Gêmeos
Guilherme
está morto. Seus olhos trazem o embaço do irremediável, escancarados e saltados
das órbitas como bolas de vidro opaco. O pescoço ainda ostenta o laço
mortífero, as marcas sanguinolentas do enforcamento, a pele rompida e enrugada
num último aperto de seda. O corpo nu caiu sobre o chão da sala
quando a gravata rasgou-se ao meio, vencida pelo peso excessivo que
suportou. O pedaço que ficou preso ao lustre oscila
vagarosamente, no ritmo do ventilador ligado.
No quarto ao lado,
mais dois corpos sem vida; um homem e uma jovem.
Longe
dali Germano deixou de existir. Um cadáver ocupa seu lugar. Enforcamento é a
causa, igualmente. Uma gravata de seda, idêntica à de Guilherme, o objeto da
morte. Mas a dele não se rompeu. Permanece presa ao pescoço numa ponta e ao
cano do chuveiro na outra. A nudez do corpo exibe-se às moscas no box
escancarado.
Trinta
quarteirões separam as duas cenas. Guilherme e Germano julgaram ter encontrado
em suas curtas existências motivo para morrer. Não combinaram a hora,
o dia, o modo. As semelhanças se devem a um sincronismo absolutamente casual e
à justeza das circunstâncias.
Demorou
certo tempo até a polícia descobrir que os dois eram irmãos. A distância entre
os endereços fez com que as equipes designadas a cada caso fossem diferentes.
Os dados começaram a se cruzar apenas quando a história chegou até a
especializada em homicídios. Revelaram-se logo depois as identidades do homem e
da moça encontrados mortos na casa onde Guilherme se suicidou.
Os
rapazes não só eram irmãos como foram gêmeos siameses. Nasceram ligados pelo
ílio. Guilherme veio à luz alguns segundos antes de Germano, e assumiu a
primazia em todas as circunstâncias desde então.
Passados
dois anos do nascimento deles, a mãe deu à luz uma menina que, tão logo veio ao
mundo, abriu dois inquiridores e profundos olhos azuis. Todos concordaram que
aquela circunstância pouco comum era sinal de inteligência, já que o normal é
que as crianças comecem a espiar em redor muito depois do parto. Os pais
ficaram maravilhados com a pequena e, de uma forma inconfessável, aliviados por
não encontrar no bebê nenhum tipo de anomalia.
Os
gêmeos, assim que alcançaram idade suficiente para perceber as circunstâncias
da vida, começaram a se relacionar com a nova integrante da família de formas
diferentes. Germano, encantado e feliz. Guilherme, taciturno e sombrio, um
tanto corroído pelo ciúme. Mas qualquer resistência do truculento menino se
desfez quando pegou a bebê nos braços pela primeira vez e foi premiado com um
largo sorriso sem dentes. Naquele momento Guilherme foi conquistado
definitivamente pela irmã.
A
despeito de ter outro ser humano preso ao corpo, Guilherme era quem decidia
onde ir, o que fazer, de que brincadeiras participar. Germano apenas o
acompanhava, submisso, sem presença de espírito para debates e pendengas. Mais
de uma vez, urinou nas calças apenas porque o irmão se recusou a interromper
algum jogo para ir ao banheiro com ele. Conformava-se com aquelas pequenas
tiranias, tinha o caráter dócil demais para reagir. Os pais omissos não
interferiam com a necessária energia nesses casos, condoídos e secretamente
agastados com a condição dos filhos. Ostentavam uma indiferença que estimulava
em Germano a impressão de que Guilherme tivesse mesmo algum poder sobre ele.
Guilherme,
por sua vez, sentia-se como se tivesse dois corpos. Encarava o irmão como uma
mera extensão dele próprio.
Na
escola, a vida dos dois era o que se pode chamar de normal. Conseguiram fazer
amigos e participar das atividades da turma com plenitude. Muito disso se deveu
à personalidade expansiva e sedutora de Guilherme, características que
despontaram desde os mais tenros anos. Não se queixava de sua situação, não se
intimidava diante dos olhares indiscretos dos colegas - e dos professores.
Sentia-se privilegiado por ter quatro braços para apanhar as coisas, quatro pés
para firmar-se ao solo, duas cabeças para pensar. Germano era, na pior das
hipóteses, um escravo incapaz de qualquer vontade.
A
adolescência, que é turbulenta e cruel para qualquer pessoa, foi ainda mais
terrível para Germano. Ligado ao irmão pelo osso da bacia, sem qualquer chance
de exercer sua individualidade, sem coragem para se impor fosse no que fosse.
Guilherme, por outro lado, mergulhado nos hormônios e paixões próprios desta
fase da vida, deu mais e mais vazão a suas vontades. Tornou-se um adolescente
irritadiço e inconformado, sempre disposto a brigar pelo que queria. Brigas em
que Germano o acompanhava involuntariamente, por pura falta de alternativa. E,
invariavelmente, levava a pior. Não poucas vezes chegou em casa com o olho roxo
ou a boca sangrando, choroso, enquanto Guilherme, igualmente machucado,
revelava uma euforia no olhar, como se a luta tivesse proporcionado um momento
de epifania.
Apesar
do irmão inseparável, Guilherme conseguiu muitas namoradas. Germano era
novamente arrastado para situações constrangedoras, em que se via obrigado a
testemunhar as experiências sexuais do outro, geralmente prazerosas apesar das
óbvias dificuldades. O sucesso, é bom dizer, devia-se mais a estranhos fetiches
das garotas do que à competência de Guilherme. Germano chegou a conseguir uma
namorada também, mas decidiu afastar-se dela quando percebeu que Guilherme
jamais permaneceria passivo e resignado como simples observador de uma relação
sexual.
Entrementes
Isabel, a irmã mais nova, crescia em beleza e inteligência. Cabelos pretos,
lisos e longos, pele clara como a das princesas de contos de fadas. Ela era o
único ponto de convergência para as almas dos antagônicos irmãos. Os dois se
uniam num mesmo sentimento pela caçula: uma cristalina e fiel adoração.
Guilherme continha os impulsos violentos; Germano entregava-se totalmente à
índole amorosa e compassiva que sempre teve. Eles passavam longas tardes brincando
com a pequena depois da escola. À medida que Isabel crescia, as brincadeiras
davam lugar a interessantes conversas, confidências e opiniões sobre tudo,
partilhadas com a mais transparente confiança.
A
menina transformava-se rapidamente numa belíssima mulher. Ainda na primeira
adolescência trazia no corpo formas de adulta, em sedutora perfeição. Os olhos
que desde o nascimento impressionaram a todos que os fitaram, recrudesceram em
brilho ao longo do tempo. Isabel encarava com displicência as atenções dos
enamorados que apareciam, mas isso apenas fazia aumentar seu encanto. Ela era o
objeto de todas as atenções na casa, principalmente por parte do pai, que se
esmerava em realizar os desejos da garota em detrimento muitas vezes dos
cuidados que deveria dispensar aos filhos homens ou à própria mulher. Mas os
rapazes consideravam natural que qualquer pessoa se esforçasse por agradar
criatura tão adorável. O mesmo não se podia dizer da esposa, que sentia-se
preterida. Guardava, porém, aquela impressão para si, considerando-se injusta e
egoísta. Mas não conseguia se livrar daqueles pensamentos incômodos, a ponto
dessas ideias interferirem na relação que tinha com a filha: um certo
distanciamento formal e reservado se estabeleceu entre as duas.
Isabel
era motivo de orgulho para os irmãos, e de um zelo algumas vezes ciumento
demais por parte de Guilherme. O gênio avassalador dele, de qualquer forma,
parecia sob controle. Domesticado pela simples proximidade de Isabel. Germano
nunca se sentiu tão confortável ao lado do irmão, embora não tivesse dúvidas
sobre o papel secundário que lhe era imposto de forma tácita, irrevogável.
Ironicamente
foi nessa época de harmonia que surgiu a oportunidade da separação. Uma nova
cirurgia, levada a bom termo num caso muito mais complicado que o deles, havia
corrigido a deformidade de dois bebês que eram ligados pela cabeça. Tinham o
mesmo occipital mas, felizmente, não compartilhavam a meninge, o que permitiu o
procedimento.
Guilherme
e Germano viram no jornal as fotos dos bebês antes e depois da operação.
Entreolharam-se pensativos e, sem dizer nada, souberam que uma decisão havia
sido tomada de comum acordo.
Alguns
meses depois os jovens convaleciam no hospital. A cirurgia foi um sucesso.
Independentes pela primeira vez, sentiram um estranhamento acompanhado de
alegria no caso de Germano, e de melancolia para Guilherme. Este imaginava ter
perdido algo muito importante, como se retirassem dele um órgão vital. Aquele
julgava-se livre e pronto para uma realidade completamente diferente da que
vivera até então.
Isabel
participou da alegria de Germano e compreendeu a perplexidade de Guilherme. Foi
um esteio, um apoio, um porto seguro para os dois naquela travessia que faziam
para um novo modo de vida. Guilherme sentiu-se presa da solidão. Germano ficou
eufórico, embora assustado, e teve arroubos e entusiasmos que mais caberiam ao
perfil de Guilherme do que ao dele. Tornou-se festivo, paquerador, falante e
intempestivo. Foi atrás da antiga namorada e transformou em prazer o que antes
era apenas frustração. Passou a frequentar festas sem a companhia do irmão,
enquanto o outro ficava em casa, num vazio impossível de preencher. Isabel era
o único conforto para Guilherme, e servia de contraponto à enxurrada de emoções
de Germano. Era como se a mudança física tivesse proporcionado uma troca brutal
de personalidade entre os gêmeos, e a irmã fosse um sutil ponto de equilíbrio
para ambos.
Excluído
o sincero amor entre os três irmãos, a apatia e a dissimulação eram a tônica
naquela casa. A esposa fingindo-se satisfeita com o marido; o marido
pretendendo-se atencioso. Até que um dia a máscara caiu.
Os
pais resolveram se separar. A notícia foi considerada absolutamente
surpreendente pelos gêmeos. Estavam habituados à comodidade de papéis e às
falsidades cotidianas do casal. Não entenderam por quê interromper aquele
teatro conduzido com firmeza até então. Apenas Isabel dava indícios de não
estranhar a novidade. Tornou-se calada, esquiva, triste. Seus belos olhos azuis
pareciam ter substituído o brilho profundo por um tom sombrio. Passava longas
tardes pelo jardim caminhando sozinha e, à aproximação dos irmãos, logo
inventava alguma desculpa para ir até o quarto e trancar a porta.
Os
gêmeos intuíram que aquela separação tinha ferido Isabel mais do que se poderia
esperar. Sentiam na pele a dor do desespero ao imaginar que algum sofrimento
secreto atormentasse a irmã, como se fossem eles os atormentados. Resolveram
abordá-la diretamente sobre a questão, mas conseguiram apenas balbucios e
desconversas. Insistiram inutilmente. Não viram outro remédio senão tentar
esquecer o caso. Permaneceram atentos, porém, a qualquer pedido de ajuda
daquela que tanto amavam.
Anos mais tarde, Guilherme se formou em
administração de empresas e Germano concluiu a faculdade de letras. Ambos com
algum atraso, provocado por dificuldades escolares decorridas das separações –
tanto a dos pais, que causou mudanças de endereços, novos desafios e relações,
como da cirurgia, que os modificou mais na alma que no corpo.
Para a
festa, resolveram fazer a tradicional brincadeira dos gêmeos vestidos de forma
idêntica. Paletós marrons, camisas de um leve amarelo, gravatas de seda
encarnadas. As calças dos dois eram unidas por uma das pernas, de modo que eram
obrigados a andar sempre juntos pelo salão, abraçados. Eram aplaudidos entre
risos dos amigos que conheciam a antiga história da deformação que os
acompanhou por boa parte de suas vidas. Estavam felizes. Achavam que o mundo
não poderia ser mais perfeito.
Mas
logo uma ausência se fez notar. Aquela que entre todos deveria estar ali não
aparecia. Procuraram por Isabel em toda parte, sem sucesso. Perguntaram por ela
à mãe e notaram um olhar ferino, como que banhado em ódio. Ficaram assustados
com aquela expressão terrível. Exigiram que ela contasse o que estava
acontecendo.
Bêbada
dos drinks que tomou durante toda a festa e da amargura que trazia na alma, a
mãe começou a contar uma história incrível. Chamou a filha de Jezabel, de
Salomé, de puta. Acusou-a de ter seduzido o próprio pai, destruindo assim
um casamento que já agonizava. Tudo
teria começado um pouco antes da separação… ela notou olhares que o marido
lançava para a filha, olhares de homem, de desejo. Achou inicialmente que fosse
delírio de sua parte, negando-se a acreditar em tamanha sordidez. Uma noite,
porém, acordou e viu a cama vazia a seu lado. Levantou-se e foi até o quarto da
filha, guiada por uma força superior à sua vontade. Então ela viu; não houve
mais lugar para dúvida.
Não
foi capaz de qualquer reação. Voltou ao quarto em silêncio, esmagada pelo
choque. No dia seguinte comunicou ao marido a decisão firme de se separar. Não
esperava dele qualquer resistência e foi assim mesmo que o outro recebeu a
notícia. Concordou logo, intuindo que seu segredo tinha sido descoberto. Quanto
a Isabel, desde então, nunca mais a mãe foi capaz de olhá-la de frente.
Preferiu o refúgio da omissão.
Guilherme
e Germano ficaram suspensos no ar com o golpe. Não acreditaram nem por um
minuto que aquela que adoravam fosse capaz de ato tão imundo. Mas os indícios
levavam a crer que algo realmente tinha acontecido de muito grave. A mudança de
temperamento da irmã na época da separação indicava mais do que tristeza pela
decisão dos pais de não continuarem juntos. Para os dois, porém, a única
conclusão aceitável era de que não seria ela a sedutora, mas ele, transtornado
pela beleza da própria filha, entregue aos sentimentos mais baixos e impulsos
mais animalescos. Talvez ele tivesse forçado aquela situação, ameaçado Isabel
caso contasse alguma coisa a alguém.
Neste
momento outra ausência despertou o pânico entre os irmãos. O pai também não
estava na festa. Imaginaram instantaneamente alguma desgraça. Saíram correndo
desajeitadamente com a calça única, provocando as risadas dos presentes
incapazes de atinar com o terror que movia aquela urgência. Foram aos
vestiários da universidade, trocaram as calças e num segundo estavam num carro
em disparada rumo à casa onde o pai foi morar depois do divórcio.
Encontraram
a porta da frente trancada. Bateram forte, gritaram, mas ninguém atendeu. Deram
a volta e entraram na casa pela porta dos fundos. Correram, quase voaram em
direção ao quarto.
Sobre
a cama, o pai nu imobilizava um delicado corpo feminino com o próprio peso. Os
braços retesados denunciavam um grande esforço. Guilherme não teve tempo para
pensar. Pegou um encosto de livros de mármore que estava sobre a cômoda e
golpeou com toda força. O homem caiu de bruços com a cabeça partida.
Germano
empurrou o cadáver do pai para o lado e encontrou, debaixo dele, o corpo nu da
irmã. Ela não respirava. Marcas vermelhas ornavam seu pescoço. Em desespero o
jovem tentou uma ressuscitação massageando o belo seio de Isabel. Tocou-lhe os
lábios num sopro desesperado mas não conseguiu infundir oxigênio nos pulmões
inertes. Entendeu que ela estava morta, mas ainda assim insistiu na tarefa
insana. A massagem cardíaca logo se tornou uma sequência de murros sobre o
peito nu da moça. Gritava o nome dela sem esperança de ouvir resposta.
Assim
ficou por um longo tempo. Depois saiu do quarto com os cabelos entre as mãos,
numa corrida tresloucada. Alcançou a rua, entrou no carro e partiu sem olhar
para trás ou se lembrar do irmão.
-.0.-
Guilherme
ficou no quarto, de joelhos, chorando desesperadamente. Não conseguiu olhar
para o cadáver da irmã estrangulada. Sentiu o mundo se tornar vazio e escuro à
sua volta enquanto amaldiçoava o próprio pai. O assassino, certamente levado à
loucura pela impossibilidade de continuar com o amor clandestino e sensual que
devotava à filha. Talvez um insano e tardio remorso fosse a razão do hediondo
crime. Ou uma tentativa de Isabel de se livrar do pai. Mas a Guilherme nenhuma
dessas conjecturas interessava. Havia apenas desespero.
-.0.-
Germano
rodou sem destino por algum tempo até voltar a si na frente do prédio onde a
mãe morava sozinha. Subiu ao apartamento dela com o rosto transtornado, sem
dizer nada ao porteiro que o observava com expressão assustada.
-.0.-
Guilherme
levantou-se e saiu do quarto, finalmente. Foi até a sala e se despiu. Pegou a
gravata de seda, enrolou-a no pescoço. Alcançou o lustre com uma cadeira e
amarrou a outra ponta da gravata, tomando cuidado para não ferir os dedos nas
pás do ventilador de teto ligado. Uma precaução irracional de um suicida.
-.0.-
Germano
entrou no apartamento com a chave que possuía. A mãe ainda não havia voltado da
festa de formatura. Ele se despiu a caminho do banheiro com a gravata de seda
na mão. Enrolou-a no pescoço com um forte nó de forca. Subiu numa pequena
banqueta e amarrou a gravata ao cano do chuveiro. Empurrou a banqueta para
longe com as pontas dos pés.
-.0.-
Guilherme
morreu alguns segundos antes de Germano.
MC,
14/4/2010
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