Poeira do tempo



   As cores da natureza geralmente denunciam os venenos mais poderosos, mas não são menos belas por causa disso. Ninguém rejeita a rosa por causa dos espinhos. Da mesma forma a paixão oprime o peito, mas é acalentada como uma criança. E assim vai o amante, enterrando essa faca no próprio coração com uma alegria insana, masoquista, cheia de medos e dores.
            A experiência de tê-la ao meu lado é fogo e gelo, calmaria e tormenta. Realidade e sonho. Uma incoerência sedutora, uma contradição. Maria é apenas uma colega de escola, em nada diferente de qualquer outra menina. Por quê, então, torna-se especial? O que desperta a paixão? Apesar de todo esse meu entusiasmo infanto-juvenil, sei bem que Maria é apenas Maria, uma menina ainda aprendendo a ser mulher. Mas essa ciência não diminui a força do encantamento que Maria provoca.
            Mal larguei os carrinhos e a bola, tenho que aprender a lidar com esse novo brinquedo, o sentimento que revira minhas idéias, projeta imagens em minha cabeça. A menina até então destituída de atributos especiais torna-se central e periférica, ausente e onipresente. Inalcançável, mesmo a meu lado, mesmo dentro de mim. Quando longe, lembrada. Quando perto, admirada, escravizadora de meus sentidos.
Não tenho com quem dividir esta aflição terrível , terrível e que me é tão cara! Quem dera pelo menos a certeza da retribuição afagasse meu ego, sossegasse meu peito! Tenho nas minhas as mãos de Maria, sinto sobre os lábios sua boca infantil, já ouvi dela a palavra amor repetidas vezes. Nada disso é suficiente para me apaziguar.
            Não se trata de desconfiança, acredito na sua sinceridade. Ou, antes, acredito que ela acredita na própria devoção ao meu amor. Vem de algum lugar além do ciúme e do medo, este irremediável aniquilamento. Dor quase física, que macula minha felicidade quando estou ao lado dela. É uma inquietação irracional, injustificada. Os gritos da lógica são ineficazes contra esse fantasma que me massacra.
            É a necessidade infantil da posse. Quero tomar a namorada pela mão e levá-la para casa ao final do dia. Guardá-la com carinho no meu baú de brinquedos, depois de me cansar de admirá-la à luz do abajur, junto à cama. Preservá-la dos olhares gulosos dos outros meninos. Dar a ela, como motivo para viver, a contemplação do meu amor traduzido em atos. Cercá-la de agrados e protegê-la a cada dia, a cada hora. E, acima de tudo, impedi-la de se afastar de mim.
            Sou ainda muito novo para aceitar que amor é liberdade. Já ouvi falar do amor-dedicação, amor que não pede nada em troca, na missa de domingo, nas cartas de um apóstolo chamado Paulo. Mas isso não se aplica a quem se consome na irracionalidade, experimenta a paixão assim tão nova, inédita, primitiva. Além do mais, nunca soube que o tal Paulo tivesse namorada ou esposa, como ele poderia saber?
            Ali vem Maria sorrindo, iluminando a rua. Aqui vem do fundo do meu estômago a conhecida friagem, angústia misturada à alegria. Vou beijá-la, tomar-lhe a mão, conduzí-la num passeio à pé pela praça – já tenho no bolso o dinheiro para o sorvete, ela adora o de milho verde. E, durante todo o tempo, todo esse longo pedaço de paraíso que me espera, vou saborear um pouco do meu inferno interior, essa insatisfação tirada da perfeição, esse amargor no final da doçura. Não sei nem como expressar todos esses pensamentos que me oprimem pelo espaço de um minuto, enquanto vejo Maria se aproximar. Não falo, não confesso, não compartilho o turbilhão de sentimentos. E sem o poder da palavra, minha loucura existe um pouco menos. Um dia vai se tornar apenas poeira do tempo.

MC, 7/08/2008


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