Saudade

Uma brisa soprou delicada mas insistente sobre as lápides e estátuas do cemitério, arrepiando os visitantes. Eram seis da tarde, hora de fechar os portões. As pessoas formaram filas involuntárias pelos estreitos corredores entre os túmulos. Um certo silêncio respeitoso e saudosista mantinha todos calados no lento caminho rumo à saída. Enquanto andavam, pensavam na vida, pensavam na morte. Menos as crianças, que não pensavam em coisa alguma, preocupadas apenas em correr. Um raio de vida que não combinava com o lugar.
Helena permaneceu de joelhos em frente ao túmulo do marido, enxugando as lágrimas abundantes. Era o primeiro Dia de Finados que ela passava ali. A perda ocorreu há poucos meses, depois de dois anos de um curto mas feliz casamento. Ninguém imaginava que aquela dorzinha de cabeça, da qual o marido poucas vezes reclamava, fosse o primeiro sintoma de um tumor no cérebro. A doença agiu rápida e implacável. No final o homem que Helena amava já não a conhecia, delirava, passava as noites acordado. A morte foi um bálsamo para ele. Ela sabia disso, mas essa certeza não era suficiente para consolá-la. Sofria de saudade a cada dia, hoje ainda mais do que em outras datas. 
Perdida em pensamentos e lágrimas, Helena não se deu conta do anoitecer, nem do fechamento do cemitério. Quando olhou em volta, as sombras já tinham ocultado os nomes escritos nas lápides e os contornos dos túmulos. Assustada, levantou-se e caminhou a passos rápidos na direção dos portões. 
À luz pálida e fria da lua, as estátuas de santos e anjos ficavam ainda mais assustadoras no cemitério. Helena apertou o passo e gelou ao ouvir o triste pio de uma coruja numa árvore próxima. Só pensava em sair logo dali e chegar o mais rápido possível em casa. O medo irracional de assombrações e monstros começou a incomodá-la. Riu nervosamente da própria infantilidade, mas por dentro continuou assustada. Se pelo menos o cemitério não fosse tão grande…
Perto da velha figueira que marcava com seu tronco o jardim central, Helena notou uma claridade vindo de um dos túmulos. Julgou que fosse apenas um maço de velas deixado por algum visitante, mas um leve sussurro chegou a seus ouvidos. Firmou a vista para tentar identificar quem estava ali. Viu um homem, bem vestido, que parecia conversar com a sepultura. Ficou com medo mas a curiosidade foi maior. Interrompeu seu caminho e passou a observar aquele estranho visitante. Será que ele também não percebeu que o cemitério já estava fechado, o horário de visitas encerrado há muito tempo? Ou será ele um fantasma, habitante permanente de uma das covas desse recinto de mortos?
A moça concentrou-se, na intenção de ouvir o que o homem dizia. Parecia contar fatos normais, rotineiros, ocorridos naquele mesmo dia e nos últimos meses, para um interlocutor invisível. Depois sentou-se em um banco próximo, tirou um livro do bolso e começou a ler em voz alta. Helena aproximou-se um pouco, silenciosamente, e colocou-se atrás de um mausoléu, esquecida do medo e dominada pela curiosidade. Intrigada, conseguiu identificar a leitura. Eram versos de Manuel Bandeira, seu poeta favorito: 

“Se não a vejo e o espírito a afigura
Cresce este meu desejo de hora em hora…
Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,
O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora”.

Tão absorta estava Helena em sua contemplação, que levou um grande susto ao sentir a pressão de dedos sobre seu ombro. Não conseguiu conter um grito apavorado. O homem mais adiante interrompeu sua leitura, assustado, e começou a olhar em redor, procurando a autora do barulho. 
Helena virou-se e viu um senhor já de idade, com o indicador entre os lábios pedindo silêncio, uma expressão divertida. Era um dos zeladores do cemitério querendo saber o que ela fazia ali. Mais calma, Helena olhou de novo para o homem bem vestido que lia o poema, antes de responder. Ele já tinha voltado a atenção para o túmulo novamente. Meio sem graça, Helena disse em voz baixa que havia perdido a noção do tempo e tinha sido atraída pela luz das velas até aquele local, onde encontrou o estranho visitante. 
Muito simpático, o zelador fez sinal para que ela o seguisse, e tomaram ambos o rumo da saída. Helena quis saber se ele não chamaria também o homem que ainda lia, absorto. O funcionário explicou-lhe que aquele homem provavelmente passaria a noite toda no cemitério, naquele pequeno banco, conversando com a defunta esposa. Hábito de alguns anos. No começo a direção do cemitério quis impedir, mas depois desistiu por vários motivos: a posição social do homem – parece que é um empresário importante – o fato dele não causar nenhum mal e, claro, as gordas caixinhas que o cavalheiro deixava invariavelmente para todos os funcionários do lugar. 
Helena gostou da sinceridade do ancião e quis saber mais. Por quê o homem ficava ali? Há quanto tempo vinha fazendo isso? Com que frequêcia? Desde que a mulher morreu, há uns dez anos, toda sexta-feira e também no Dia de Finados; o motivo? Nunca se conformou com a perda, nunca se casou de novo, só queria ficar ali relembrando coisas da vida com a esposa, e conversando com ela como se estivesse viva. Helena não pôde conter a piedade e simpatia por tamanha devoção.
Chegou em casa impressionada com aquela história. Seu gato Michel veio enroscar-se em suas pernas como sempre fazia. Ela o pegou no colo e foi para a cozinha abrir uma lata de ração, mas fez isso tudo maquinalmente, o pensamento longe dali. Sua mente continuava presa ao cemitério, imaginando a solidão absurda que aniquilava aquela pessoa, o silêncio e a escuridão como únicas companhias durante sua longa vigília ao lado da esposa morta. 
Ficou pensando nisso durante muito tempo. Às vezes meditava sobre o fato horas seguidas. Em outras ocasiões, quando menos esperava, a lembrança do que vira no dia de finados lhe ocorria de inopino durante uma reunião de trabalho, uma bebida com as amigas, um filme na companhia exclusiva de Michel. Via claramente a cena do livro sendo aberto, a leitura começando, a noite envolvendo tudo. 
Com o tempo a lembrança foi se tornando menos constante, até que desapareceu. Um ano se passou. Helena foi mais uma vez ao cemitério no Dia de Finados. Visitou o túmulo do marido e não conteve as lágrimas ainda doloridas, porém mais tranquilas. Na saída encontrou o velho zelador que a tinha ajudado um ano antes. Cumprimentou-o e lembrou-se do que havia se passado. Perguntou sobre aquele senhor que passava as noites no cemitério. Soube que o hábito continuava imutável… era esperado para aquela mesma noite, como de costume, ao final da tarde. Todas as sextas-feiras o ritual foi mantido durante o ano inteiro, estivesse o tempo bom ou ruim.
O mesmo ocorreu no ano seguinte, e no outro, e no próximo. Sempre que Helena visitava o túmulo do marido no dia de finados, ficava sabendo da rotina um tanto mórbida daquele homem. Ela própria admitia um pouco a contragosto que não era tão diferente dele. Nunca mais se casara, tivera apenas poucos e fortuitos namoricos, mas não se envolvera com mais ninguém desde a morte do marido e, embora não chegasse ao extremo de dormir no cemitério, visitava o lugar com regularidade, todo Dia de Finados. Mantinha-se fiel a uma lembrança.
Um dia, rendeu-se à curiosidade. Que mulher teria sido aquela, capaz de aprisionar a alma de um homem por tanto tempo? Saiu do trabalho uma hora mais cedo e foi ao cemitério, sem saber ao certo o que esperava encontrar. 
Cumprimentou o zelador, que se tornara uma espécie de amigo ou confidente para ela. Dirigiu-se à grande figueira do jardim central e virou à esquerda numa pequena alameda. Deteve-se diante do túmulo frequentado pelo intrigante homem. Leu as inscrições: Isabel Soares, nascimento 20 de abril de 54, morte 12 de dezembro de 93. A lápide ostentava também um crucifixo de metal e um porta-retrato com a foto de uma mulher madura e bela. Helena lembrou-se do primeiro dia em que presenciou a apaixonada homenagem do viúvo àquela mulher, e sentiu uma inesperada saudade do marido – de sua alegria, sua beleza, seu caráter. Ficou assim entregue a pensamentos quando ouviu uma voz que se dirigia a ela:
_Você conhecia Isabel?
Surpreendida, Helena viu o homem diante dela, o viúvo, que a observava com olhos vívidos e interrogativos. Alto, aparentando aproximar-se dos setenta anos. A idade denuciava-se apenas pelos cabelos prateados, o rosto pouco marcado por rugas, o porte elegante. Ficou constrangida, balbuciou uma resposta que mal saiu de sua garganta:
_ Eu… eu… não… na verdade…
  O homem notou o embaraço de Helena:
_Desculpe-me, não queria interromper sua meditação. Eu me afasto para que fique à vontade…
_Não, de jeito nenhum, por favor fique! _ Respondeu Helena quase sem pensar. _ Eu é que incomodo, uma intrusa num lugar que deve ser muito sagrado para o senhor…
_Sagrado? Sim, acho que sim… Sagrada é a lembrança que tenho dela. Mas você não me disse de onde a conhecia… você é um pouco jovem demais para terem sido amigas, não?
Helena viu-se encurralada, mas de repente sentiu uma grande ternura e confiança naquele homem. Resolveu contar-lhe a verdade sobre como ficou sabendo da história dele há alguns anos, como o viu junto ao túmulo da esposa numa ocasião, como nunca mais esqueceu aquilo.
Surpreso a princípio, logo o viúvo sentiu-se invadido em sua privacidade. Conteve a irritação e perguntou secamente que interesse poderia ter uma moça como ela, cheia de vida, na dor de um velho como ele. 
Helena contou um pouco de sua própria história, relatou o fato de que a primeira vez que o viu foi quando passou o primeiro dia de finados sem o marido. Acreditava que a própria dor que sentia ajudou a fixar aquela lembrança, que de certa forma serviu-lhe de consolo na época. 
Apaziguado e comovido, o homem identificou-se com a dor da moça e retomou a atitude amistosa:
_Bem, estamos aqui conversando e ainda não sei seu nome…
_Helena, muito prazer.
_Orlando, o prazer é meu.
Os dois conversaram ainda por algum tempo. Orlando falou-lhe da esposa, de suas virtudes, manias, ternura. Não conseguiu explicar a Helena o motivo de seu ritual, repetido à exaustão desde a morte de Isabel. “Não há lógica para o meu amor”, disse resignado. Descreveu a falecida com tantos detalhes e tanta paixão, que Helena julgou conhecê-la muito bem, de longa data. Um retrato vivo.
Só então deu-se conta de que era sexta-feira, notou o livro no bolso do paletó de Orlando, lembrou-se de que ele passaria a noite ali, lendo para a esposa e conversando com ela. Ficou extremamente amargurada com aquela lembrança, e a amargura traduziu-se num marejar de lágrimas nos seus olhos. Orlando notou a mudança de espírito de Helena e como que adivinhou sua motivação. Ficou um pouco acabrunhado, baixou os olhos meio sem jeito, como quem pede desculpas, e deixou o silêncio imperar por desconfortáveis segundos. 
_Não o incomodo mais. Vou andando _ disse Helena.
_Incômodo nenhum, gostei de conhecê-la _ respondeu Orlando com sinceridade.
Os dois despediram-se com um longo aperto de mão que fez Helena estremecer levemente. Ela afastou-se dali quase a correr, sem olhar para trás mas sentindo os olhos de Orlando sobre ela enquanto partia. 
Depois daquele encontro a obsessão da moça só fez aumentar. Começou a pensar em Orlando de forma insistente e inevitável. Chegou a sonhar com ele, um sonho belo em que se encontravam num lugar muito diferente do cemitério, resplandecente de vida, com árvores, flores, animais silvestres, e continuavam conversando de onde tinham parado. No final Orlando beijava-lhe a boca e ela acordava excitada, suando muito, em pânico. Estaria se apaixonando por um homem tão mais velho que ela? Por que não? Não seria a primeira naquela situação. Lembrou-se do marido morto, mas a lembrança não veio acompanhada de culpa ou sofrimento, veio tranquila como uma brisa marinha. 
Apesar dos sentimentos conturbados, Helena não encontrou Orlando novamente nos meses seguintes. Tampouco voltou ao cemitério. Preferiu evitar aquelas emoções que a assustaram demais. Tentou seguir sua rotina, mas sempre com a angústia de um assunto que ela sabia mal resolvido.
Chegou novamente o Dia de Finados. Helena sentiu um calafrio congelando-lhe o estômago, mas resolveu ir ao cemitério. Ficou junto ao túmulo do marido mas não pensava nele. A percepção de que sua mente a levava até Orlando foi desconcertante. Viu o zelador alguns metros à frente, e não conseguiu conter o impulso de ir até ele. Perguntou sobre o marido de Isabel e teve uma resposta que a esmagou por dentro: Orlando tinha morrido uns dois meses atrás. Morte inesperada e fulminante, coração provavelmente.
Helena ficou parada, olhando para o zelador sem ouvir mais nada do que ele dizia. Não esperava que uma notícia daquelas lhe causasse tanta tristeza. Decidiu ir até o túmulo, onde agora o  devotado viúvo estaria descansando junto da esposa. 
“Que descansando que nada”, pensou Helena, com rancor. “Mania que a gente tem de romantizar a morte. O que está aí enterrado nem de longe é Orlando, é apenas uma carcaça sem vida que vai servir de alimento aos vermes. Ele era tolo, tolo, tolo de ficar aqui venerando o lugar onde a esposa foi enterrada, conversando com um monte de terra, lendo como se ela pudesse ouvi-lo. Velho idiota! Podia ter aproveitado muito mais a vida que lhe restava”. Helena sentiu a morte de Orlando como uma perda pessoal. Ficou inconformada, não conseguiu conter os pensamentos furiosos que a assaltaram, imaginou-se particularmente ofendida como se o desaparecimento daquele homem fosse uma afronta a ela. Acabou com os olhos úmidos como em tantas outras ocasiões desde que se tornou viúva.
 Ela aproximou-se com um vazio no peito. Viu outro porta-retrato ao lado do de Isabel, com a imagem do belo rosto de Orlando, uma expressão de segurança e paz nos olhos sossegados. Estava nesta contemplação quando levou um grande susto, como se estivesse delirando. Ouviu claramente a voz de Orlando:
_Você conhecia meus pais?
Helena virou-se rapidamente numa vertigem. A seu lado, um jovem de traços másculos e bonitos que lembravam os do falecido, talvez com uns 30 anos a menos. Ela precisou recuperar-se do choque para entender que não se tratava de Orlando ressuscitado, mas do filho dele com Isabel.
_Conheci seu pai _ disse depois de um segundo, enxugando as lágrimas _ e, de certa forma, sua mãe também.
Helena imediatamente notou que aquele jovem tinha herdado o olhar bondoso do pai. Sentiu-se envolvida e amparada.
_Muito prazer, meu nome é Roberto.
_Helena _ respondeu ela, dando-lhe a mão.


FIM

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