O vampiro banguela






            O fim da tarde chegou mais cedo, como sempre acontece quando a rua está divertida. Hora de ir para casa, tomar banho, fazer a lição. Contrariado, Vandeco atendia ao chamado da mãe. Consolo, para ele, era o fato de que caminhava com o bolso da bermuda repleto de figurinhas confiscadas no jogo do bafo e a bolsa abarrotada com o que ganhou dos colegas, derrotados na disputa de bolinhas de gude.
            _ Vanderlei, vem tomar banho, menino! _ Chamou de novo a impaciente mãe, diante da lentidão do outro.
            Ele chegou com a roupa marrom de tanta poeira, a cara como uma máscara de barro, um sorriso largo na boca.
            _ Já não falei para tomar cuidado com a roupa, moleque? Ai, vai dar um trabalhão lavar essa sujeira toda!
            _ Desculpa, mãe, foi sem querer _ respondeu Vandeco, com medo de umas palmadas.
            _ Olha só Agenor, o jeito como seu filho chega em casa!
            O pai olhou, teve que se esforçar muito para esconder o riso, e tentou parecer severo:
            _ Ah, moleque peralta! _ falou com voz firme, mas assim que a esposa olhou para outro lado, fez um carinho nos cabelos do filho.
            










Depois do banho e da janta, lição de casa pronta, a família toda foi para a sala. Era sexta-feira, dia de assistir a filme de terror. Vandeco herdou essa mania dos pais que sempre gostaram do Zé do Caixão, embora os filmes do cineasta não pudessem ser exibidos ao menino de 11 anos. Mas histórias que não evocavam tanto sexo eram bem-vindas, ainda que tivessem sua dose de sangue. As sessões domésticas de cinema tornaram-se um hábito para Vandeco, que acabou influenciando os colegas a fazerem o mesmo. Às segundas-feiras, na fila de entrada da escola, costumam conversar sobre os filmes que assistiram, cada um tentando ser mais assustador que o outro. Todos omitem, claro, os momentos de pânico que vivenciaram, em que os olhos foram cobertos com as
mãos trêmulas, a curiosidade vencendo o medo e levando os garotos a espiar por entre os dedos o que acontecia na tela.
            Naquela sexta, o filme foi especial. Nome esquisito, “Nosferatu”. Filme antigo passado no video cassete novo, comprado a prestação nas Casas Bahia. Vandeco achou graça no início, aqueles personagens falando sem a voz sair, os movimentos rápidos e dramáticos. Parou de rir quando Nosferatu apareceu na tela. Com a cabeça no colo do pai e os pés sobre as pernas da mãe, fechou os olhos e passou a assistir à fita pelas pequenas frestas das pálpebras, quase totalmente cerradas.
            _ Vai fechar o portão do quintal para o pai, Vanderlei. _ O pedido foi feito logo que o filme acabou; noite alta, medo no estômago. Vandeco pegou uma lanterna, atravessou o pequeno pomar olhando para os lados, fechou o portão e voltou correndo para casa. Imaginava a cada passo que um vampiro pularia do pé de jaca diretamente sobre o pescoço dele. Só relaxou debaixo dos cobertores, na cama.
            O sábado amanheceu belo e luminoso, com o sol perfeito encabeçando a natureza. Vandeco pegou a bola de capotão e foi se encontrar com os amigos no campinho. Quando chegou, Fabio e Marcelo já estavam lá. Gustavo apareceu logo depois. Jogaram muito, como se o mundo fosse acabar. Só interromperam a brincadeira para um rápido almoço, e logo voltaram ao futebol. Fôlego de menino.
            No meio da tarde, cansados da bola, resolveram atravessar o córrego Fundo e ir até o pomar de seu Joaquim. Todos os garotos tinham pomares em casa, mas fruta roubada é mais saborosa. Passaram pela estreita pinguela que corta o córrego, tomaram a trilha de terra que margeia os trilhos da estrada de ferro e caminharam por mais de hora. Uma caminhada cheia de brincadeiras.
            Pularam a cerca da propriedade de seu Joaquim e comeram com gula. Chuparam laranjas, destroçaram goiabas e se deleitaram embaixo da mangueira. O banquete deu sede, e todos correram até o arroio que passava pelo fundo do sítio, água cristalina. Beberam, deitaram-se na grama, dormiram todos embalados pelos raios do sol.
            Vandeco acordou logo depois com o estampido de um trovão. Demorou um segundo até notar que o tempo havia mudado drasticamente. Sacudiu Gustavo enquanto Fabio e Marcelo levantavam-se assustados. O dia virou noite de tão escuro, o céu transformado numa massa cinzenta de nuvens tempestuosas.
            Aos trovões, seguiram-se relâmpagos ameaçadores. Os meninos não tinham medo de tempestade – quando estavam na segurança de suas casas. Mas ali, em campo aberto, o pânico se instalou. Marcelo foi o primeiro a gritar para se fazer ouvir sob o ruído dos trovões:
            _ Vamos embora, que não é bom ficar embaixo de árvore durante tempestade. Lembram do Vicentinho? Morreu “elecutado”… “eletrocado”… morreu de choque quando um raio caiu na árvore onde ele estava escondido.
            Apesar do tropeço na palavra pouco usual, ninguém discordou do colega. Começaram a correr pelo caminho de volta. Estavam tão longe de casa! Mas era preciso sair dali. Quando alcançaram os trilhos, uma gota do tamanho de uma uva caiu na testa de Vandeco.
            _ Vai chover, minha gente!
            O aguaceiro despencou de repente, uma cachoeira impenetrável. A água e o escuro tornavam difícil visualizar o caminho. Apenas os trilhos ali perto serviam de guia.
            Um relâmpago no meio do caos iluminou uma pequena casa de alvenaria, na beira da estrada de ferro. Os meninos encharcados e trêmulos entreolharam-se e concordaram que deviam se abrigar ali até o tempo melhorar.
            _ Ó de casa, deixa a gente entrar! _ gritou Vandeco.
            Não houve resposta. A pesada porta de madeira apenas se abriu, como que impulsionada por mão invisível. Os quatro amigos entraram correndo, cansados e agradecidos.
            _ Deus lhe pague, moço. _ disse Vandeco assim que entrou.
            Logo algumas esquisitices chamaram a atenção de todos. A um canto da pequena sala sem móveis, um punhado de tijolos era iluminado pelo fulgor dos relâmpagos através da janela próxima. Um cheiro de terra envolvia o ambiente, como se uma cova rasa tivesse sido cavada há pouco. Nenhuma lâmpada ou vela permitia enxergar muito bem o local, mas os garotos perceberam que havia alguém mais na sala.
            Eles começaram a ficar assustados.
            _ Estou com uma fome…
A voz surpreendente do morador daquele lugar quebrou o ritmo desconcertante dos trovões. Uma voz cavernosa e desagradável, como que saída do túmulo, capaz de tornar aquelas palavras estranhamente ameaçadoras. O vulto saiu das sombras e deu dois passos bruscos na direção dos meninos.
            O sangue congelou nas veias dos quatro desventurados. Um relâmpago mais violento jogou um facho insistente de luz sobre a estranha figura. Ninguém acreditou no que viu.
            Um homem usando chapéu de couro com abas caídas e capa de chuva, revelava entre cabelos desgrenhados um par de proeminentes orelhas. Tão salientes que se destacavam dos cabelos e até da aba do chapéu. Os olhos tinham um tom avermelhado, sobrenatural, o rosto hediondo, marcado por rugas e sulcos. O homem abriu a boca num monstruoso sorriso. Entre o vazio dos lábios, despontaram dois enormes e brancos caninos.
            _ Vampiro! _ Gritou Vandeco. Foi o sinal de largada para uma frenética corrida rumo à porta, de lá para a estrada e dali à vila. Ainda tiveram tempo de ouvir um tremendo urro que parecia brotar da garganta de algum prisioneiro do inferno. Ninguém teve coragem de olhar para trás.
            Dentro da casa, a estranha criatura observou a corrida dos quatro meninos com expressão surpresa. Foi até o embornal, perto de onde os visitantes estavam um segundo atrás, abriu-o e pegou um pedaço de pão. Destampou uma garrafa de pinga e tomou mais um gole, emprestando ainda mais vermelhidão aos olhos embriagados. Sorriu com a boca banguela, em que restavam apenas dois solitários caninos.
            _ Cada louco que me aparece! _ pensou, antes de voltar para o seu canto e tentar dormir. No dia seguinte teria que continuar desmanchando a casa para aproveitar os tijolos em sua nova moradia, perto do arroio. Muito trabalho para transportar tudo no lombo do jumento, que zurrava como um prisioneiro do inferno nos fundos do casebre, assustado com a tempestade.






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