Uma história improvável





“Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais,
 é só a fazer outras maiores perguntas.”

João Guimarães Rosa
Grande Sertão: Veredas



Chovia forte no telhado do rancho naquela noite inesquecível. Sozinho no meio do mato, enrolado nas cobertas e exposto ao fogo da lareira, tinha para mim que o barulho era quase uma canção de ninar. Pelo que dava prazer imaginar as grossas gotas rebentando nas telhas, e a fúria dos elementos incapaz de me atingir. Aconchego.
A caça da tarde tinha sido farta. As presas secavam num canto do ranchinho, esperando o devido preparo. Ficar ali com a espingarda e uma caixa de balas, ao sabor do tempo, limpava a cabeça de todas as más ideias. Antes assim viver, tempo todo, não só vez em quando.
O sono veio chegando ali no meio da floresta de castanheiras. O barulho das gotas, o silêncio em volta, o chiar de um e outro trovão distante. Depois o silêncio de novo.
Fui acordado a pronto pelo ruído de um esmurrar na porta da frente. Pensei ser o vento. O barulho insistiu. A um tempo levantei da cama e peguei o trabuco. Bicho ou gente mal intensionada, não havia de me surpreender.
_ Quem é? _ Gritei.
_ É de paz. _ Disse uma voz.
_ E o que quer?
_ Abrigo! Fui pego pela tempestade, estou perdido nessa mata!
Abri uma fresta de porta, modos de ver a cara do visitante. Estava escuro, aproximei o lampião, divisei um rosto de velho, cabelos brancos, de todo parecendo inofensivo. Abri a porta, entre deus-lhe-pagues do outro.
Ofereci assento perto do fogo, um café requentado. Sentei na poltrona perto da janela, a espingarda atravessada no colo, um olhar sério e fechado na face. O outro, desfeito do ensopado capote, estendia as mãos rumo às chamas tingindo de vermelho as palmas enrugadas.
_ Ah, que já me achava condenado! _ disse finalmente entre tossidas profundas. _ Deus lhe pague, Deus…
Está bom que de Deus já me sabia credor, mas desconfiava do sujeito. Aparecer assim, no meio daquela vastidão de nada? Que fazia perdido por aquelas bandas? Bater num rancho de caça, tarde da noite… história mal contada, ou antes, contada nenhuma história.
_ Pois fale o que faz por aqui. _ Provoquei.
Depois de um silêncio o velho principiou a contar que viajava rumo ao Brejo Fundo, negócios de visitar um filho que tinha por lá. Viajava sozinho, sem montaria nem companhia, afiançado somente na rala lembrança que tinha do trajeto. Acabou que enveredou por uma trilha errada, sabe lá Deus em que ponto, vindo ficar totalmente desamparado no meio das árvores frondosas. Quando começou a tempestade. Milagre de Nosso Senhor achar viv’alma naqueles matos, ainda mais tão caridosa.
Não me engambelei com os elogios, mas também relaxei um pouco o dedo do gatilho. Certo que aquele homem não parecia oferecer qualquer ameaça. Velho, cansado, tossindo o que podia ser o indício de um problema de pulmão. Não devia permanecer muito mais tempo nesse mundo nosso, dos vivos.
Estendi ao visitante um prato com pão e um resto do feijão da janta.
_É o que tenho só, não esperava visita. _ Resmunguei mal humorado.
_ Deus Abençoe! _ Foi a resposta que obtive.
Passados minutos, começou o velho a narrar mais detalhes de sua vida, a começar pelo nome. Gumercindo se chamava. Comerciante de profissão, antigamente. Hoje aposentado e encostado numa casinha de forro baixo e chão batido, lá na Ribeira dos Maltas. Há muito que vive o dia-a-dia só com o suficiente, sem luxos nenhuns, viúvo, sozinho, longe de todos. Filhos criados e grandes, ganharam mundo. Esse um, que vai visitar, o Rafael de Brejo Fundo, seguiu os passos do pai, comerciante também. Dos outros, notícias mais não teve.
E a conversa ferrou noite adentro. Daquele velho emanava uma espécie de friagem, desagradável de sentir. Por mais que ficasse perto das labaredas, não conseguia se aquecer e, de chofre, transmitia aquele frio para mim também. Tremia de leve o coitado, como passarinho caído do ninho ainda muito novo. A voz rouca, regular, hipnótica, agarrava a contar casos passados muitos. Sabido que as pessoas de certa idade acham de contar suas histórias. Maneira de permanecer um pouco mais entre os viventes mesmo depois de mortos e enterrados, por via das memórias dos ouvintes.
Foi quando o homem tomou ares de confissão, abaixou a cabeça e trouxe mais para junto do pescoço a gola da blusa surrada. “Vejo que é homem de bem”, lembro ter ouvido ele começar, “modos que conto minha desgraça, na esperança de achar um ouvinte paciente em vossa senhoria”.
Começou a narrativa de um fato ocorrido muito tempo atrás, muito antes de eu ter nascido, antes mesmo da Represa mudar o relevo das vizinhanças. Tempo em que imperava pela região o fazendeiro Teodorico, grande plantador de cana, dono de incontáveis engenhos de açúcar. O próprio Gumercindo, à época, era pouco mais que um molecote, descobrindo a dureza da vida, bem como os primeiros fogos de amor, as primeiras ternuras, as sutilezas da pele. Trabalhava na roça de cana. Sol a sol no corte da gramínea, sem trégua, sem tempo para estudo de leitura e matemáticas, sem tempo para escola. Vida dura de órfão largado à própria sorte.
Era empregado do Teodorico, como quase todos nessas bandas. O fazendeiro era dono de tudo que se podia ver e além, para trás da linha onde o sol mergulha no fim do dia. Homem poderoso e feroz, senhor de si, tinha palavra tomada como lei. Não havia juiz, delegado, prefeito ou vereador que não abaixasse a cabeça para aquela onipotência. Teodorico, suspeito de grandes crimes sem nunca ter ido a julgamento. Dizem ter mandado matar um lavrador, só porque olhou para a mulher dele. E a mulher dele era muito daquelas que se encontra prazer em olhar. Bonita que só, bonita com a boniteza do Demo, do Coisa-Ruim. “Foi a boniteza dela que me perdeu”, narrou Gumercindo.
_ Estava eu quieto na minha lida diária, quando passou dona Dulce – esse era o nome da mulher de Teodorico - seguida de perto por uma dama de companhia, de nome Esmeralda. Seguiam as duas o rumo da igreja da vila. Mais atrás, montado em armas, jagunço Etevaldo, homem de confiança de Teodorico, que espalmava o olhar por todo canto, à procura de ameaça ou desrespeito para com a mulher do chefe.
“Quando Dulce passou perto do talhão onde eu lidava, nossos olhos se encontraram. Vi a expressão de agrado nos olhos dela, de curiosidade por minha pessoa. Não precisamos trocar palavra, nem poderíamos naquela circunstância, mas na minha mocidade inexperiente soube que ela seria minha. Talvez não naquele dia, nem naquele ano, mas um dia.
“Depois daquele encontro arranjei modo de sempre ficar no caminho de Dulce, todo domingo, quando ela ia para a igreja. Que para nós peões não tinha domingo nem dia santo, era trabalhar como escravo de segunda a segunda, só tendo descanso quando doente ou morto. Eu ficava lá, Dulce passava, nossos olhos se encontravam num acordo mudo. Semana após semana foi assim.
“Até que um dia ela apareceu desacompanhada. Olhou com um olhar cheio de significado e seguiu pela trilha, curva abaixo, desaparecendo. Gelei de medo, de vontade também. Fiz que ia mais a fundo no talhão, me agaxei entre as varetas, escondido nas folhagens, e fui dando a volta ao largo, para chegar de novo na trilha lá embaixo, perto da saída da fazenda já.
“Saí do mato com folha até na orelha, parecia um bicho desses rastejadores. Os cortes daquela vegetação afiada como faca marcavam meu rosto e braços, fieirinhas de sangue. Fiquei à espera porque sabia que na toada em que Dulce seguia, ainda devia de não ter passado ali. O coração foi à boca, naquela espera angustiosa. Mas logo vi a mulher-demo, montada no jumentinho, dobrando a trilha em direção a mim. Fiquei no meio da estrada, nem sei de onde me veio aquela força, apenas que eu queria tirar a limpo aquela história. Se era para ser , que fosse logo, e se eu tivesse que morrer depois, que morresse satisfeito.
“Dulce chegou perto, pude sentir o bafo do jumento. Peguei o arreio, obriguei o animal a estacar. Ia falar alguma coisa que ainda não sabia o quê, quando a mulher apeou. Uma pressa no olhar, uma urgência. Me agarrou pelo braço e me puxou para o meio do canavial. Desacreditei daquilo que estava acontecendo. Quando vi estava deitado nela, nu, cheio de uma gana que compensava a minha ignorância do que fazer. O sangue dos meus cortes abertos pelas folhas, esfreguei com gosto naquele corpo alvo e perfeito. Dulce me conduziu com a mão até onde devia, a intimidade dela já estava quente, em febre. Doce, Dulce, Dulce, doce.
“Passaram horas, fossem minutos. Fogo que não arranjava de extinguir. O hálito dela no meu rosto, parece que até hoje ainda sinto, vivo, arfante. Um buscar no corpo dela aquilo que me faltava. Ouvi a voz engasgada de prazer me dizendo:
“_ Vou ter um filho seu.
“Calei, que aquilo não era uma pergunta nem um oferecimento, era uma afirmativa. Como é que fêmea vem a saber dessas coisas, assim?
“Saímos dali cada um para o seu lado. Ver de novo aquela mulher era prova que não sabia se aguentava. Pedi as contas no mesmo dia, fui-me embora da fazenda. Capataz ainda desconfiou um pouco daquele arroubo, mas deixou por menos, tinha mais no que pensar. Peguei uns trocados a título de salário, sabia que a conta estava errada a favor do proprietário, mas não reclamei. Fui.
“Passados três meses, estava arranjado como servente na mercearia da vila. Vieram notícias das terras de Teodorico. Que a senhora dona mulher dele, dona Dulce, estava de barriga. Se o ‘pai’ tinha gostado da notícia, ninguém sabia ao certo, pois que Teodorico manteve a rotina sem mudança qualquer.
“Tive a certeza brotada da alma que nem cascata, que nem aqueles gáiseres do estranjeiro que cospem água fervente da terra. Era meu, aquele filho. Não havia como não ser. Eu, jovem imberbe, sem ter onde cair se morto, era para ser pai já. Medo e alegria se misturaram no meu peito.
“Mais simples e fácil era esquecer o caso e deixar como estava. Mas não podia. Chame o senhor de instinto paterno, de brio, loucura, coragem, sei lá eu o quê. Tinha que tomar providência.
“Trabalhava e pensava, pensava e trabalhava, não esquecia nem um minuto daquele ser que ainda não existia por completo mas já sendo, a um tempo. Não esquecia também da Dulce, lá nas mãos daquele diabo do Teodorico. Mas, quem eu para fazer qualquer coisa, um zé-ninguém, um trapo de gente.
“Foram-se passando os dias, as semanas, os meses. A angústia amarrando meus passos. Sentia que nunca mais seria homem, se algo não fizesse pelo bem daquela criança. A data do parto se aproximava rapidamente, havia de tomar atitude logo, urgente.
“E que melhor solução do que acabar com a raça do Teodorico, mandar logo ele para os quintos dos infernos, donde pertencia, fazer a criança nascer herdeira de pai morto, toda aquela fortuna. Morte violenta era fim justo para Teodorico, homem ruim da peste. Não restou dúvida, o rumo estava traçado a sangue. Era o que fazer.
“Surrupiei a repetidora do dono da pensão, numa noite fria de inverno. Arma no capricho, bonita e competente. Carregada estava, não havia de perder tempo procurando munição. Sabia dos hábitos do Teodorico, sempre com seguranças armados para cima e para baixo, menos quando ia pescar no Capivari – dentro das terras dele, não havia de imaginar que houvesse macho o bastante para tentar alguma coisa.
“Meia-noite cheguei à beira do rio. Achei ponto mergulhado até pescoço no meio da taboa, os pés enfiados na água gelada. Daquele ponto vislumbrava claro o pesqueiro do anticristo, bem na minha frente. Poucos metros separavam o meu esconderijo do lugar onde Teodorico havia de estar, de pronto. Ali fiquei a noite toda, ouvindo o coachar dos sapos e o piar das corujas, o andar do vento espantando as nuvens, a lua redonda de tão cheia no céu. Agarrei a pensar na vida, na morte, em Dulce, aquela paixão. Pensei em Deus também, aprovaria aquela minha resolução? O diabo com certeza. Restava saber de que lado estaria quem com quem, Deus, o diabo, eu, Teodomiro. Pensares que só faziam aproximar o temor e o medo. Enxotei as ideias de honra e moral e valores que fossem. Era para fazer, faria, acabado.
“Meus pés gelavam naquela espera longa, dentro d’água. Mais do que hoje com essa chuvarada. Mas não arredei. Medo de me mexer e me denunciar. O sol amanheceu tristonho, ou tristonho estava o meu pensamento. Não vinha, o condenado. Devia ter mudado de hábito, deixou a pescaria para outro dia. Ou até deixou de pescar… Mais meia hora espero e depois vou embora. Teodomiro não vem…
“Estava me levantando para tomar o rumo de casa quando ouvi ruído de gravetos estalando para os lados do pesqueiro. Abaixei-me de novo ligeiro, amaldiçoando o leve marulhar da água que provoquei com o movimento brusco. Esperei mais um segundo e logo vi o tal. Vinha tranquilo, com a vara de pesca numa mão e a linchester na outra. Sempre andava armado, sempre, mesmo quando descansava no pesqueiro.
“Não tinha espaço para um erro, não podia imaginar uma segunda chance. O negócio era atirar e de primeira ferir de morte. Esperei o outro se acomodar, fiz pontaria entre as hastes de taboa. Engoli o cuspe que me restava na boca quase seca; prendi a respiração e fiz fogo. Teodomiro caiu de banda um segundo depois do disparo, a barrigona esparramou o que tinha dentro na margem do rio. Não disse um ai, não fechou os olhos, só morreu bem morto.
“Ainda hoje minhas mãos tremem quando lembro disso, senhor veja. Naquele dia, saí correndo de entre as taboas, fiz volta pela mata para evitar trilha e estrada, cheguei à pensão antes do dono acordar. Coloquei a arma de volta no canto dela e subi para o quarto. Tinha corrido muito, mas o meu suor era frio. Meus temores me antecediam quando joguei meu corpo cansado sobre a cama. Pensamento voou longe, para os lados de Dulce. Não podia imaginar como ela receberia a notícia daquela morte. Saberia que fui eu, por aquelas intuições mágicas que demonstrava? Como quando anunciou que seria mãe de um filho meu?! Perda de tempo perguntar essas coisas, mas não conseguia não pensar. Pensava, matutava, cabeça pegava fogo.
“A notícia se espalhou rápido pelo arraial. Quando saí para a rua, notei uma correria fora das rotinas. Passou por ali o delegado, não esqueço que a cara dele estava mais tranquila do que de costume. Imaginei até que ele tinha gostado da novidade. Mas não comprovei essa impressão, não tive tempo. O delegado seguiu para o estábulo, montou junto com dois polícias e saiu rumo à fazenda de Teodorico.
“Passei pela venda, vi grupos de peões no balcão comentando o ocorrido, único assunto possível nas rodas. Não me detive. Segui pela trilha de cascalho que leva ao cemitério, no alto do morro. De lá de cima tinha uma boa vista do arraial todo, desde as margens do córrego até a floresta de bambus. Sentei-me numa pedra ao lado do portão e esperei. Espera mais longa do que aquela no brejo de taboas. Olhava para a estrada da fazenda, atento. Assim passei o dia. Se o senhor me perguntar em que pensava, palavra que não saberei responder sem mentir, pois que não me lembro. Ideias voaram na minha cabeça como andorinhas em debandada. Noite caiu, assim me achou, no mesmo lugar e com as mesmas revoadas de ideias. Madrugada adentro passei ali sentado naquela pedra, sem nenhum medo de assombração. Delas não me lembrava, perdido em devaneios. Não me lembrava de ter fome nem frio. Só pensava no que tinha feito, e na vontade louca de rever Dulce. De olhar para ela eu saberia o que ela pensava do sucedido. Se triste por se tornar viúva tão jovem, se alegre por se ver livre do marido carrasco…
“Sol já estava bem levantado quando notei movimento na estrada que liga o vilarejo à fazenda. Vinha um cortejo grande, longo, de gente vestida em preto, de cavaleiros com chapéu na mão. Na ponteira da grande fila, uma carroça com o caixão. Ao lado, porte elegante, acomodada numa charrete, uma mulher. Dulce, tive certeza, embora os olhos ainda não lograssem distinguir fisionomias daquela distância.
“Procurei um sítio mais afastado da entrada do cemitério, atrás de umas moitas, e lá fiquei aguardando a chegada do féretro. Não demorou muito, mas na minha cabeça se passou uma eternidade. Vi então Dulce na charrete. Só daquela distância consegui distinguir a barriga de nove meses, escondida pelas roupas pretas. Dulce estava prestes a dar à luz a criança. Meu filho. Por um segundo tive a ilusão de que ela me olhava. Não poderia me ver, tocaiado como eu estava. Mas no meu coração eu soube que ela sentia minha presença. O rosto de minha amada estava sereno. Tomei para mim, naquela serenidade, um aval, um ‘de acordo’ para o meu ato criminoso. Apaziguei-me.
“Passaram todos e tomaram o rumo da cova. Não resisti à tentação de ir atrás, ver Dulce mais uma vez e acompanhar o esquife descendo ao buraco que lhe cabia. Antes não tivesse feito isso! Meu penar talvez ainda fosse evitado, tivesse eu dado meia volta e fugido daquele lugar…
“Quando me aproximei da multidão, o tempo começou a fechar misteriosamente. Naquele vento seco, surgido do nada, encontrei um traço de sobrenatural. Nuvens fecharam o céu, escondendo o sol que estava forte até aquela hora. O padre tentava rezar, mas a boca secava inundada pela ventania. O barulho dos galhos rangendo e dobrando sob a força do movimento de ar, o silvo entre as lápides e cruzes, nada mais que isso se podia ouvir.
“Repentinamente, calou-se o vento. Um silêncio de outro mundo tomou conta de nossos ouvidos. No caixão, ainda aberto para os últimos adeuses, Teodomiro jazia com uma expressão de sem-descanso. Juro pelo que de mais sagrado, que o ocorrido se deu como eu conto. Lembro de tudo, nunca hei de esquecer.
“Naquele momento mesmo em que o vento se aquietou, Teodomiro abriu os olhos dentro do caixão. Mesmo vazio de tripas, que eu tinha espalhado na beira do Capivari, mesmo sem sustância nenhuma dentro do corpo, abriu os olhos e se levantou. Sentado no caixão, as pernas ainda cobertas pelas flores, olhou em volta e sentenciou, a voz rouca de quem já não pertencia a este mundo: ‘_ Quem me matou foi o Gumercindo, filho de um cão, ex-peão das minhas roças de cana. Aqui no inferno onde já me encontro, obtive licença do Temido para denunciar. Faça-se justiça!’. Disse e deitou de novo. Fechou os olhos que não mais se abriram.
“Olhei para Dulce, tomado de pavor. Ela desfalecia, amparada pelo povo em volta. O tempo agarrou de fechar de vez, caiu a borrasca como se fosse a água do rio do inferno, afogando a gente. Saí de lá correndo, sem olhar para trás. Fugi sem remediação, sem tempo a perder, sem buscar meus trastes na pensão, fugi.
“Não demorou muito tempo, o delegado veio atrás dos meus calcanhares, logrou me encontrar no Passo Fundo, num ranchinho abandonado. Passado o susto do enterro, as autoridades acharam por bem averiguar a denúncia, já que era feita por indivíduo gabaritado – a própria vítima. Sendo que eu até já esperava por aquilo. Minha preocupação foi saber o que aconteceu depois da minha fuga.
“Contou-me o delegado que Dulce morreu naquela mesma tarde, consequência do choque. O bebê, já em vias de nascer, foi salvo milagrosamente. Um menino, batizado com o nome de Rafael. Meu filho.
“Daí em diante chorei muitas dores, de remorços e desesperos. A cadeia que puxei foi a menor das minhas penitências. Entre grades vivi minha mocidade, tornei-me maduro antes do tempo, velho por antecipação. Saído da cadeia, resolvi tomar rumo na vida. Casei, fiz carreira de comerciante numa terra afastada onde nada se sabia do ocorrido, tive três filhos, conforme já disse. Mas nunca esqueci o Rafael.
“Fui atrás dele, de notícias. A fazenda do Teodomiro não existia mais fazia tempo. Ninguém sabia direito de quem eu estava falando, não se lembravam mais de Dulce nem do marido dela. Como de fato, a vida é vaidade, e a lembrança de quem fomos é condenada ao vazio das memórias. Muito trabalho tive para descobrir o paradeiro do rapaz, feito homem pai de família e trabalhador. Se o senhor ainda não adivinha, eu digo. É ele mesmo que estou indo visitar no Brejo Fundo, modos de contar toda a verdade, e revelar que sou o pai dele. Deus me conceda essa paz para minha alma.
Olhava para aquele velho com os olhos cheios de espanto. Arre, que alucinava, caducava, coitado. Que história das mais escabrosas, impossíveis! Estava assim avaliando o relato quando um trovejar mais próximo cortou o assunto. A tempestade tinha encorpado a ponto de fazer tremer o rancho. Ruídos de galhos partindo ao sabor do vento, raios descendo do céu que nem línguas de fogo, zap-zap.
O retumbar da borrasca era forte, mas não impediu que ouvisse um chamamento, vindo do meio das castanheiras: “_ Gumercindo!”. Estaquei, muito alerta. “_ Gumercindo!”, repetiu a voz de fora. “Venha cá para fora, se tu é macho!”. Um desafio.
_ Valei-me Nosso Senhor! É ele! É ele que vem das entranhas do Danado para me matar! O senhor me proteja!
_ Ele quem, homem? Está variando?
_ É o Teodomiro, que me persegue de além-túmulo. O senhor me proteja, por amor de Deus!
Instinto falou mais alto. Segurei firme a espingarda e fui para a porta, arma em riste. Nunca que esperava encarar o tal Teodomiro, mas algum outro, que perseguia o pobre Gumercindo. Alguém vivo não morto, atrás de uma vingança tardia. Senti-me na obrigação de proteger meu hóspede, sei lá por quê! Abri a porta e percorri a clareira em frente com o olhar. Um relâmpago revelou um homem a poucos metros, erguendo uma linchester em minha direção. Sem pensar atirei. Pipoco do meu disparo foi emudecido por um último trovoar. Fez-se um breu absoluto, cessaram os relâmpagos que permitiam ver o que fosse. O mundo preto escuro, de não enxergar nem metro à frente. Abaixado atrás do mourão que sustentava o telhado, firmei a vista, inútil. Passaram-se longos segundos, nada mais ocorreu.
_ Gumercindo, você vê o sujeito? Não sei dele!
Não obtive resposta. Olhei para dentro da casa, nem sinal do velho. Entrei, meio ressabiado, vasculhei a sala, a lareira, a cadeira onde ele tinha se sentado, agora vazia. O prato com o feijão intocado, sobre a lareira quase extinta. Um frio interior gelou minha espinha. Voltei a tornar para fora. Nada. Vazio, silêncio.
Passei aquele resto de noite de prontidão, na porta do rancho com a arma atravessada sobre o peito. Dedo leve no gatilho, decidido a atirar, fosse no Gumercindo, fosse no Teodomiro morto-vivo, fosse em quem fosse que por ali se abancasse. Noite longa aquela, no meio do mato. Pareceu-me que levou duas noites para o dia nascer de novo.
Nos dias seguintes nem sinal vi de nada que denunciasse a presença de alguém lá comigo, naquele rancho. Voltei às minhas atividades, disposto a esquecer a história.
Muitos meses se passaram desde aquele encontro com Gumercindo. Foi quando necessitei de ir às bandas do Brejo Fundo. Havia de entregar uns bois numa fazenda para aqueles lados. Findo o serviço fui à vila procurar abrigo. Estiquei os ossos doídos de tanto cavalgar numa mesa da venda, regado a pinga e carne-de-sol.
Travei conhecimento com alguns nativos que por ali gastavam as noites vazias. Conversamos sobre tudo e nada, até que o assunto me fez lembrar vias tortas da história contada por Gumercindo naquela noite, nas Castanheiras. Sondei algum detalhe que revelasse qualquer nexo naquilo tudo.
_ Ora, que essa história é antiga! _ Fez o Genovevo, um dos mais velhos do grupo. _ Teodomiro, fazendeiro muito do endinheirado, que morreu de morte matada. Da fortuna do falecido, nada sobrou para o Rafael, órfão de mãe também. Foi criado por uma Esmeralda, que fazia companhia à mãe dele nos tempos de abastança, e por um jagunço chamado Etevaldo. Contava-se que o assassino de Teodomiro queria ficar com a mulher dele, dona bonita que só ela, Dulce era seu nome – a mãe do Rafael.
_ E que se sabe do assassino?
_ Chamava-se Gumercindo.  Foi preso, ficou com os pulmões fracos depois de muito tempo na cadeia, nunca sarou direito. Acabou morrendo, cuspindo sangue, coisa de uns vinte anos.
Fiquei estarrecido. Argumentei sobre a imprecisão do que ouvia. O próprio Gumercindo tinha me contado de viva voz a história toda, não fazia um ano.
“Impossível”, tornou Genovevo, “morto e enterrado há bem uns vinte anos. Levo o senhor ao túmulo lá no cemitério da Ribeira dos Maltas, se duvida”.
Um vago de medo em meu peito cresceu, terrível. Haveria qualquer prova da veracidade daquilo tudo? “Prova, bem dizer, nenhuma. Mas se ajuda, posso lhe apresentar o Rafael. Ele acaba de entrar na venda. Ó ali, perto do balcão”.
Ao ver o rosto indicado, fiquei mudo de pavor. Rafael tinha as mesmas feições do Gumercindo, apenas que mais jovem.
Entendi num átimo que as diferenças entre o grande fazendeiro e o pobre lavrador se esticaram para além dessa vida. Teodomiro e Gumercindo  ainda duelam por Dulce e pela paternidade daquele homem ali na minha frente. Procuram uma paz que nunca chega.
Hoje, relembrando tudo o que vi e ouvi, dessa e de outras histórias incríveis, concluo que o muito saber dos homens não passa de areia nos olhos. É isso que sei: que a vida debaixo do Sol é feita mais de perguntas do que de respostas. A certeza é coisa que apenas a Deus cabe ter, não aos homens.

MC, 9 de agosto de 2009 (ilustração: acrílica sobre papel "Sozinho no Mundo", de Marcos Correia)

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