O resgate


Passado o umbral que divide os mundos, Miguel notou imediatamente um opressivo perfume, não desagradável, longe disso, mas arrebatador. Pareceu-lhe que todas as flores dos campos celestiais exalavam seus aromas combinados harmoniosamente. O prazer que invadiu suas narinas quase o sufocou, mas logo controlou-se. Fez um esforço para não esquecer onde estava.
À frente do arcanjo descortinava-se uma vasta paisagem de vales arborizados, cortados por um rio de água translúcida e coroados por uma cordilheira gelada. A luz banhava a tudo com um brilho de amanhecer, como um véu jogado sobre a natureza exuberante. Borboletas gigantescas, de um azul perpétuo, voejavam alegremente enquanto alguns cervos bebiam das águas tranquilas do rio. Miguel foi invadido por uma alegria embriagadora, como se tudo estivesse como deveria estar – a ordem perfeita de todas as coisas. Com muita dificuldade, apertou os dedos em redor da espada e imediatamente livrou-se daquela impressão hipnótica. O corte provocado pela lâmina sagrada devolveu-lhe a consciência e o manteve mais alerta que nunca. “O monarca deste mundo fez reformas desde a minha última visita”, notou.
O caminho a seguir era uma trilha mergulhada nas sombras das árvores, pontilhada de arbustos floridos em toda sua extensão. Entre as árvores, notou os vultos de anjos usando vestes luminosas. Nenhum deles ousou se aproximar de Miguel, mas mesmo assim ele reconheceu os antigos inimigos. “Os caídos…” Continuou andando, ignorando o ódio com que era observado por aqueles seres de beleza maligna. O ódio que envolvia seus passos como a suave brisa acariciando-lhe os cabelos. A despeito do perigo que corria, Miguel experimentava o poder do encantamento a sua volta e, por um momento, acreditou-se capaz de sentir como um ser humano. As paixões, desventuras, dores e prazeres da carne numa dimensão de existência absolutamente impossível de imaginar para os de sua espécie. Sentiu como se tivesse recebido uma alma, tão logo atravessou o umbral. Tremeu involuntariamente, incerto de que poderia resistir a tamanha sedução. A vida atribulada e desafiadora do homem era uma tentação para ele, um ser acostumado à placidez da certeza infinita, alguém que já vislumbrou a Glória em toda sua plenitude e nunca conheceu o ardor de uma paixão proibida. “É preciso continuar… que o Criador me dê forças”, pensou o arcanjo, enquanto a angústia começava a se desenhar em suas entranhas.
Ao final da trilha ensombrada, o caminho tornava-se amplo à direita e à esquerda, revelando um grande descampado que parecia subdividido em várias regiões – todas muito claras e belas. Conflitando com as maravilhas que vislumbrava, gemidos de dor e desespero chegaram aos ouvidos de Miguel, e isto revelou a identidade daquele lugar: o Vale dos Condenados.
Na primeira região, um homem prostrado, como se estivesse preso por cadeias invisíveis, gritava de ódio. À sua volta, um grupo de crianças brincava despreocupadamente no que parecia ser um parque de diversões de alguma praça encantada. As crianças eram belas e puras como os querubins do Paraíso, sorriam com a ingenuidade da infância, num estado de espírito em que não havia nenhum resquício de maldade. No meio delas, o condenado urrava mais e mais alto, na mesma proporção em que os pequenos aumentavam a intensidade das brincadeiras. Era como se os risos infantis se tornassem adagas pontiagudas lacerando suas carnes. Uma poça de excremento e sangue se formava debaixo dos joelhos dobrados do condenado, mas o fedor não se espalhava; permanecia em redor apenas do culpado invadindo seus pulmões e intoxicando-lhe a alma apodrecida. Aquela corrupção não maculava o jardim onde as crianças corriam distraídas, ignorando totalmente a presença de sua vítima involuntária. 
“Um pedófilo”, entendeu Miguel, “roído até as entranhas pelo desejo proibido, diante daquilo que mais deseja, sem poder possuí-lo. Triste forma de passar a eternidade”.
Na segunda região, súcubos de pele morena e longos cabelos negros dançavam magicamente em redor de outro homem, em condições tão degradantes quanto as do anterior. Os demônios sedutores, de beleza sobrenatural, aproximavam seus sexos úmidos e febris a poucos milímetros do pênis da vítima, rijo numa ereção impossível, repleto de feridas pustulentas e fétidas. O sangue, a urina e o pus faziam um tapete hediondo logo abaixo dos pés do condenado, mas a exemplo do que aconteceu na primeira região, não corrompiam o resto do vale. O homem tentava desesperadamente penetrar os súcubos, mas não conseguia, por mais que se esforçasse. E o esforço aumentava a incidência das feridas supuradas. “O homem sensual”, pensou Miguel.
Na terceira região, um vasto banquete se descortinava diante de um homem magro como um esqueleto. O cheiro delicioso dos assados e das frutas provocava dores e convulsões insuportáveis no condenado, que mergulhava no próprio vômito e tentava inutilmente manter no estômago o que comia com volúpia, sem conseguir parar. 
Na quarta região, uma mulher era penetrada por homens de membros gigantescos. Ela implorava que parassem, mas não era atendida. Seu corpo estava coberto de esperma, sua garganta se engasgava com o líquido esbranquiçado enquanto ela jurava que nunca mais seria libertina, nunca mais trairia o marido, nunca mais participaria de bacanais imundos… mas suas súplicas desapareciam, sufocadas num mar de sémen, enquanto toda sorte de doenças venéreas lhe destruía as carnes.
Na quinta região, um homem tentava desesperadamente colocar algumas moedas num cofre, mas à medida que elas entravam por um orifício, ele as vomitava novamente, com um ruído de ralo entupido. Outras tantas moedas saíam com igual estrépito pelo ânus da vítima, ininterruptamente. A avareza o fazia continuar recolhendo as moedas defecadas e insistir naquela poupança macabra.
Na sexta região, o que parecia ser uma gigantesca gaiola de ramster era movida por um homem, condenado a correr o tempo todo. Quando se cansava, era fustigado por um carrasco com um chicote de espinhos venenosos. A pele do preguiçoso estava reduzida a uma massa sanguinolenta, feita em pedaços repetidamente e sempre se renovando para novos castigos. 
Na sétima e última região, um morro era coroado por uma cruz de carvalho, e na cruz, sangrando abundantemente, havia um homem pregado implorando pela morte. Mas ele não morria, por mais que gritasse e rezasse a Deus. Já estava morto, não poderia encontrar o consolo do descanso eterno. A seus pés estendiam-se algumas vestes eclesiais, a Mitra e o Cajado do Pastor.
Em redor de todas as regiões, a beleza chegava aos limites da perfeição. Tudo era luz, encantamento, prazer e glória. 
“Isto sim, se parece com o verdadeiro inferno”, pensou Miguel quando ultrapassou a última região e se aproximou do trono maior, onde um anjo de insuperável formosura descansava indolentemente. 
_ A que devo a honra desta visita, irmão? _ disse uma voz andrógina.
Miguel reconheceu o velho inimigo. 
_ Não preciso dizer que não é uma visita social, Lúcifer. Venho com ordens claras de corrigir uma grande injustiça.
_ Ora, será possível que Ele admitiu o erro, e mandou seu maior general para me conduzir de volta ao Paraíso depois de tudo o que aconteceu? Por favor, nem mesmo Ele, do alto de Sua onipotência, é capaz de admitir um erro.
O cinismo da resposta foi recebido de forma impassível pelo arcanjo. 
_ Tuas blasfêmias não vão te levar a lugar nenhum, irmão. Claro que o erro não foi d’Ele, mas teu.
Lúcifer arregalou os olhos, como se surpreso, e começou a gargalhar malignamente.
ilustração de Marcos Correia

_ E posso saber de quê sou acusado desta vez? Estou aqui tranquilo em meu reino, administrando as misérias humanas que o teu Mestre produz, cuidando do lixo divino como sempre fiz. Sim, Ele condena e eu executo. E quem fica com a fama de mau? Eu, é claro, porque Ele é infalível, piedoso, amoroso. Se condena é porque era preciso. O vilão sou eu, que aplico os castigos com presteza e responsabilidade. 
_ Ah, pai da mentira, teu discurso me aborrece…
_ Sem mim, o Filho dele perderia muito do poder, já pensaste nisso? _ continuou o Caído, sem se importar com o comentário de Miguel. _ O que alimenta a fé no Crucificado é o medo da danação eterna. Mas tenho que admitir que está cada vez mais difícil manter a humanidade sob controle. Tu mesmo viste, um dos braços direitos daquela religião que se julga herdeira dos ensinamentos do Nazareno está aqui, penando, expurgando a vaidade, a arrogância… É divertido ver todos os dias como este pobre condenado se surpreende com o próprio castigo, justo ele que se julgava tão fiel à Palavra, tão seguidor dos preceitos divinos. Hipocrisia, isso é tudo… hipocrisia e jogo de aparências são o que mantém o “Reino dos Céus na Terra”. Já o meu mundo, este é muito mais objetivo e concreto. Não notaste? Temos uma função e nos esmeramos em cumprí-la da forma mais eficiente possível. Que achas, estou me saindo bem? Fiz mudanças desde que me jogaste neste buraco. Espero que tenhas apreciado.
Miguel não conseguia disfarçar a repulsa crescendo em seu espírito, misturada a uma irracional piedade pelo irmão banido do céu. Mas o sentimento mais forte era um incômodo temor. As impressões que o azucrinaram na passagem pelo Umbral desvaneceram completamente, tão logo ele chegou ao Vale dos Condenados. Mas agora o medo é mais real, mais vivo. Miguel sabe do poder doentio de seu adversário, e o teme, no fundo. Sua lógica parece irrefutável, sua amargura, infinita. Seu rancor, sufocante como um rio de lodo, seu hálito, fedorento como a mentira. “O melhor a fazer”, pensou o arcanjo, “é cumprir logo minha tarefa e ir embora daqui, sem olhar para trás”. 
_ Olha, irmão, em teu redor._ exclamou o arcanjo _ Teu mundo é tua condenação. Nada mais há a dizer sobre isto. Espero apenas que tu obedeças… sabes bem o que acontece quando não obedeces. Tu deves libertar imediatamente um de teus cativos, para que eu o leve à presença da Glória.
Lúcifer empalideceu de indignação. Nunca, desde a queda dos rebeldes, alguém saiu daquele lugar. Esta é uma tradição maldita que sustenta o poder do Inferno. A infalibilidade do castigo, a irrevogabilidade do sofrimento eterno. Soltar um cativo seria fazer desmoronar os alicerces de seu reino. Lúcifer não estava disposto a isso, nem teria motivos para tanto. Mesmo assim perguntou:
_ Quem seria o beneficiado por tão augusta clemência? Quem veio parar aqui por engano? E, mais importante que tudo, quem se enganou? Eu não fui, tenho certeza… meus registros estão precisos, o livro de entradas permanece sem nenhuma rasura.
_ Até agora foi assim, mas não mais…
Miguel revelou o nome do redimido. Lúcifer, então, percebeu do que se tratava. Um sorriso irônico iluminou seu rosto.
_ Ora, meu irmão, poucos condenados merecem tanto a pena quanto este que mencionaste. Estás brincando, só pode ser… um senso de humor digno das mais remotas masmorras de meu mundo. Ora essa, Ele, um piadista.
Miguel não mexeu um único músculo do rosto durante o protesto do outro. Lúcifer notou que não era uma anedota. 
_ Ele enlouqueceu? Não, vejo que não… agora entendo bem. Este maldito que Ele quer de volta é como eu, tem a mesma função que eu… um simples executor dos planos divinos. Condenado por todos como um anticristo, na verdade a serviço d’Ele. Por favor, isto supera até a minha capacidade para a ironia. Teu dono é mesmo surpreendente. 
_ Tu te enganaste ao colher esta alma. Fizeste suposições equivocadas, baseadas numa visão parcial dos fatos. Erraste, cometeste uma injustiça. É hora de revertê-la.
_ Sim, sim, entendo, a proclamada onisciência d’Ele impede que cometa qualquer erro. Tudo bem, assumo mais esta mazela por Ele. Mas lembra-te, arcanjo: o mundo nunca mais será o mesmo depois que alguém passar pelo umbral. O medo nunca mais será uma ferramenta útil para o teu chefe.
_ Apressa-te! _ ordenou Miguel. O gemido dos condenados ainda chegava a seus ouvidos quando Lúcifer fez um gesto para um lacaio, que saiu com espanto nos olhos, apressado. Logo ele voltava, acompanhado de uma alma esfarrapada e coberta de chagas. O corpo esquelético, os cabelos esbranquiçados, as costas arqueadas pelo peso de um longo castigo. Miguel reconheceu-o.
_ Entrega-o!
_ Sim, eu obedeço. _ respondeu Lúcifer _ Não estou com disposição para começar outra guerra contra as tuas hordas, irmão.
O miserável foi empurrado na direção de Miguel. Assim que o arcanjo colocou as mãos sobre aquela alma degradada, sentiu a imundície se espalhar por seus dedos. Escondeu a repulsa, envolveu o redimido com as asas e tomou o caminho de volta ao Paraíso. Mas, ainda que não fosse jamais capaz de admitir, começou a entender as motivações de Lúcifer.
“Algumas vezes, é impossível entender os desígnios d’Ele, mesmo para um arcanjo”, considerou, apático, mergulhado numa obediência cega como cabe a um soldado dos céus. Mas lá no fundo, imaginou um outro universo, em que seria dada a ele a alternativa da revolta diante de tamanha barbaridade; resgatar tal criatura, em quem a vileza e a maldade superavam até mesmo a degradação dos castigos que sofreu… quem poderia jamais imaginar que o Pai Supremo daria uma ordem dessas? Talvez se tudo fosse diferente, em outro tempo, ou outra vida, Miguel lutasse ao lado de Lúcifer para manter a ordem das coisas e afastar para sempre a possibilidade do Caos. 



FIM

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