noite.



O que se seguiu foi um espetáculo de brutalidade. Casas incendiadas com as donas dentro, mulheres perseguidas nas ruas como animais, abatidas a tiros ou golpes de facão. Algumas mais voluntariosas ainda tentaram se defender, feriram um ou outro agressor, mas acabaram tombando. Assim transcorreu a noite, de violência em violência.
Ao amanhecer os homens voltaram para casa pela trilha deserta. Ninguém se sentia apaziguado, pelo contrário, o sangue em suas mãos parecia arder inconsolavelmente. 
Já ia longe o grupo de agressores, quando algo se moveu entre os escombros da vila. Uma jovem mãe, com roupas rasgadas e fuligem no rosto, saiu do porão onde tinha se escondido. Nos braços, embrulhado em panos cor-de-rosa, jazia um minúsculo corpo sem vida. Um menino, filho de um caixeiro viajante que passara por ali, nove meses atrás.
_Se eu tivesse tempo, lhe chamaria Romualdo, pensou a mãe, desvairada de dor.

(O link tem informações sobre o voto feminino no Brasil, conquistado a duras penas e aos poucos)

16/07/2009

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