Sob o manto sagrado da Fiel
Mateus
foi acordado com sacudidelas no ombro e o som insistente das cornetas. Abriu os
olhos e demorou para se lembrar de onde estava.
_
Chegamos, filho _ disse o pai, com os olhos brilhando de excitação.
O
menino olhou pela janela do ônibus, tomado por uma curiosidade infantil.
Observou altas colunas ornadas com as palavras “Estádio Mario Filho”. Sentiu um
arrepio. Estava diante do poderoso Maracanã, que ele só conhecia pela
televisão.
O
ônibus deu a volta e parou numa bilheteria do estádio. A entrada foi festiva. Os gritos de “Timão” cortavam o ar.
Uma grande massa alvinegra se espalhou pelas catracas, tomou a rua, dominou o
quarteirão. O pai apertava forte a mão do filho, com medo de perdê-lo de vista.
Mateus ergueu os olhos e notou um rubor nas faces dele, uma expressão eufórica.
Sentia-se excitado também. Era a primeira vez que ficava em meio à Fiel. O
cansaço da viagem de quatro horas, em que ele permaneceu torto e espremido numa
poltrona, desapareceu num passe de mágica. Mateus só pensava no que estava por
acontecer.
Dentro
do estádio a rivalidade impregnou o ar. De um lado os vascaínos confiantes. De
outro, os corinthianos igualmente motivados. Mateus não sabia, mas naquele
momento fazia parte de uma multidão de 73 mil pessoas.
A
bola começou a rolar e as unhas do pai foram levadas imediatamente para dentro
da boca. De lá só saíam quando a angústia daquele torcedor fanático explodia
num grito, numa reclamação, num urro de desespero. Mateus imitava os gestos de
seu mestre no amor ao Timão.
Logo
o menino sentiu-se envolvido pela magia que emanava do gramado. Experimentou a
força daquela arena, a nobreza de suas quatro linhas, o poder de sua história.
Por um momento teve a impressão de ver em campo as jogadas cirúrgicas do doutor
Sócrates, tantas vezes narradas pelo pai; o elástico Rivellino fazendo os
zagueiros comerem grama antes de estufar a rede; o preciso Neto
silenciando a torcida flamenguista naquele mesmo cenário...
O
passado e o presente misturados numa enxurrada de adrenalina aumentaram a
importância daquele jogo para Mateus. A tarefa a realizar era gigantesca.
Vencer o Vasco em pleno Maracanã. Mas isso parecia não impressionar o valente
escrete corinthiano.
No tempo
normal o time carioca foi detido. O mesmo se repetiu na disputa do Gol de Ouro.
A decisão seria nos pênaltis. Os corações de Mateus e de seu pai batiam no
mesmo ritmo, afogueados. Batiam junto aos corações de todos os torcedores do
Timão lotando as arquibancadas. O sofrimento iria mais longe do que esperavam,
mas não é sempre assim quando se trata do Corinthians? Lágrimas e suor antes da
glória? A dor valorizando a vitória?
Os
gritos da Fiel não paravam de incentivar os jogadores em campo. Começaram as
cobranças. Rincón tirou urros de alívio da torcida quando a bola que chutou
acertou a trave e foi para a rede. Helton não teve chance.
Romario
descontou vencendo Dida no duelo solitário da penalidade máxima. Os gritos
satisfeitos partiram do outro lado, onde estava a torcida vascaína.
Os
próximos cobradores converteram. Fernando Baiano pelo Corinthians, Alex
Oliveira para o Vasco, Luizão para o Corinthians. Três a dois.
O título
ficou mais perto quando o “Homem de Gelo” se posicionou embaixo do travessão.
Gilberto bateu forte no canto esquerdo. Dida, impassível até o último momento,
venceu a distância que o separava da bola num salto confiante. Defendeu como se
aquilo fosse a mais natural das tarefas.
Edu
fez quatro a dois para o Timão. Viola marcou para o Vasco.
Na
hora da cobrança que poderia render o título, quis a musa caprichosa do futebol
roubar a glória dos pés de Marcelinho. Helton defendeu.
O
momento decisivo coube a Edmundo, pelo Vasco e Dida pelo Corinthians. Lá da
arquibancada, Mateus sentia a eletricidade no ar. Juntou os dedos nas mãos
fechadas com tanta força que o sangue dos braços convergiu todo para as palmas
avermelhadas. Apertou a mão do pai e desejou com toda fé, desejou
como quem já tinha a certeza do final.
No
rosto de Dida nenhuma sombra de emoção, nenhum titubeio, nenhum tremor. Os
ombros relaxados, os braços largados ao longo do corpo, as pernas levemente
abertas. O olhar fixo na bola à sua frente, tão perto e tão longe.
Edmundo
vacilou diante de tamanha realeza. Suas pernas de craque tremeram
inapelavelmente. Chutou para longe do gol. A nação fiel explodiu num grito de
campeão. Mateus, abraçado ao pai, deixou-se levar pela torrente de alegria.
Uma
gigantesca bandeira com as cores do Corinthians cobriu os torcedores
emocionados. Mateus viu-se sob o Manto Sagrado da Fiel. Naquele momento
desapareceram todas as individualidades. Cada um naquela torcida passou a ser
parte de um todo maior, mais forte, mais belo. Coberto assim pela flâmula
alvinegra, Mateus entendeu como é ser um gigante.
Pai
e Filho saíram do Maracanã mais unidos do que nunca. Festejaram no ônibus
durante todo o trajeto de volta a São Paulo. Depois daquela experiência
tornaram-se cúmplices inseparáveis. Mesmo quando Mateus saiu de casa para fazer
o próprio caminho, sempre manteve um ritual sagrado: assistir aos jogos do Corinthians
com o velho. Ocasiões alegres na vitória, sofrivelmente resignadas na derrota.
Oportunidades para “terceiros tempos” de longas conversas sobre tudo, em que
Mateus se valeu da experiência do homem que o criou e recebeu lições para a
vida inteira.
Foi
assim até a morte do pai de Mateus, anos depois daquele histórico jogo no
Maracanã. O velho não chegou a conhecer o neto, um belo e forte menino de
cabelos negros e risada fácil. Mas a criança conhece bem a história do avô por
fotos e relatos em que muitas vezes o Alvinegro Paulista tem presença marcante.
Nas reuniões de família todos os domingos, o menino criou o hábito de ir para o
colo de Mateus e repetir sempre o mesmo pedido:
_
Papai, conta de novo como o vovô te levou para ver o Corinthians ser Campeão do
Mundo!
FIM
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