A dívida




Suzete levantou-se tentando limpar a boca com os dedos, o sêmen espalhado pelos lábios e queixo, os cabelos grudentos do gozo abundante. Entrou no banheiro pestilento, abriu a torneira e mirou-se no espelho trincado. Ainda sentia engulhos sempre que via a própria imagem naquela condição imunda, mesmo não podendo mais se considerar inexperiente.
Na cama, ele se espreguiçava satisfeito, olhos fechados e um sorriso idiota na cara negra. Sem nenhum pudor Suzete deixou claro que estava com pressa. Fazia-se necessário acertar rápido as contas e sair dali. O negro pegou as calças sobre uma cadeira ao lado da cama, mexeu nos bolsos e retirou a carteira.
Ela conferiu as notas descendo as escadas do cortiço miserável. Mais vinte e cinco reais, faltavam ainda mil e quinhentos para ter o suficiente. Guardou o dinheiro num bolso falso da minissaia. Esconderijo precário, mas tinha que servir na falta de um cofre ou banco.
Deitou-se com diversos homens num intervalo de poucos dias, alguns piores do que aquele último. Juntou uma pequena fortuna para os padrões daquele lugar decadente. Não gastava um centavo. A soma iria toda para o pagamento da dívida.
Na rua margeada por fieiras de esgoto o brilho do fim de tarde, misturado com a chuva recém-caída, dava ao gueto um aspecto cinzento e lúgubre. As putas ainda não estavam na calçada. Havia apenas vendedores de balas nos faróis, meninos do tráfico nos becos, carros passando. Os pneus expeliam água empoçada contra os pedestres que protestavam com o dedo em riste e um palavrão na boca.
Suzete cambaleou meio perdida, sem saber direito para onde ir ou o que fazer. Voltar para casa estava fora de cogitação. Não suportaria o olhar acusatório do pai, ainda que ele não dissesse uma palavra sequer. O silêncio algumas vezes é mais cortante do que uma faca. A mãe submissa não faria a menor diferença. Choraria pelos cantos, baixinho, para não contrariar o marido.
Pensando assim chegou à esquina e virou a cabeça para a esquerda. Depois o outro lado. Cismada. Ficou paranóica desde que passou a fazer parte do mundo em que vive Amarildo.
Não poderia imaginar que aquele rapaz sedutor, sempre cercado de garotas bonitas, fosse levá-la para o inferno. Quando ele apareceu na escola Suzete ficou imediatamente fascinada. Um jeito arrogante, uma força no olhar, nem a cicatriz na face direita desfazia o poder de atração que ele exercia sobre os outros. Ela não resistiu ao primeiro convite para uma volta. Menina de colegial, confusa e inexperiente, sentiu-se lisonjeada com a atenção que recebeu. Foi o começo de sua perdição.
Amarildo levou Suzete a lugares onde nem a polícia tem coragem de dar as caras. A primeira bebida fez a cabeça da adolescente dar voltas como uma pipa. Depois vieram outros encontros, outras drogas, carreiras e mais carreiras de excitação. Amarildo parecia um poço dos desejos, pródigo em satisfazê-la de todas as formas.
Na primeira vez que fizeram sexo, a mancha vermelha sobre o lençol vagabundo deixou em Suzete uma sensação de perda irreversível. Mas nem por isso pensou em mudar o rumo das coisas. Melhor imaginar que aquela entrega tinha valido a pena. Era tarde para arrependimentos.
Suzete interrompeu as lembranças ao ouvir um pneu cantando na esquina de baixo. Virou-se rapidamente achando que o pior aconteceria naquele momento. Só respirou de novo quando adolescentes num carro passaram por ela rindo alto e gritando comentários pouco elogiosos sobre sua condição de puta.
A noite caiu e, com ela, mais uma garoa fina e gelada. A garota se viu na frente do bar onde o Paraíso começou a virar Purgatório.
Amarildo esteve com ela naquele endereço, uma semana atrás. Uma semana separando a vida dela em duas. Tudo parecia tão bem naquela época! Suzete imaginava-se feliz com o homem que amava, apesar da ruptura com o pai intransigente que a expulsou de casa. Aquele velho retrógrado não havia suportado os novos hábitos e companhias da filha. Encontrou desculpas para lavar as mãos sobre ela. “Tanto melhor”, imaginou Suzete naquele dia. Amarildo atenderia a todas as suas necessidades.
Estavam no bar quando três sujeitos entraram empurrando cadeiras e mesas. Amarildo ficou pálido, ensaiou um sorriso nervoso, tentou parecer simpático. Foi atingido em plena cara por uma garrafa de cerveja. Suzete ficou paralisada de terror quando o sangue dele respingou em sua pele. Dois dos agressores voaram sobre Amarildo e cobriram-lhe o corpo com socos e pontapés até deixá-lo desacordado. O terceiro homem ordenou que os outros o levassem para fora, olhou em redor e saiu sem dizer nada.
Quando Suzete finalmente conseguiu se mexer, correu até a porta a tempo de ver Amarildo sendo jogado no porta-malas de um carro que saiu em alta velocidade. 
Testemunhas da cena contaram a ela o que estava acontecendo. Amarildo devia dinheiro para aquele sujeito assustador, conhecido de todos pelo apelido que escolheu para dominar o tráfico na área: Corvo. Sanguinário como uma ave carniçeira, incapaz de qualquer sentimento que não o ódio. O balconista do bar deu Amarildo por morto, sem escapatória. Nem adiantava procurar a polícia.
            Mas Suzete recusou-se a acreditar naquilo. Ela havia jogado tudo fora por aquele homem. Saiu da escola, saiu de casa, abandonou a vida tranquila e confortável que levava. Tinha ido longe demais para voltar atrás. No fundo Suzete sabia que o que motivava aquela esperança vazia na salvação do namorado era menos amor, e mais o medo de admitir um erro. Seria feliz, custasse o que custasse, e com Amarildo a seu lado. Esfregaria o próprio sucesso na cara do pai, dos antigos colegas de classe, dos professores.
 “Fala para o Corvo que eu pago ele”, disse ao rapaz do balcão. “Sei que você tem como encontrar o cara. É só dar o recado”.
Suzete cortou novamente o fluxo de lembranças. Entrou no bar mais uma vez, atrás de alguma notícia de Amarildo, alguma resposta do Corvo. Teve que sair logo, enxotada como um cachorro pelo balconista irritado. Se ainda soubesse chorar, talvez encontrasse algum alívio. Mas a droga já havia destruído em seus nervos estas sutilezas que separam os humanos dos outros animais.
            Afastou-se para tentar dormir numa praça deserta, num banco molhado da chuva. Suzete injetou a última dose que lhe restava e entrou imediatamente num transe apocalíptico. Queria não acordar mais. A viagem de menos de uma hora pareceu interminável dentro de sua cabeça, emendou-se com sonhos terríveis e calafrios que atravessaram a noite inteira. Quando acordou o sol já brilhava, esquecido da chuva recente.
Andou a passos trôpegos pelas ruas com a cabeça em pedaços e a garganta seca. Revirou o bolso falso da minissaia atrás dos trocados do programa da véspera e notou que tinha sido furtada durante a noite. Todo o dinheiro reunido em uma semana de depravação desapareceu. Um sorriso irônico deformou seus lábios. Repentinamente a dívida do namorado tomou dimensões monstruosas, maiores do que a realidade sugeria. Um fardo impossível de carregar.
Um ruído de pneus cortando o asfalto se fez ouvir, mas dessa vez Suzete não virou a cabeça para observar. Teve uma vaga noção de um carro parando bruscamente a seu lado, um barulho surdo de algo sendo jogado ao chão, novo ruído dos pneus se afastando, um cheiro de combustível queimado.
Suzete olhou para o lado e viu um corpo estendido, desfigurado por incontáveis ferimentos. Uma massa sangrenta que um dia foi uma pessoa.
Ela voltou os olhos para frente e continuou andando, como se nada tivesse acontecido. Alcançou a esquina com um gosto amargo de indiferença na boca. Refletiu um pouco sobre o que fazer: não tinha mais nenhuma dívida a saldar, mas ainda assim não encontrava uma gota de esperança no futuro.

FIM

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