Elvira Dupiranga

A tarde passava longa e monótona na escolinha da zona rural. O calor e a poeira tornavam o ar sonolento como um gotejar de torneira mal fechada. Era o último período, aula de Organização Social e Política do Brasil, mais conhecida como OSPB.
A professora Sonia olhou para os alunos com ternura e um certo desencanto. Deveria falar sobre a composição do legislativo, mas resolveu mudar tudo para homenagear o aniversariante ilustre:o Hino Nacional.
_ Vocês têm que saber cantar, mas isso não basta. Têm que entender o que estão cantando para ter orgulho do que falam. Já estão na quinta série, pelo amor de Deus.
Recebeu como resposta alguns olhares arregalados de alunos com medo de prova oral. Outros, debochados e preguiçosos, limitaram-se a descansar o queixo sobre a carteira, como que aborrecidos com aquela reprimenda.
_ Vamos ver como vai isso! _ disse a professora Sonia. _ Juquinha, começe você!
Juquinha ficou pálido, suarento e febril. Levantou-se molemente e limpou a garganta. Começou a executar o Hino. Executar mesmo – nem se tivesse um revólver, seria capaz de assassinar os versos com tanta crueldade.
_ “Elvira Dupiranga” as margens “Plásticas”.
_ Pode parar! _ berrou a professora, escandalizada. _ O senhor acha que está certo o que o senhor disse, seo Juquinha?!
O menino, ainda mais pálido que antes, balbuciou algo impossível de entender.
_ Então me explique quem é essa tal de Elvira Dupiranga. E, mais importante que tudo, o que diabos é uma margem plástica. Alguma margem de encadernação? Pelo amor de Deus.
O massacre prosseguiu. “Joaozinho, sua vez”: “. o sol da liberdade em raios ‘fúvios’ “.
“Rosinha”: “.do que a terra mais ‘que a vida’ “.
“Zezinho”: “. és belo, és forte, ‘parte do colosso’ “.
“Lucinha”: “.’Funduras’, ó Brasil, ‘fundão’ da América”.
“Pedrinho”: “.O ‘Lázaro’ que ‘ordenhas’ ‘estirado’.”
Aquela foi demais. A professora ficou com medo de imaginar o que Pedrinho pensava daquela frase e achou melhor interromper a sessão de horrores.
_ Estão dispensados, podem ir embora mais cedo.
Em meio à algazarra das crianças correndo para a estradinha de terra, a Professora Sonia permitiu-se filosofar um pouco.
Sozinha na sala de aula, perguntou-se: o que fazer? Mudar a letra do Hino? Isso não resolveria nada.
Foi para casa convencida: o que precisava mudar não era o Hino. Era a educação. Como quase sempre acontece, o caminho certo é o mais difícil.
(livremente inspirado em sugestão do editor Reberson Ricci, sobre reportagem da EPTV para o Bom Dia São Paulo – ilustração de Marcos Correia)

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