Pombal


A casa era velha. Velha era também a dona dela. As madeiras das paredes apresentavam alguns buracos de carunchos, mas mantinham-se caprichosamente pintadas. As telhas de cerâmica, achatadas e largas, espalhavam-se irregularmente num telhado que, embora passasse a impressão de desabar a qualquer momento, era firme e sem goteiras. 
O que marcava a propriedade, porém, não era a casa em si, mas o quintal – e os objetos que lá ficavam, largados pelos cantos. Davam ao lugar um desagradável aspecto de ferro-velho.
Peças de motores mais antigas do que a cidade, gigantescos pneus de trator usados, alguns tijolos há muito tempo esquecidos. E a carcaça de um velho caminhão, enferrujada e de vidros quebrados, mas ainda com o esqueleto dos bancos do motorista e do passageiro. O couro aberto em vários pontos mostrava molas e palha no interior dos assentos. O grande volante continuava no lugar. Não se podia dizer o mesmo dos instrumentos do painel, todos arrancados. Do câmbio, restou a velha e enferrujada alavanca, sem a bola que indica a direção das marchas. 
Dedico tempo à descrição desse resto de veículo, porque ele era a alegria das crianças da rua. Viviam entrando no quintal da velha moradora, sem pedir licença, para brincar na cabine do caminhão traçando longas viagens imaginárias. Ela notava a invasão mas não se importava. Desconfio até que gostava da proximidade dos pequenos.
Mas o recinto mais impressionante daquele lugar era o viveiro. Um grande barracão de madeira de uns dez metros de altura e 20 metros quadrados de área, recheado de um único tipo de ave: a pomba. Centenas, talvez mais de mil delas.
Os emplumados passavam a noite dentro daquele cercado, e  ganhavam a liberdade durante o dia. Voavam alegremente até os telhados mais próximos, especialmente o da Igreja Matriz, o que provocava a ira de frei Marcos, preocupado com estragos nas calhas e telhas. Mais de uma vez o piedoso sacerdote foi flagrado de espingarda em riste, mirando e disparando para o alto, em tentativas nada franciscanas de expulsar os invasores. Vivia reclamando com a dona dos animais. Sem sucesso. Recebia sempre a mesma resposta.
_ Ora, padre, um pouco de paciência. São criaturas de Deus!
_ De Deus coisa nenhuma! Elas têm é parte com o maligno! _ berrava o religioso, vermelho de raiva.
De nada valiam os apelos, argumentos e ameaças de excomunhão. A velha senhora permanecia impassível.  Mantinha a rotina invariável de soltar os pombos de manhã e aguardar o retorno deles no fim da tarde. E eles voltavam, fiéis e dóceis. 
Motivo para o retorno havia. Todos os dias, quando o sol ameaçava se esconder no horizonte, dona Maria (este era o nome da velha – o sobrenome nunca me interessei em perguntar) abria a porta da cozinha. Nunca esqueci o ritual mágico que se seguia e deixava-nos desconcertados.
As pombas se aproximavam por diferentes caminhos. Aterrissavam na pequena escadaria de dois degraus da cozinha e formavam uma barulhenta multidão emplumada. Sem cerimônia seguiam casa adentro murmurando seus arrulhos guturais. Lá, sentada perto da mesa, dona Maria esperava. Logo um pequeno grupo de dez ou doze aves batia as asas e se aproximava da anciã. Uma a uma, as pombas eram alimentadas pelo bico. A mulher pegava a que estava mais perto, dizia algumas palavras carinhosas e dava a ela um grão de milho – um único _ e um gole d’água numa pequena colherinha de mexer café. 
_ É sua vez, Pixainha, chamava ela. E assim fazia centenas de vezes. Azulada, Gorda, Lindeza, Branquinha, todas tinham nomes. A memória daquela pessoa singular certamente já tinha sido apagada em muitos pontos relevantes do passado remoto ou recente. Mas ela nunca se esqueceu do nome de uma única de suas companheiras voadoras. 
_ Você de novo, Violeta? Já recebeu a sua parte e está de papo cheio, sem vergonha. _ A reprimenda era acompanhada de um beijo e um gesto para que a gulosa se afastasse. 
Uma vez, durante o lento processo, tomei coragem e fui sentar-me ao lado de dona Maria. Não pude deixar de reparar na sujeira sobre o chão, penas e ciscos deixados pelas pombas. O próprio ar era denso, impregnado de uma espécie de poeira esbranquiçada que se desprendia das asas daqueles animais e se espalhava por toda parte. 
Dona Maria pareceu satisfeita com uma companhia que não tivesse asas. Sorriu com o canto dos lábios finíssimos. 
_ Como a senhora sabe quem é quem? _ animei-me a perguntar. Para mim eram todas rigorosamente iguais, salvo uma ou outra variação das penas, mas sempre variações sobre o mesmo tema; uma branca da cabeça azul, outra azul da cabeça branca, outra da cabeça preta e corpo azul, outra totalmente branca. 
_ Ora, mas elas são completamente diferentes! _ respondia a velha. _ Olha esse detalhe no bico da Crisália. E a Filomena tem asas menores do que a Rosinha, apesar das duas terem a mesma cor cinzenta.
Olhos especializados de ornitólogo não identificariam as declamadas diferenças, tão evidentes para aquela senhora que mal enxergava. 
Assim passavam-se os dias naquela rua sem saída ladeada de pinheiros. O clima frequentemente ameno, de vez em quando mais quente, quase sempre frio, deixava a cidade menos tropical do que o resto do país. As aves voando, a mulher cuidando delas desde que ficara viúva sem ninguém mais para cuidar. Sem filhos, que nunca os teve. Sem amigos, sem ninguém. Só as pombas e os moleques curiosos, eu entre eles.
Uma manhã, aquela rotina foi quebrada. O barracão não foi aberto à hora costumeira. Alguns pombinhos mais novos, recém-nascidos e dependentes do trato pessoal da velha, começaram a se agitar no cercado. 
O sol foi subindo rapidamente. As aves mais frágeis jaziam mortas no solo do viveiro, talvez de fome ou sede. Mas não era isso, não podia ser. Só algumas horas de atraso na refeição não eram suficientes para aquela pequena tragédia.
O povo da rua desconfiou que algo estava muito errado. Em décadas de  vizinhança, nunca deixaram de ver dona Maria alegremente desperta na frente de casa depois das 7 da manhã. Já eram quase 11, algo estava errado. 
Resolveram bater na porta. Muita insistência, nenhuma resposta. Isabel, moradora mais próxima, achou que era hora de fazer alguma coisa. Foi até a janela do quarto. Forçou um pouco. Trancada. Forçou mais. As folhas de madeira rangeram e cederam.  Um grito seco se seguiu, de desespero.
_ Coitada! Coitada! _ dizia Isabel, sem força para explicar coisa nenhuma. Arrastaram-na para longe da janela que ela arranhava com as unhas em convulsão. Alguém mais olhou para dentro rapidamente, virou-se para o resto de nós, sentenciou:
_ Está morta.
O rabecão foi chamado, a polícia também. Uma alma piedosa lembrou-se das pombas presas no viveiro, muitas outras já tinham morrido de fome cobrindo o chão do barraco com seus corpos emplumados. 
Abriu-se a porta e seguiu-se uma revoada. As pombas que sobraram saíram rápido, mas n ão para a tradicional viagem pela cidade. Todas se dirigiram para o telhado da velha casa de dona Maria. Pousaram sobre as telhas, batendo as asas insistentemente. Pareciam querer levar casa e moradora para o céu. Algumas conseguiram mesmo tirar as telhas do lugar. Assim ficaram numa cena aterradora até que o rabecão chegou e o corpo foi retirado. 
Um filete de sangue seco na boca da mulher indicava a causa da morte: mal dos pulmões. Não deixava de ser irônico numa cidade de ar tão puro. 
Anos passados, sumiu-se o esqueleto da casa. Primeiro o telhado, depois as paredes, finalmente o piso de tacos. Tudo desapareceu. Os tijolos, os pneus velhos, o barracão das pombas. O velho caminhão foi-se sabe Deus para onde, conduzido talvez por um motorista invisível. Nem as pombas sobraram. Sem quem as cuidasse tornaram-se selvagens, tentando a sorte pelos telhados da cidade. 
Só restou a lembrança, bem no fundo das cabeças dos meninos que viveram aquilo tudo e hoje são homens feitos. Lembrança que ameaça se apagar de vez em quando, mas sempre volta forte, quando se olha para o parquinho que tomou o lugar da casa onde dona Maria cuidava dos pombos e da vida. Agora é o lugar preferido de outras crianças, espaço cheio de sorrisos e brincadeiras. Nenhum sinal de velharias, nem de caminhões, nem de pombas.

 MC, 18/10/2009

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