Travessia


Por muito tempo aquela travessia foi adiada. E, no entanto, quando chega finalmente a hora de fazê-la pouco ou nada é como antes, quando a viagem foi planejada nos mínimos detalhes. A ida para a Ilha foi marcada por uma certa melancolia indesejável. O retorno ao continente, agora, só torna mais marcante esse sentimento.
Ao roncar das hélices seguiu-se um leve solavanco da balsa desprendendo-se do cais. Algumas pessoas deixam os carros e vão para a frente da embarcação para apreciar a pequena viagem. O céu se apresenta cinzento e frio, características que são reproduzidas pelas profundas águas do mar. Reginaldo em pé, ao lado do carro, sente-se sozinho. Envolvido numa solidão que é mais profunda do que a ausência de outras pessoas.
Quando idealizou aquela viagem tinha planos de levar uma companhia. Tinha planos de fazer do passeio uma espécie de lua-de-mel atrasada. Tinha sonhos românticos de felicidade de folhetim. De tudo o que foi idealizado, apenas o ato de viajar se confirmou. Diferente o sentido da viagem, o significado do passeio – transformado mais em fuga do que em descanso – e a companhia – inexistente.
A balsa se afasta rumo ao continente. Um retorno necessário, ainda que desagradável. Por sete dias, houve apenas a  ilha. Debaixo dos pés a ilha de pedra. No pensamento, a ilha das lembranças.
Os problemas tiveram acesso negado à ilha de pedra. Acumularam-se na ilha da memória. Ficaram no continente. É ao encontro deles que Reginaldo segue agora, na travessia de volta depois de uma semana longe do mundo.
É bem prosaico o resumo dos problemas. Dívidas, ameaças de demissão no trabalho... nada que surpreenda qualquer um que precise do próprio esforço para sobreviver. E, claro, frustrações sentimentais não poderiam ficar de fora dessa lista de pequenos dramas.
- Vai chover já, já.
Só então Reginaldo notou o funcionário da Dersa a seu lado. Olhava para o céu com ares de especialista, como se só para ele aquele cinza nublado fosse sinal claro de chuva próxima.
“Já está chovendo faz tempo”, pensou Reginaldo, referindo-se não às condições do tempo, mas ao que se passa em sua alma. Olhou para o céu. Ato involuntário. Concordou com o funcionário com um aceno de cabeça e voltou a observar as profundas águas do oceano que corriam para debaixo da balsa.
Já faz algum tempo que tudo o que acontece à sua volta torna-se metáfora para o que ele sente ou pensa. Reginaldo simplesmente não consegue evitar isso. Aconteceu, por exemplo, durante essa semana na ilha. De manhã, a praia apresentava uma calmaria sem ondas no mar e o sol contornava a copa dos coqueiros. À tarde tudo mudava de figura, mar encrespado, nuvens mais pesadas que teimavam em esconder o sol, um frio desconfortável. Dois mundos separados por algumas horas apenas.
O mar encrespado fazia Reginaldo lembrar de Helena. Ela está entre os problemas deixados no continente. Prestes a se tornar sua ex-mulher. Mas é também uma lembrança cara, suave, quente. Incoerente.
Aquela viagem à ilha tinha sido longamente planejada com ela. Isso foi antes dela anunciar que sairia da vida dele. O projeto então pareceu sem sentido como todo o resto, como o próprio casamento. Por isso mesmo, Reginaldo manteve o plano de viagem – só que desacompanhado. Foi sua maneira de fazer um elogio à insensatez... Sua vida de marido, analisada agora sob a ótica do fim, talvez nunca tenha passado disso: uma grande insensatez. Dói admitir, mas as lágrimas que provocou tantas vezes em Helena por motivos dos mais fúteis aos mais graves são provas de que ele nunca foi o que se pode chamar de um bom companheiro.
Não se arrependeu de fazer a viagem. A distância de tudo e a mudança de ares fizeram com que ele encarasse a realidade: que aquela separação foi decidida pela esposa mas causada por ele. Traições, orgulho desmedido, vaidade irritante são apenas alguns dos erros e vícios que Reginaldo coleciona no coração. Saber disso é incômodo. Sempre seria melhor poder posar de vítima das circunstâncias. Saber-se o vilão da história é demais para sua vaidade ferida.
“Já deu, Reginaldo. Conseguiu. Esgotou minha paciência, meu amor, minha fé nesse casamento”. As palavras de Helena martelam como as ondas batendo no casco da balsa. Vão e vêm, sempre vivas, marcantes como se tivessem sido pronunciadas há poucos segundos, indiferentes ao esforço que Reginaldo faz para se convencer de que não importa. 
Helena nunca teve provas, mas desconfiava das infidelidades. Inteligente, observadora. Não precisava muito para somar dois e dois. Havia também a indiferença de Reginaldo. Raramente presente, nunca disposto a ouvir a mulher, partilhar, muito menos agradá-la. Como se a convivência fosse uma obrigação, uma fatalidade a que deviam se sujeitar, os dois – mas sem compromissos mais fortes ou sentimentos mais espontâneos. Com o tempo até o sexo se tornou uma tarefa burocrática.
A mulher não entendia aquela distância. Aquela solidão a dois – sim, é um clichê, mas expressa com perfeição o que acontecia naquela casa. “Ainda bem que eu nunca engravidei”, atirou Helena, no fim do monólogo que marcou a separação. Reginaldo, como sempre fazia quando a esposa ficava contrariada, apenas ouviu. Daquela vez, porém, sentiu que era diferente. Era o fim, algo com que ele não contava. Pensou no que dizer, mas a falta de prática emudeceu sua língua. A ressaca de sensações e pensamentos que o invadiu ficou sem intérprete. O olhar de Helena mostrou resignação com aquele esperado silêncio. Saiu da sala batendo a porta com força.
A balsa deu um tranco que trouxe Reginaldo de volta ao presente. Os motores perderam força com um barulho de latas batendo. A velocidade caiu. Reginaldo olhou em volta e encontrou uma certa apreensão nos olhos do funcionário adivinhador do tempo”.
- O que houve? Perguntou Reginaldo.
- Tenho certeza que não foi nada, respondeu o funcionário afastando-se na direção da cabine de comando. Tudo em sua atitude desmentia suas palavras.
Os outros passageiros estavam agitados e nervosos. Primeiro aquele barulho... agora a balsa parada, bem no meio do caminho, longe demais da ilha ou do continente. Outros funcionários apareceram. O sistema de som da balsa anunciou um “problema técnico”, algo a ver com motores, sistemas de flutuação, “logo será resolvido, mas por uma simples precaução, pedimos a todos que coloquem os coletes salva-vidas que encontram-se nas laterais desta balsa. Ocupantes dos carros, por favor, saiam dos veículos. Fiquem calmos”.
Alguém precisava avisar o comandante que dizer para manter a calma numa hora dessas é a melhor maneira de criar pânico. Lógico que foi o que aconteceu. Os passageiros começaram a se empurrar, houve alguns gritos, os funcionários com dificuldade para tentar manter um mínimo de ordem. Tarefa já definitivamente impossível.
Para piorar tudo, a parte de trás da balsa pareceu afundar lentamente. Aí o caos se instalou de vez. Logo a água começou a invadir a embarcação. Uma sirene de alerta  tocou estridente, misturando-se com os gritos que aumentavam de volume. Mas no meio da histeria generalizada, algo realmente assustou Reginaldo. Seu pensamento voltou-se, não para o que estava acontecendo ali, não para as orientações patéticas dos funcionários da Dersa, nem mesmo para os coletes – haverá suficientes para todo mundo?
O leitor atento já deve fazer uma cara de enfado. Sim, meu amigo, tem razão. Reginaldo pensou em Helena enquanto afivelava o colete contra o peito. De todos os clichês, esse sem dúvida é o mais rasteiro... mas tem em si o valor de ser a expressão da verdade. Dizer outra coisa seria mentir sobre as sensações de Reginaldo... e por que mentir sobre isso? Enfrente-se então esse lugar-comum que é o amor tardio, descoberto à custa de um momento crítico em que o medo da morte deixa de ser apenas um pensamento longínquo para se tornar uma possibilidade concreta.
A água avançava lenta, mas inexoravelmente. Da mesma forma, a percepção tardia do que realmente importava para ele sufocava Reginaldo. Causava raiva, despeito, mágoa, auto-censura... e medo. Medo de morrer ali, de forma tão trágica, e não poder ver de novo a mulher que – agora ele sabe – ama, amou sempre sem saber amar. 
Convenceu-se de que um casamento é o tipo do negócio que depende do imprevisto, do incerto, do incontrolável. Como o encontro que teve com uma tartaruga durante um dos muitos mergulhos que deu na ilha. Improvável encontro. Ela, vindo de sabe-se lá quantas milhas náuticas de distância. Ele também um viajante, talvez não de tão longe. A tartaruga e ele, senhores de suas experiências e distâncias,  encontrando-se numa praia que nem era tão preservada assim... um encontro de segundos, uma coincidência sem limites. Bastava que Reginaldo tivesse se levantado um minuto mais tarde naquela manhã, ou algum predador tivesse cruzado o caminho daquela tartaruga, para que o encontro jamais ocorresse. “Para que eu pudesse apreciar a tartaruga nadando ao meu lado por dois segundos”, pensa Reginaldo enquanto tenta evitar os esbarrões dos passageiros assustados, “é preciso que uma infinidade de fatores combine perfeitamente. É preciso que tudo dê incrivelmente certo. Mas acima de tudo é preciso que o acaso se apresente. É como um casamento feliz. Por mais que se planeje, o resultado depende de coincidências sutis”.
Uma mulher com um bebê no colo esbarra em Reginaldo enquanto corre para a proa. Ele não percebeu a mulher ou o bebê, olhou sem ver.  E prosseguiu navegando em devaneios.
“Vê-la e tentar corrigir o que for possível. Pedir perdão, me humilhar, fazer o que for preciso”, pensava Reginaldo, estranhamente apático diante da tragédia que se desenhava à sua volta. Ele percebeu que daria tudo para escapar se aquele trambolho realmente afundasse, mas não apenas por um instinto de sobrevivência: também, e principalmente, para fazer com que Helena soubesse o que ele realmente sentia.
Reginaldo não se deu conta da aproximação de lanchas de resgate. Nem mesmo olhou para trás quando a água atingiu um dos carros parados nos fundos da balsa arrastando-o para as profundezas e aumentando o pânico dos passageiros. Foi como um autômato que Reginaldo viu o desespero em vários rostos quando as lanchas ficaram lotadas antes da balsa estar completamente vazia. Ele próprio, um dos que não conseguiram lugar.
- Usem as bóias. As bóias, gritava o comandante.
“Se eu não morrer, ainda hoje vou procurá-la”, pensou Reginaldo, alheio a tudo mais.  E, por absurdo que pareça, a ideia de reencontrar Helena fez com que um pequeno sorriso se estampasse em seu rosto, ali, no meio do inferno. Se alguém tivesse condições de notar a expressão de Reginaldo naquele momento, teria certeza absoluta de que se tratava de alguém em estado de choque, ou então um louco contumaz. “Sim, procurar Helena e reconquistá-la”.
Um pouco de luz do sol apareceu em meio às nuvens no céu cinzento desmentindo as previsões de tempo ruim, enquanto a água engolia mais dois carros e avançava com uma calma de serpente.


Indaiatuba, 21/01/2013

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