Retossigmoidoscopia
_ Largue de ser besta, homem.
Vai ficar aí sofrendo com as entranhas em brasa até quando, se a cura é
tão simples?
A lógica do raciocínio do
amigo era imbatível, mas Gervásio resistia. Não podia tolerar a intimidade de
tal exame, remexendo as profundezas de seus intestinos. Ainda se a via de
acesso fosse a boca, ele dopado dormindo sem ver nada, vá lá. Mas qual! Para
ver como estavam as coisas a camerazinha ia entrar pelo outro lado. E sem
direito a anestesia!
_ Sou macho, prefiro
continuar cagando sangue a ter que fazer um exame desses,
"retossimo"... "retossigo"... "retossido"...
_Retossigmoidoscopia! Como
você é ignorante, não sabe nem o nome do exame e está aí se borrando de medo.
_Não é medo, é brio. Sou
macho, vou deixar um qualquer enfiar um canudo no meu rabo? Nessa vida não!
Gervásio ainda não tem 40
anos. Nunca fez exame de próstata, e nem pretende fazê-lo. Menos
ainda esse exame de nome esquisito, retossigmo-qualquer-coisa, em que
uma câmera é introduzida no ânus, exibindo imagens numa telinha. Quando o
cuidado com a saúde tem relação com a sondagem de seu orifício, ele se torna
brutalmente omisso. Mas o sangramento sem dor de que vinha padecendo fez com
que ficasse com medo de "doença feia", um câncer de intestino ou
coisa assim. Relutou o quanto pôde, argumentou, "não tem outro exame menos
invasivo?", mas acabou cedendo.
Na clínica, um médico de
cabelos grisalhos e fala mansa o recebeu. O paciente, que de paciente já se vê
que não tem nada, desconfiou logo daquele jeito macio
do gastroenterologista falar. "É assim mesmo, começam falando
manso e depois entubam a gente", pensou. Gervásio foi para o biombo, tirou
as roupas e colocou um ridículo avental aberto nas costas. Sentiu-se nu com o
ventinho que vinha não sabia de onde e bafejava seus "países baixos".
Notou de relance a famigerada câmera, que logo estaria dentro dele. A seus
olhos assustados, pareceu gigantesca. Exagero causado pelo pavor de que foi
tomado.
Deitou-se numa maca e foi
orientado a virar-se de lado. "O desaforado vai me querer de
ladinho", pensou entre dentes rangendo. Notou que o médico dava instruções
a outra pessoa. Olhou sobre o ombro e viu uma bela enfermeira na sala. Sentiu
tanta vergonha que nem teve coragem de argumentar. "Desaforo, esse
mulherão ver minha bunda desprotegida. Desaforo! Desaforo!".
O exame começou. Gervásio
sentiu um leve desconforto no início. Um par de minutos depois estava
acabado.
_ O senhor está ótimo. Tem só
uma fissura anal, coisa boba. Mude a dieta e não coma pimenta por uns tempos.
"Então era só isso?”,
considerou Gervásio. Lembrou-se dos exames regulares da esposa, principalmente
o tal do papanicolau, incômodo, desagradável. Mas nunca a viu choramingando ou
tentando fugir. E a mamografia? Aquela máquina gelada só pode ter sido
inventada por alguém do sexo masculino. As cólicas menstruais, algum homem
saberá jamais o que é isso? O parto, meu Deus, um ser humano saindo de
dentro de outro...
Gervásio chegou em casa e, sem dizer nada, deu
um carinhoso beijo na esposa. Ela ficou surpresa com a desusada ternura, mas
achou melhor não perguntar nada. Bom seria que a moda pegasse.
MC, 22/2/9
Sobre
o nome...
Por Carlos Santana
O nome, segundo várias
tradições, entre elas a cristã, é a essência do ser. Na Literatura, o nome, em
geral, é indicador da personalidade da personagem. A representação do nome é
arbitrária, isto é, a personagem não pode, mesmo que queira, se desvincular da
simbologia onomástica. Contudo, existem casos em que a personagem consegue
negar a simbologia do nome, mas nunca pode atingir um meio termo. Exemplo: uma
personagem com o nome de Carlos, que significa potente, viril, pode ser um
"maricas" ou mesmo uma pessoa com problemas de impotência. Em outras
palavras, a personagem nega ou confirma a representação do nome.
Gervásio:
impetuoso na lança, potente no combate. O hemorróidico, numa observação menos
atenta, nega a representação de seu nome. Vejamos: Gervásio não se mostra, em
um primeiro momento, potente no combate, ao contrário, se apresenta fraco, com
medo do "inimigo", titubeia ante ao desconhecido: "_ Largue de
ser besta, homem. Vai fica r aí sofrendo com as entranhas em brasa até quando,
se a cura é tão simples?" (CORREIA, 2009).
Entretanto, com uma observância
um pouco mais aprofundada, pode-se perceber que nosso heroi não temia seu
"oponente", apenas não o julgava um adversário à altura (era em
baixo): "_Não é medo, é brio. Sou macho, vou deixar um qualquer enfiar um
canudo no meu rabo? Nessa vida não!" (CORREIA, 2009).
Decide, apesar de
saber que oponente iria fazer uso de golpes baixos, digo, "em baixo",
ir para a batalha e, uma vez no meio da guerra, luta com tanta decisão que a
vitória parece ter sido muito fácil: "Então era só isso? (CORREIA,
2009).
Como pôde ser percebido, um estudo, mesmo simplório, onomástico da
personagem Gervásio mostra que a escolha do nome não poderia ser mais feliz.
Marcos Correia, que ironicamente se diz incompetente para escolher os nomes de
suas personagens, mostra, em Retossigmoidoscopia, que além da capacidade
singular de criar narrativas cotidianas fortes e comoventes, ainda mostra
acerto na escolha dos nomes de suas personagens. Bola dentro!
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