O médico e o monstro

No centro cirúrgico, um cheiro enjoativo de antiséptico. O spot colocado sobre a mesa de cirurgia inunda a sala com uma luz branca e potente. Numa bandeja os instrumentos aguardam o momento de serem usados. A equipe de médicos perde toda a individualidade em suas roupas verdes, toucas e máscaras. Age como um único corpo, afinado e coeso.
Mãos firmes como rocha fazem o bisturi deslizar com a leveza de uma pluma. Não há espaço para o mínimo erro. Toda a operação é como a apresentação de uma orquestra, cada músico ciente do seu papel, cada nota no lugar.
Esse espetáculo de técnica se mantém por horas a fio, sem falhas. No final, o esperado sucesso. Mais uma doença eliminada por mãos seguras como as de um pintor acadêmico.
Mal termina a operação e as mãos hábeis parecem reclamar o merecido descanso. O cirurgião-chefe, capaz de operar por longas horas sem tremer um dedo sequer, dirige-se para a mesa de trabalho e anota uma receita. A transformação é imediata. A mão agarra a caneta com uma gana doentia. Sustenta o frio tubo de metal entre os dedos e esfrega a ponta esferográfica sobre o papel, como se quisesse perfurá-lo.
Rabisca linhas tortas, círculos, ondas, mais linhas tortas numa dança frenética e ininteligível. O resultado final é um borrão indecifrável sobre o papel. Garranchos, nada mais.
Quem observasse a mão nas duas situações não teria dúvidas: caso clássico da síndrome de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. O Médico e o Monstro. A mão delicada, precisa e firme na mesa de cirurgia, torna-se bêbada, errante, furiosa na mesa de escrever. Dupla personalidade.
Essa receita vai exigir um poder sobrenatural de interpretação do farmacêutico da esquina. Alguns até duvidam que ele leia qualquer coisa. Acham os maldosos que o homem da farmácia simplesmente pega o remédio mais próximo e seja o que Deus quiser. Mas, dos males o menor. Se Mr. Hyde se manifestasse na mesa de cirurgia em vez da escrivaninha, o estrago seria muito maior.
(Texto de 16/05/2009. Inspirado em notícia do site da EPTV, sobre o alto índice de garranchos nas receitas de médicos do HC de Ribeirão Preto. Uma homenagem aos meus colegas garrancheiros – Ilustração de Marcos Correia)

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