Marcela







         O dia amanheceu cinzento na Ospedale della Pietà. A bruma úmida e opressiva não combina com a luminosidade de Veneza. Mas combina perfeitamente com o estado de espírito de Marcela.
         A jovem órfã, mal chegada à puberdade, experimenta sentimentos contraditórios: euforia, tristeza, arrependimento misturado com uma satisfação imoral. Medo da danação, vontade de pecar mais. Só pode mesmo ser pecado o que ela fez com o professor de violino…
         “Ele é padre, pelo amor de Deus! Vou arder no inferno!”, pensa Marcela. Mas nem este pensamento é suficiente para refrear um calafrio de lascívia, que lhe percorre a espinha de alto a baixo. Impossível apagar as sensações, ainda sobre sua pele como estigmas. Impossível apagar as imagens que invadem sua mente. O mestre deitando o violino sobre a mesa na sala de música, caminhando lentamente até ela, afastando-lhe a blusa e beijando-lhe o ombro nu, irradiando desejo. O violino que Marcela apoiava sobre o outro ombro ressentiu-se instantaneamente de uma nota arruinada, a haste a tremer em sua mão, a aula definitivamente interrompida. Depois o padre procurou sua boca. Não encontrou nenhuma resistência. Tampouco o vestido foi obstáculo para as mãos famintas que subiram por suas pernas, em busca de seu sexo já úmido. Estavam naquela entrega hipnótica quando um barulho no corredor tirou Marcela do transe. Meio embriagada, a órfã teve força para repelir aquele desejo que também era dela. Foi há dias, mas parece que aconteceu há alguns segundos.
         Marcela levanta-se bruscamente da cama tentando espantar o fantasma que a acossa. Esfrega a face com as mãos, enrosca os dedos entre os cabelos ainda desgrenhados. Ele está aqui, dentro do quarto, a seu lado, tocando-lhe, beijando-lhe. Evitá-lo é tarefa além de suas forças. Tem sido assim desde a última lição de violino.
         O ato de pentear-se é levado a cabo mecanicamente. Marcela tem consciência apenas de sua beleza morena, os cachos negros envolvendo-lhe o rosto de lábios vermelhos – os lábios que ele beijou – os cabelos descansando sobre os ombros – que foram igualmente beijados. O colo bem feito, os braços macios, as coxas grossas, tocadas com tanta luxúria naquela tarde. Marcela sente uma nova onda de sensualidade, admirando-se nua no espelho. O vestir-se é um gesto inconsciente, executado sem qualquer atenção. Ainda no café da manhã permanece com um olhar vazio, mexendo na xícara com a colherinha, distraída. “Hoje ele vem de novo”, rememora. É dia de lição de violino.
         A madre superiora, encarregada do orfanato, aproxima-se com sua obesidade alegre.
         _Bom dia, Marcela. Hoje tens aula de violino, bem sabes.
         _Como poderia esquecer, Madre? _ responde, com mais sinceridade do que a religiosa poderia supor.
         _Um santo, o padre Antonio. É pena a asma tê-lo impedido de celebrar o sacramento da eucaristia. Mas o bom sacerdote encontrou na música outra forma de servir a Deus.
         _Gostas das composições do padre Antonio, Madre?
         _Claro, sou mais moderna do que imaginas, responde rindo a bondosa mulher. _Talvez lhe falte um pouco de sofisticação, mas como escapar de uma melodia tão envolvente?
         Sim, a música de padre Antonio é sedutora como ele. Simples, alegre, sem rebuscamentos eruditos. Transpira jovialidade. Foi ela, a música antes do homem, que conquistou Marcela.
         O dia passou arrastado, o céu cinzento impondo-se à paisagem. A treva impondo-se também sobre a alma de Marcela. Cumpriu suas obrigações, ajudou a cuidar das órfãs mais novas, fez reparos em alguns velhos lençóis, varreu, lavou, buscou no trabalho o abrigo para suas ansiedades. Mas a cada minuto, voltava a presença antecipada de padre Antonio.
         O carrilhão da sala de visitas indicou quatro horas da tarde. O coração de Marcela pulou com cada batida, a boca ficou seca. Momentos depois deparou-se com o vulto elegante dirigindo-se para a sala de música, acompanhado da Madre Superiora. Tentou conter o nervosismo. Tomou o estojo com o violino, e seguiu para lá.
         _Posicione o violino. Vamos começar com a escala, para aquecer, disse o mestre com voz macia, tão logo ficaram sozinhos.
         Marcela ficou surpresa e, mesmo não querendo admitir, desapontada. Então não recebe nem uma palavra afetuosa, nem uma menção à última aula, tão calorosamente interrompida? Começou a escala, mas não conseguiu se concentrar. Quase não foi capaz de tirar qualquer ruído do instrumento.
         _Concentre-se! Exigiu o padre, com voz imperiosa.
         O desapontamento transforma-se em raiva. Com a expressão sombria como o tempo lá fora, Marcela esmera-se na lição. Quando dá por si, está com o mestre a suas costas, reclinado sobre ela, sussurrando:
         _Não é a asma que me impede de ser padre. És tu.
         Marcela foi incapaz de responder qualquer coisa.
         _Minha doença não é tão grave assim. Para dizer a verdade, existe muito de exagero em minhas queixas.
         Silêncio.
         _Não consigo macular o sacramento. Sou um pecador com escrúpulos. Nunca vou exercer o sacerdócio plenamente, embora acredite que o sagrado ministério jamais será tirado de mim. Mas prefiro a vida, Marcela minha amada, prefiro o toque da tua pele a todas as glórias eclesiais!
         Marcela continua sem saber o que responder, envolvida pelo calor daquele hálito másculo em sua nuca, arrepiando-lhe a raiz dos cabelos negros.
         _Componho uma grande obra. Tu és minha musa. É uma composição forte como a Natureza. Chamo-a “As Quatro Estações”.
         A confissão deixou subentendido que o mundo jamais saberia quem era a musa inspiradora de padre Antonio. O escândalo seria demais para ela, para ele, para a sociedade hipócrita de Veneza.
         Ainda em silêncio, a moça levantou-se. Olhos pousados sobre o homem que a idolatra, começou a despir-se lentamente, sem ter plena consciência do que fazia. Logo o volumoso vestido espalhou-se a seus pés. As roupas de baixo foram retiradas com uma suavidade constrangida. Marcela fitou o homem à sua frente, com os olhos verdes muito abertos, um leve arfar do peito excitado. Padre Antonio limitou-se a admirar aquela beleza virgem e adolescente, um olhar deslumbrado, vítreo. Depois de um momento que pareceu longo demais, saiu rapidamente da sala, com as mãos sobre a face. Atrás de si, permaneceu uma atônita Marcela, recompondo-se desajeitadamente.
         Passados alguns dias, a órfã encontrou a Madre Superiora a caminho da capela do orfanato.
         _Então já sabes da novidade?
         _Que novidade, madre?
         _Padre Antonio está chamando a atenção a toda a gente.
         Marcela gelou. Teria ele, num arroubo de loucura, confessado seu amor proibido em praça pública? Com esses artistas, nunca se sabe.
         _Disseram-me que anda pelas ruas, a gesticular, como que empunhando uma batuta, cantarolando “pã pã pã pã” num ritmo inusitado. Parece que foi mordido por animal venenoso, com febres, sem concatenar as idéias.
         _Que terá ocorrido, Madre? _ perguntou Marcela, temerosa.
         _Ora, anda a gritar que a inspiração enfim o visitou. Que vai compor uma obra imortal, que além dos séculos será executada nos grandes teatros e salas de concertos! Pobre homem, um compositor tão talentoso, mas também tão pouco acadêmico...
         A conversa ficou por aí. A Madre indiferente seguiu seu caminho para as orações, Marcela angustiada disfarçou o sofrimento e foi para seu quarto.
         A luminosidade de Veneza voltou com todo seu esplendor nas semanas seguintes. Céu azul, o jardim do orfanato parecendo mais vivo do que nunca. As meninas, esquecidas de suas histórias de amargura e abandono, brincando alegres pelo gramado. Tudo sorria, como se a maldade tivesse se ausentado da terra por um período. Mas uma pessoa não partilhava dessa alegria.
         O professor de violino não mais voltou. A Madre atribuiu as frequentes ausências à suposta demência que teria afetado o músico. Não deu maior importância ao caso. A Marcela, coube a saudade.
         Muitos anos se passaram. A beleza de Marcela prevaleceu sobre o tempo, como se os ponteiros do relógio dessem voltas mais lentas para ela do que para os outros mortais. Casou-se com um generoso e amável comerciante de Viena. Generoso a ponto de relevar sua condição de órfã, defeito grave para os rígidos padrões de uma sociedade de aparências.
A vida dos dois estendeu-se previsível, tranquila. Não faltou amor. Marcela soube corresponder ao sentimento do marido, embora sem a paixão que experimentara certa vez, durante uma aula de violino. A ausência de fervor, porém, não foi impedimento para a chegada dos dois filhos, um casal. A menina com os mesmos olhos verdes e profundos da mãe. O menino, herdeiro de seus cabelos negros e cacheados.
A mulher conheceu os pequenos prazeres e infortúnios próprios da maternidade. As febres, as dores de ouvido, os sorrisos e brincadeiras, as primeiras palavras. Os bebês transformando-se rapidamente em criaturas irrequietas e inteligentes, crescendo a olhos vistos.
As aulas de violino nunca mais foram retomadas, o estojo com o instrumento deixado de recordação para a chorosa Madre Superiora, no dia em que Marcela saiu do orfanato com o futuro marido. Em Viena sua vida cultural limita-se à apreciação da música nos teatros. Numa dessas ocasiões, assistiu à interpretação de uma peça de Vivaldi, numa apresentação restrita, para pequeno público. Enxugou uma lágrima ao final d’As Quatro Estações. O marido, incapaz de imaginar o que se passava, apenas entregou um lenço à mulher, como consolo. “Tão suscetível às artes, assim é minha querida”, considerou em silêncio.
Mãe e esposa, Marcela percebe que é feliz, ainda que convivendo com um fantasma que, vez por outra, a visita em sonhos, ou mesmo durante a vigília. Um fantasma que a chama de musa.
Uma noite, no teatro, a presença do antigo amor tornou-se mais forte, quase física. Marcela e o marido encontraram um amigo, promotor das artes, no intervalo de um espetáculo. A conversação acabou girando em torno da música barroca, discussão sobre artistas consagrados, novos talentos que despontavam. O homem perguntou se o casal conhecia um compositor de pouca expressão, Antonio Vivaldi.
         Marcela ficou muda com a enxurrada de paixão que a invadiu. Ouviu num misto de desespero e dor, a notícia da morte do artista, sem recursos, enterrado em sepultura anônima e simples, pouco distante da miséria. Certamente condenada  ao anonimato também estava sua obra musical, na opinião do mecenas.
         _Muito anti-acadêmico, quase simplório, popular demais, sentenciou.
         _Não foi ele quem compôs uma obra belíssima? Como se chama? Ah, sim, “As Quatro Estações”?_ perguntou Marcela, tentando disfarçar seus sentimentos.
         _Desculpa-me, dessa obra em especial, nunca ouvi falar…Entendes que não dediquei muito do meu tempo à apreciação de Vivaldi.
         Exigiu muita sutileza comunicar ao marido, sem despertar suspeitas, sua vontade de fazer um passeio solitário, logo no dia seguinte. Mais trabalho ainda teve Marcela para descobrir onde estava o túmulo de Vivaldi. No cemitério nenhuma palavra a dizer, nenhuma oração a fazer, apenas o silêncio. O mesmo silêncio daquele dia, muito tempo atrás, quando ela se ofereceu ao amor, no orfanato.
         Cai uma chuva fina de verão. Marcela deixa-se molhar. Pensa no julgamento do amigo no teatro, sobre a música de Vivaldi: “condenada ao anonimato”. De alguma forma, ela sabe que isso não é verdade. Não se trata de despeito. É mais uma intuição vinda de muito longe, longos anos à frente, ou quem sabe, de dentro da alma. No silêncio do cemitério, Marcela parece ouvir a composição que ajudou a criar, “As Quatro Estações” pairando no vento, enchendo de significado a tarde agonizante.

MC, 26/08/2008


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