São Cristóvão


Eduardo destrancou o portão de ferro da pequena lan house como de costume, às 8h30 da manhã, o gosto do café ainda na boca, forte e amargo. O lugar na verdade não passa de uma minúscula dependência da casa dele, com uma mesa de bilhar num canto da varanda coberta, três computadores sobre mesinhas dentro da sala apertada. O sol estava alto e forte desde muito antes do modesto comércio ser aberto. A radiação quente acertou o rosto de Eduardo em cheio tão logo ele pisou a calçada de cabeça erguida e braços estendidos num gesto modorrento. 

Seo Raimundo, o vizinho da frente, desejou bom dia, no que foi prontamente correspondido, e não viu mais Eduardo depois que ele voltou para o interior da lan house e começou a varrer o chão. As horas da manhã se seguiram numa rotina sufocante, o calor aumentando. Dois moleques entraram para jogar o ultrapassado "Doom". Logo depois um deles achou que seria mais interessante tomar sorvete na padaria, três quarteirões rua acima. O outro também acabou desistindo de matar zumbis e saiu. Na porta, o menino esbarrou em um rapaz aparentando uns 28 anos que entrava para navegar no orkut.

Eduardo terminou a faxina e foi sentar-se na mesinha onde estava um computador quebrado. Já estava irritado com aquela máquina, mais dava defeito do que funcionava. Mas não tinha dinheiro para trocá-la por outra nova. As aulas de informática que dá nos finais de tarde não são suficientes para custear a manutenção dos computadores. Mas tudo bem, ele não quer se irritar com isso num sábado de manhã. Ficou observando discretamente o cliente que navegava pelo site de relacionamento, quando dois homens entraram e se instalaram perto da mesa de bilhar, na varandinha coberta. 

Os dois eram tão parecidos que um poderia se passar pelo outro facilmente. O ligeiramente mais alto quis saber que diabo de lugar era aquele, bar, casa, loja? Nada disso, explicou Eduardo, é uma lan house. Ficou com a impressão de que o sujeito não tinha a menor ideia do que seria uma lan house. O outro homem, não mais que um centímetro mais baixo que o colega, passava a mão no nariz e olhava nervosamente para fora. Isso deixou Eduardo com uma sensação desagradável. Não demorou para o mais alto mostrar a arma e exigir dinheiro, enquanto o comparsa olhava e olhava para fora, suando.
O cliente do orkut tirou os olhos da tela do computador e, sem se levantar da cadeira, virou-se para a varandinha onde os assaltantes tinham se posicionado, barrando a saída. Sufocado de medo, teve uma daquelas impressões inexplicáveis que só nos afetam em momentos críticos: reparou que o canto da mesa de bilhar perto dos marginais tinha uma pequena e antiga rachadura. Ficou preso àquela louca percepção, como quando um motorista devaneia sobre a sujeirinha no pára-brisa logo depois de destruir o carro contra um poste.
Eduardo não quis acreditar no que acontecia. Levantou-se e mandou os dois saírem, deixem disso, que brincadeira mais sem graça. Esperança vã de que com aquela atitude o problema desaparecesse como fumaça no ar. O primeiro tiro o acertou de raspão no braço. O segundo, no pescoço. Quando ele caía de lado com a força do impacto, foi alvejado entre as costelas. Estava morto quando chegou ao chão. O sangue se espalhou pelo piso recém-varrido. Os dois bandidos saíram correndo sem achar a carteira da vítima com a féria do dia _ cinco reais pagos pelos moleques que jogaram “Doom”, todo dinheiro que encontrariam por ali naquele sábado preguiçoso.
A mãe de Eduardo ouviu os disparos, mas não teve coragem de sair de casa e atravessar o quintal até a lan house, que ficava no mesmo terreno.   Um primo do rapaz foi ver o que tinha acontecido. Encontrou o corpo caído, o cliente que navegava no orkut encolhido embaixo da mesa, tremendo. Dos assassinos, nenhum sinal. 

A polícia foi chamada. Nas casas da rua, ninguém viu coisa alguma. Só um pivete que passava por acaso disse ter visto dois homens saindo da lan house, entrando numa Parati preta e fugindo em alta velocidade. O cliente, entre um gaguejar e outro, conseguiu dizer que os assaltantes pareciam irmãos gêmeos, sem dar nenhum detalhe físico que ajudasse numa identificação.
Patrícia dormia a sesta que antecede o almoço no momento em que os tiros foram disparados. Só acordou longos minutos mais tarde, quando as sirenes das viaturas da polícia militar estrilaram na vizinhança. Seo Raimundo não estava em casa, logo depois de dar bom dia para Eduardo tinha saído para prosear com os colegas de truco e tomar um café no boteco. Quando voltou o circo já estava montado, carros da PM parados de través na rua, uma Blazer do Garra, um Corsinha branco e pequeno da polícia científica. Crianças abandonaram o futebol no campinho próximo e foram bisbilhotar. Moradores saíram do aconchego de suas salas e encararam corajosamente o calor da rua, observando tudo. A imprensa, sempre atenta a qualquer derramamento de sangue, chegou antes do camburão da funerária que levaria o corpo. 

Os parentes próximos não conseguiam dar detalhes sobre o crime, mas contaram a história da vítima. Eduardo morava com a mãe e uma sobrinha de 10 anos. Sustentava as duas com o modesto faturamento da lan house e das aulas de informática. A irmã dele tinha abandonado a filha, juntamente com o pai da menina, quando o casal se envolveu em problemas com a justiça por suspeita de tráfico alguns anos atrás. Talvez o fato do tio ter ficado responsável pela criança tenha sido uma das melhores coisas que poderiam acontecer a ela. Mas tudo acabara, acabara Eduardo, varado de balas. A mãe chorava entre altos gemidos de dor. A sobrinha chorava calada. Lágrimas nos olhos, tremor no queixo, únicos sinais da profunda tristeza que sentia. 

Os vizinhos conversaram com os repórteres. Foram muito simpáticos. Ofereceram água e até refrigerante, aceitos com presteza diante do desértico calor. Eduardo era um homem esforçado, diziam todos no bairro São Cristóvão. Apaixonado por computadores, foi à luta e conseguiu diploma para ministrar curso técnico de informática. Além disso dava conta de gerenciar a minúscula lan house de fundo de quintal.
Patrícia mostrou-se preocupada. O São Cristóvão sempre foi um lugar muito tranquilo, pobre mas digno, só tinha um assalto ou outro em que as vítimas levavam uns sopapos de vez em quando, não passava disso. Uma invasão de residência aqui, uma briga de faca ali... Morte durante assalto, só sabia mesmo daquele caso do Eduardo, coitado. Achava que esse seria o final dos “bons tempos”, em que os assaltantes apenas levavam as coisas mas deixavam a vida. 

O sol dava adeus no horizonte quando chegou o carro do necrotério. Não havia mais nenhum repórter por perto, todos saíram horas antes, apressados para fechar seus textos.
Cena triste, rápida, seca. Entram dois homens carregando um caixão aberto. Saem logo depois com o caixão fechado. PMs observam tudo calados. O carro funerário e as viaturas saem da rua em direção ao IML. Fim.

Uma  lufada de vento arrepia os cabelos da nuca de Patrícia. Deve chover mais à noite, comenta com a vizinha enquanto volta para dentro de casa.
O bairro se prepara para a novela das sete. Amanhã a história de Eduardo vai começar a ser esquecida. A vida continua para os outros moradores do São Cristóvão.

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MC, 7/2/9 - Baseado num fato real, noticiado na abertura do JR Segunda Edição: o assassinato do professor de informática Eduardo Muller, morador do bairro São Cristóvão, periferia de Campinas-SP

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