Vestígios
O
porão da igreja é úmido e empoeirado. Grandes estantes cheias de registros,
notas, livros de batizados e casamentos cobrem as paredes. A historiadora
trabalha numa pequena mesa, iluminada apenas por uma lâmpada de leitura. A luz
do porão, pendurada por um fio, é fraca demais para chegar até ela.
Lúcia está no terceiro de uns
cinquenta lotes de documentos, investigados à nada prodigiosa velocidade de um
lote por ano. Três anos de trabalho, milhares de páginas viradas e reviradas,
nenhum resultado. Apenas a curiosidade de pesquisadora que se transformou em
obsessão.
As
luvas cirúrgicas apresentam manchas amareladas nas digitais, o pó dos papéis há
muito esquecidos. As páginas trazem dezenas de nomes cada uma, pessoas que
viveram na paróquia nos últimos cem, duzentos anos. Registros de diferentes
períodos da história do Brasil. A época em que a Família Real veio para a
colônia, a Regência, o Império, a recém-nascida República, até os dias atuais.
Alguns dirão que seria muito mais
interessante devassar os documentos da Candelária no Rio de Janeiro, ou da
Catedral da Sé em São Paulo. Mas Lúcia não quer os alvos óbvios. Preferiu se
enfiar nesse porão de igreja, nessa antiga cidadezinha de cinco mil habitantes,
nos cafundós de São Paulo. Aqui ela espera reconstituir o modo de vida das
pessoas afastadas dos grandes centros, em períodos cruciais para o país.
Está sozinha na empreitada. Não
conseguiu financiamento da universidade, trabalha nas horas de folga, sem
ninguém para ajudar no levantamento dos papéis. Quer encontrar algum sinal,
indício, vestígio da presença de Negro Budião na cidade. Um homem que pode ser
um símbolo da miscigenação.
O Negro Budião, príncipe na África
antes de virar escravo, foi trazido em navio negreiro para trabalhar nas lavouras
de café. Passou a fazer pequenos serviços na vila como “escravo de ganho”,
resolvia uma questão aqui, ajudava um coronel ali, bajulava sempre que podia.
Foi ganhando uns trocados, guardava tudo. Conquistou a alforria, ninguém sabe
direito como. Dizem que ele próprio a comprou, a peso de ouro. Adquiriu um
pedaço de terra, começou a plantar café, logo adquiriu seus próprios escravos.
Tornou-se rico, um perfeito coronel, não fosse ex-escravo. Nunca foi tratado
como igual pelos poderosos da cidade. Aí começou sua lenda.
Dizem os moradores da cidadezinha
que o Negro Budião teve mais de mil mulheres, de todas as raças. Mesmo não
sendo bonito, nunca teve problemas para conquistá-las aos montes, chegando as
mais afoitas a fazer fila na frente da casa dele. E o ex-escravo não
decepcionava. Bem dotado, viril, fogoso como cavalo bravo, deflorava virgens,
deslumbrava beldades, excitava até as mais velhas. Nunca se casou, mas reza a
tradição que deixou uma legião de filhos pelas cercanias antes de morrer velho
e feliz, cercado de damas no leito de morte.
Nenhum documento prova que ele realmente
existiu, mas a lenda não abandona os pensamentos de Lúcia. Quer encontrar os
descendentes do escravo que virou sinhozinho. Talvez as cidades vizinhas
estejam cheias de tataranetos de Budião, italianos, alemães, índios, até
japoneses – Budião teria deitado com uma oriental, sobrevivente de naufrágio
resgatada por navio negreiro na costa africana e trazida ao novo mundo por
falta de alternativa, muito antes do Kasatu Maru atracar em Santos com os
primeiros imigrantes da Terra do Sol Nascente. Talvez fosse mesmo a pequena
gueixa a primeira japonesa a pisar o solo brasileiro. Lúcia já perdeu o
namorado, a disposição para festas, o sono, tudo para conseguir algum dado
concreto que materialize a existência do Negro Budião, arrancando-o da tradição
mitológica passada de boca a boca, e colocando-o nas páginas da história
oficial. Já há algum tempo, ela ficou meio desesperada ao notar que
simplesmente não consegue desistir. Mexer nos livros do porão é como um vício,
uma cocaína.
Passa
a manhã, a tarde transforma-se em noite, a madrugada aproxima-se rapidamente, e
Lúcia ainda entretida com o trabalho. Envolvida na leitura de um livro de
batizados, não sabe se o relógio de pulso marca minutos ou horas, entregue ao
próprio cansaço. De repente, ouve um barulho na escada que dá acesso ao porão.
Olha para trás e vê um grande vulto negro. O homem caminha lentamente para ela,
completamente nu. A moça não se assusta, estranhamente não acha absurda tal
aparição. Vira-se para ele e espera que se aproxime.
O
negro a toma com mãos fortes, o membro ereto e gigantesco apontando para ela.
Lúcia se vê despida em menos de um segundo. Os cabelos loiros até então presos
se soltam e caem sobre os seios redondos e macios. Ela está envolvida como se o
homem a cercasse por todos os lados, sente seu cheiro forte, a língua dele
sobre a sua, depois sobre seus seios, deslizando até o meio de suas pernas.
Lúcia
joga a cabeça para trás numa contorção de prazer. Há muito tempo não tem sexo.
Fica assim um longo tempo, sentindo a boca do negro explorar sua intimidade.
Tem uma gana descontrolada em retribuir, sentir o gosto dele em sua boca,
guiá-lo no doce caminho para dentro dela. O grito que nasce fundo em sua
garganta brota de seus lábios acompanhado do gozo.
A
pesquisadora acorda molhada de suor, assustada, ainda com o peito arfando do
esforço físico que dispendeu no sonho. Olha em redor, leva um minuto para
entender que continua sozinha no porão da igreja. Sobe as escadas correndo,
atravessa a pequena nave da matriz, sai para a rua. Só então consegue se
acalmar um pouco, olha as estrelas no céu muito aberto, a lua nova ausente, a
brisa noturna refrescando-lhe a pele. Entende que se tornou a nova mulher de
Negro Budião. Pelo menos em sonho.
Mais
calma, Lúcia põe as mãos nos bolsos do guarda-pó branco. Sente algo que não
estava ali. Retira uma folha de papel, desgastada pelo tempo. É uma certidão de
batizado em nome de Casimiro da Conceição, negro escravo, recém-chegado à vila
para trabalhar na fazenda Rio Grande. Casimiro da Conceição é o nome de batismo
de Negro Budião. A jovem historiadora tem um estremecimento. Olha em volta como
quem procura um fantasma na madrugada fria. Desiste de raciocinar, procurar uma
explicação lógica para o que é ilógico. Resolve apenas aceitar o presente.
MC, 21/9/2008
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