Estrelas e versos



            Fernando rabiscou mais uma linha no mapa astral sobre a mesa. Manipulou o compasso e o transferidor, fez cálculos matemáticos. “Prefiro as letras aos números”, pensou  Depois de teimar um pouco concluiu que era melhor afastar o místico trabalho, pelo menos temporariamente. Não é sempre que os astros revelam seus desígnios. Quando emudecem, o melhor é não forçar a mão. É como escrever um poema: quando o verso não brota da alma, é inútil qualquer esforço racional.
            O poeta aproximou-se da poltrona, pegou o Notícia Ilustrada, releu a nota dando conta da visita ilustre. Aleister Crowley chegaria naquela manhã, direto da Inglaterra. O fato de o grande mago dedicar parte de seu tempo ao astrólogo amador era algo surpreendente. Fernando não esperava que sua carta com opiniões astrológicas motivasse uma visita do guru, ainda mais quando se leva em conta que ele, Fernando, está longe de ser uma celebridade. Não foi muito além do reconhecimento em restritos círculos literários. Seu nome, quando ganha destaque na imprensa, geralmente é vinculado a alguma polêmica estilística ou moral. “Sou póstumo”, percebeu já há algum tempo.
            Crowley chegou à casa do poeta bem à hora do chá – a formação saxônica de Fernando permitiu que ele se lembrasse do velho costume. O mago estava vestido como um perfeito lorde, gravata e casaca, nada de mantos, turbantes ou adereços. À mesa, entre uma chávena e outra, a conversa fluiu entusiasmada sobre oráculos e estrelas.
            _Vejo o dom em você, caro Fernandodisse Crowley. E começou a descrever a aura do outro, comentar as nuanças do espírito, a necessidade de equilíbrio no mundo sobrenatural. Não escapou ao mago a personalidade fragmentada do poeta, cada fragmento uma individualidade, completa e independente. “Um caso fascinante, mas incompatível com a iniciação nas artes que domino”, diagnosticou, com olhar penetrante.
            Crowley sugeriu uma viagem a Cascais para resolver o caso. “Lá encontraremos a conjunção astral necessária para um ritual antigo”, explicou. “Transformaremos suas muitas personalidades em uma única. Assim seu terceiro olho se abrirá para a verdadeira visão”. Fernando desconfiou que o real motivo da ida ao porto de pescadores era a predisposição turística do mago. Mas algo o preocupava mais do que isso. Certamente a novidade não agradaria a Reis, Campos, o jornalista Pantaleão, o Barão de Teive e tantos outros, companheiros que começaram a surgir na vida do poeta quando ele ainda era uma criança. Fernando entendeu que o preço da visão que tanto almejava, era a morte de todos os seus heterônimos. Sem a individualidade que marca cada um, como poderiam eles subsistir? Talvez esse preço fosse alto demais, mas acabou concordando com a viagem. “Uma desculpa para mudar de ares, na pior das hipóteses”, pensou.
            Na semana seguinte, estavam o mago e o poeta instalados num simples hotel perto do porto de Cascais, preparando os instrumentos, separando antigos pergaminhos, pesquisando as invocações corretas. Saíram pouco antes da meia-noite para um campo nos arredores da cidade. O céu pontilhado de estrelas era testemunha da brisa vinda da baía, a soprar levemente, as folhas das árvores a farfalhar num balanço hipnótico. Crowley vestiu um longo manto negro com uma cruz no peito. Colocou uma espécie de tiara na cabeça e começou a desenhar um pentagrama no solo , usando uma pedra de cal. Em cada ponta do desenho resultante, colocou uma vela. Começou a acendê-las enquanto rezava uma antiga oração em língua desconhecida para Fernando.
            Foi nesta altura que apareceu Álvaro de Campos, aproximando-se pela mesma trilha por onde tinham chegado os dois. O olhar cínico, um sorriso de canto de boca a marcar-lhe o rosto. O mago, absorto em sua magia, não notou de imediato a presença inusitada. Fernando deixou-o com seus afazeres, e foi na direção do engenheiro.
            _Você vai mesmo adiante com esta palhaçada? Perguntou Álvaro, com a delicadeza que lhe era característica.
            _Ainda estou avaliando, meu caro – Fernando ficou incomodado com a arrogância do outro.
            _Mas se o preço é a vida de muitos!
            _A vida de quem?
            _A minha, a de Ricardo, as da legião de amigos e colaboradores que o cercam desde tenra idade.
            _Não seja ridículo. Você sou eu, eu sou você, e Ricardo, e todos os outros. Não mato ninguém! Torno-me um só. Se Alberto Caeiro ainda estivesse vivo, certamente riria muitíssimo de sua atitude, vindo aqui me confrontar, cheio de medos e crendices.
            _O mestre não acreditava em nada disso _ Respondeu Álvaro. _ Morreu cuspindo sangue dos pulmões, certo de que misticismo era balela, invencionice de desocupados. Mas não são estes poderes arcanos que você invoca que me assustam. O que me arrasa, é você considerar a possibilidade de nos destruir, achar possível seguir sem nós. É muita ingratidão acabar com aqueles de cujo talento você tem vivido nos últimos anos.
            _De cujo talento tenho vivido, ora porra, de cujo talento…! Berrou Fernando, num raro momento de destempero.
            Passaram-se horas bêbadas, de febre. Fernando e Álvaro a debater, Crowley irritado por interromper o ritual na metade. O inglês praguejou, afastou-se contrariado, desapareceu numa curva da estrada de terra. Amanhecia quando o poeta notou os apetrechos de bruxaria espalhados pela clareira, frustrada qualquer intenção de abrir o terceiro olho, ou como quer que se chame a conquista da clarividência. Resolveu enterrar os poderosos objetos. Sabia o bastante para entender que seria perigoso abandonar tudo ali, jogado. Viu-se dizendo, enquanto entregava uma pedra chata e comprida a Álvaro:
            _Tome, engenheiro. Por força de profissão, com certeza você sabe manusear uma pá melhor do que eu.

            _Larga de cinismo, Fernando. Você está cansado de saber que meu negócio é construir  motores e barcos, ó besta!
            Era dia alto quando o trabalho terminou. Ao lado do estranho pentagrama desenhado pelo mago, havia então uma cova rasa, sem marca, nem cruz, nem nome. No hotel, Fernando encontrou o quarto de Crowley vazio e a conta da estadia por pagar. “Sofro mais este enxovalho, e calo”, resignou-se, limpando as lentes dos óculos.
            Semanas depois alguém bateu à porta do poeta, em Lisboa. Um repórter da Notícia Ilustrada, apurando o estranho desaparecimento de um conhecido mago britânico, em visita a Portugal. Soube o jornalista que, dias antes de sumir, o místico esteve em casa de Fernando. Uma conversa rápida, regada a café e biscoitos, marcou o encontro do repórter com o poeta. Sim, o mago esteve em sua casa, sabia do seu interesse por astrologia, sim, Crowley esteve também em Cascais, não, não tivera notícias dele desde que se separaram. “E pouco me importa”, pensou.
            Quando o jornalista saiu, Fernando aproximou-se da escrivaninha. Álvaro surgiu do quarto ao lado, pediu licença, tomou a caneta das mãos do poeta e, aproveitando uma inspiração jorrada da própria vida, escreveu os primeiros versos de um poema:
“Não me seduzem os astros a conduzir minha existência.
Sozinho, sou perfeitamente capaz de criar problemas suficientes
Para mais de muitas vidas”
_Isso é lixo e vai para a lixeira _ comentou Fernando amassando a folha com os dedos, e condenando os versos à eterna exclusão de suas obras completas. Ainda estava irritado com o engenheiro.
_Perdôo sua grosseria. Mas, anote aí, que agora sinto o caminho com mais firmeza _ respondeu Álvaro, ainda sob o efeito de alguma musa insuspeitada: “Não sei se os astros mandam neste mundo, ...”
Começou dessa maneira acidentada, de humores exaltados e paciência nenhuma, a longa tarde de trabalho dos dois, trancados na sala de leitura.
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PS: O último verso do texto foi escrito por Fernando Pessoa, em 5 de Janeiro de 1935, num poema sob o heterônimo de Álvaro de Campos. Os três anteriores (que acabaram na lixeira do poeta) são do autor deste conto.










                                   


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