Os óculos do Drummond


Noite alta sobre o Rio. Buzinas ao longe, marulhar das ondas na praia. Ele pensou rápido: “de que será que isso é feito? Latão, cobre, ferro?”. Não perdeu muito tempo na dúvida. Olhou para um lado, depois para o outro… ninguém por perto, a não ser aqueles namorados na areia,  mais preocupados em se agarrar do que espiar o que se passava.
Um rápido puxão, e nada. Mais um… outro… Afinal, os óculos da estátua se soltaram. Ele saiu correndo com o prêmio, já pensando em vender ou trocar por uma pedra de crack.
Quisera talvez um romântico ou um poeta, acreditar que quem roubou os óculos da estátua pretendia ver o mundo pelos olhos do Drummond. Quisera fosse esse ato de vandalismo na verdade um ato de fanatismo intelectual, uma tentativa de captar o entendimento do Poeta, aproveitar-se daquele cérebro privilegiado, enxergar com mais lucidez em meio a este louco mundo. Não é o caso, como se vê. O rapaz só queria conseguir alguns trocados e satisfazer o vício.
Acompanhêmo-lo, então, em sua infame aventura pela orla. Logo reconheceu o cantinho das prostitutas, perto dos bares bem frequentados, reduto de gringos endinheirados à procura do famoso turismo sexual da Cidade Maravilhosa. Cantinho das prostitutas é modo de dizer, que elas estão cada vez mais à vontade espalhadas por aqui, em todos os “cantinhos”. O viciado caminhava, os óculos escondidos na camiseta rasgada. Os olhos perscrutadores de quem se sabia em flagrante delito depararam-se com um traficante. Velho conhecido. Mas por um motivo insuspeitado, ele evitou negociar com o homem. Sentia-se inseguro, quem sabe o traficante é fã do Drummond, ou pelo menos da estátua, poderia achar ruim o dano que ele causou arrancando os óculos daquele jeito. Seja por intuição, seja por paranóia, o ladrão-de-óculos-de-estátua resolveu se afastar.
Quando deu por si já estava a meio da favela no Morro dos Cabritos. Nervoso e com medo, mal notou os novos moradores subindo com materiais de construção. Nem mesmo à noite a favela para de crescer. E aquele papo de defender a ecologia e impedir a expansão populacional do morro, só papo mesmo… Logo logo vai ficar difícil fazer cartão postal de Copacabana que não mostre pelo menos um barraquinho.
Mas o rapaz não pensava em nada disso, preocupado que estava em não ser apanhado com o objeto incriminador nas mãos.  Entrou por uma viela, pulou um córregozinho de esgoto, abriu uma porta de compensado espremida entre dois outros barracos. Mal fez isso e ouviu a voz da avó, acordada àquelas altas horas:
_É você, Maguinho? – E assim ficamos sabendo como se chama o ladrão. Aproveitemos para esclarecer que não é este o nome, apenas um apelido; o nome é Magnelson - idéia do pai, que achava chique dar nome parecido com os dos gringos. Queria algo que se aproximasse de Michael Jackson, só conseguiu pensar em Magnelson, não lhe ocorreu um John ou um Frank. Isso foi muitos anos antes dele morrer por não pagar a droga que tinha comprado de um traficante, deixando o filho num abandono quase completo.
_Sou eu sim, vó. 
Avó materna, vive com ele desde que ele se lembra. A matrona de cabelos brancos e pele escura ficou com o neto e o genro, mesmo depois que a filha – mãe de Maguinho - fugiu com um caminhoneiro. Parecia coisa de novela mexicana, mas era assim mesmo: a mãe fugiu com o amante, o pai morreu em acerto de contas com bandido, a avó doente tornou-se o último parente que lhe resta.
_Tem janta no fogão, menino, esquenta pra você. 
Uma santa, a velha. Mal se aguentava de pé, mas ainda dava um jeito de fazer comida, cuidar do barraco miserável. Só por causa dela encontramos nesta moradia de eternit, papelão e compensado, uma gota de dignidade – um vaso com flores de plástico, um quadro de Nossa Senhora Aparecida na parede da cozinha, uma cortina de panos separando o único quarto da sala, onde descansava um velho sofa com as molas saltando para fora. É nesse sofá que Maguinho dorme. Na verdade, dizer que esta é uma sala é ser muito generoso. É mais um retângulo de chão, esmagado entre o fogão e a referida cortina do quarto, espaço que mal comporta o igualmente referido sofá.
O barraco não era mais limpo, não por desleixo da velha senhora, mas por impossibilidade. Era uma miséria tão completa e envolvente, tão constante, em volta, dentro, até sobre o casebre, que faltava espaço para a higiene. Nem percamos muito tempo falando do buraco-latrina do lado de fora do casebre. Mas já nos detivemos demais na descrição do lugar e nas notas biográficas de Maguinho. O que interessa é saber para onde vai, afinal de contas, essa questão dos óculos roubados, a pobre da estátua lá embaixo, na orla, mutilada.

Tanto devaneamos que perdemos a cena lastimável do rapaz à procura do pequeno cachimbo, feito com canudinho de caneta Bic. Maguinho aliviou a tensão que o envolvia sorvendo uma pedra de crack, que guardava escondida na espuma do sofá. Aqui do lado de fora do barraco o encontramos entre espasmos causados pela droga, olhando as estrelas, depois mirando a estranha armação de metal que afanou. Contra toda lógica, a satisfação do vício deu-lhe alguns segundos de lucidez, suficientes para pensar com um arremedo de clareza:
_No que diabos eu estava pensando quando roubei isso? Irrita-se. _ Quem vai querer essa porcaria? Não presta pra nada! Passei o maior sufoco à toa, por uma besteira. Bem, mas agora está feito, e algum lucro esse lixo vai ter que me dar.
Mas se desfazer do inusitado objeto é tarefa que vai ficar para o dia seguinte. Já é tarde para fazer qualquer coisa. O jeito é tentar relaxar. Dormir, impossível. Faz tempo que Maguinho não sabe o que é dormir por mais de cinco horas seguidas. As estrelas somem lentamente, o céu vai se alterando do azul escuro para o preto de ébano, do preto para o azul escuro e daí para o azul anil, do anil para o claro, novo dia. Horas inteiras se passaram. Na percepção alterada de Maguinho, foram horas ainda mais longas que o normal. 
Deprimido, ele pensa: “hoje mudo de vida, vou procurar um emprego, jogar essa porcaria de óculos em algum canto, ganhar dinheiro sem ser batendo carteiras no calçadão. Mas para dar coragem, só preciso de uma última dose, para fazer parar esse suor - como é que eu vou arranjar emprego suando desse jeito? Eu devia mudar essa roupa de ontem, mas não dá tempo, preciso vender esse trambolho e arranjar umas pedrinhas. Pedrinhas pedrinhas pedrinhas, isso isso isso, para ficar calmo, legal, feliz, convencer qualquer um a me empregar”. 
Assim nasceu morta a boa intenção do jovem punguista. 
_Quer isso? – perguntou, animado, ao traficante Fagulha, na saída do morro _ Troco por duas pedrinhas ou cinco cigarros de maconha, ou uma trouxinha de pó.
_E o que você sugere que eu faça com essa porcaria? Enfie no cú? Nem lentes esses óculos têm!
Fagulha está de mau humor, ficou claro. Esse apelido, o marginal ganhou quando ainda era pouco mais do que um adolescente. Meteu-se numa briga com outro soldado do tráfico, o rival tinha pinos de metal no braço por causa de uma fratura. Fagulha golpeou com a faca bem no lugar onde o outro tinha os tais pinos, saiu fagulha do golpe, tal a força. Ninguém sabe direito se essa história é fato ou lenda, mas ninguém duvida da ferocidade do bandido.
_Vai, minha flor, compra, é de um metal tão bonito… _ disse Maguinho para Pamela, no calçadão, depois de notar que não conseguiria nada com o traficante.
_Se manca, Maguinho, tem graça eu comprar esse lixo. Olha só, não tenho nem onde enfiar esse ferro aí, minha mini-saia é quase um cinto. E o treco é muito grande pra eu guardar dentro de mim _ respondeu rindo a mulata de ancas largas. Maguinho ficou achando que ela foi modesta ao dizer que os óculos não caberiam dentro dela. De qualquer forma, a puta foi menos agressiva que o Fagulha. Mas não ajudou, tampouco.
_Maguinho em sua via-crucis, atrás de um destino para os óculos da estátua, percorreu a orla, as ruas em torno, parou num ponto de ônibus. Embarcou, o desespero aumentando, pulou a catraca e fez um sinal com o dedo médio para o furioso cobrador, desceu três pontos adiante. Correu pela calçada, atravessou a rua, parou na barraca da baiana, esmolou um quitute. A negra, generosa, ofereceu um pedaço de cocada.
_Aproveita e compra um negócio, Mãe Zuê.
_Que diabo é isso, Maguinho?
_Um treco que achei. Acho que é mágico!
_Pra cima de mim, meu filho – exclamou Mãe Zuê entre risos. _Mágica pra mim, só de meu santo – falou e se benzeu. _ O que você andou aprontando, moleque?
_Nada, não quer ajudar, não ajuda! _ respondeu rispidamente e se afastou aos pulos, já arrependido de ter sido agressivo com a bondosa negra. “Depois eu peço desculpas, agora o que eu preciso é me livrar disso aqui e conseguir a minha parada, pra ficar legal”.
A manhã se foi como chegou, de inopino. Veio a tarde, Maguinho só com aquele pedaço de cocada no estômago, mas sem fome. O que o torturava era outra necessidade, necessidade de paz. Paz que ele sabia onde achar, mas ainda não tinha como comprar. A necessidade fez despertar o ladrão, mais uma vez. O homem gordo com cara de turista, estava com a carteira praticamente caindo do bolso. Um movimento rápido, um gesto curto, Maguinho agora tinha uma carteira novinha, de couro. Dentro, azar, só dez reais. Mas pelo menos dava para se livrar da angústia.
Maguinho conseguiu o que queria com Sivuca, outro traficante da área, sempre sorridente e bem vestido. Camiseta de futebol americano, boné de marca, tênis caros.
_Vai, pega logo o que você quer e sai “voado”, você espanta a clientela de nível que eu atendo.
Maguinho nem teve tempo de oferecer os óculos. Irritado, resolveu se livrar do trambolho. Jogou ali mesmo, no meio da rua. Afastou-se a passos largos e, segundos depois, sob o efeito da droga, já não se lembrava mais do objeto.
A exaustão bateu por volta das seis da tarde, Maguinho se aconchegou num banco de praça e mergulhou num sono turbulento, cheio de sonhos monstruosos. Acordou só duas horas depois, com a boca amarga de ressaca. Nem bem abriu os olhos, reparou na armação de metal a seus pés, no banco. São os óculos, ele vai continuar tentando vendê-los. Mas espere um pouco, ele não tinha jogado aquela merda fora? Como é que aquilo veio parar a seus pés? Maguinho devia ter sonhado, não seria a primeira vez.  Na verdade, nunca se desfez dos óculos. Agora é pegá-los e continuar a oferecê-los a quem quer que seja.
Teve uma idéia. Voltar para o Morro dos Cabritos. No pé da favela tem o Mané serralheiro, ele tem um ferro-velho.
_E para quê eu vou querer isso, Maguinho? Olha em volta, tem umas 300 toneladas de lata, ferro, aço, aqui no meu ferro-velho. Como um arame desses vai me ajudar?
_Mas não é arame, é … é… cobre, legítimo, purinho…
_Chispa daqui, moleque _ gritou Mané, aplicando-lhe um chute na bunda _ Muito desaforo tentar me engambelar na minha especialidade, que é metal. Se isso aí é cobre, então eu sou irmão gêmeo da Xuxa! 
O arrogante não notou que, se não se tratava de cobre, tampouco era metal vagabundo. Afinal é de bronze que estamos falando. Maguinho irritou-se com a agressão e com a dor no traseiro. Arremessou os óculos contra Mané. O serralheiro desviou facilmente, os óculos foram se perder numa pilha de bugigangas. Mané pegou um martelo e avançou para o outro. Mas o rapaz já ia longe, morro acima. 
Entrou no barraco, ouviu a tradicional pergunta da avó, “é você, Maguinho?” Ia responder, ficou mudo, olhos arregalados, congelado de terror. Ao lado do vaso com flores de plástico, estavam os malditos óculos, como que mirando-o com suas órbitas vazias.
Maguinho estremeceu. Mas se ele tinha acabado de jogar os óculos contra o Mané!
_Mané, cadê você? Gritou horrorizado. “Como é que ele conseguiu subir antes de mim? Que caminho ele fez? Não me passou na subida, e eu não conheço nenhum atalho”.
_Mané, aparece, filho da puta!
_Que Mané, meu filho, o que aconteceu? Gritou a velha, assustada, entre tosses cada vez mais fortes.
_Vó, o Mané serralheiro esteve aqui, cadê ele?
_Ninguém esteve aqui, menino. A porta do barraco só se abriu agora, que você chegou. Fiquei o dia inteiro deitada, estou mal da bronquite…
Maguinho ficaria preocupado com a saúde da avó, se não estivesse absolutamente apavorado. Aproximou-se dos óculos com desconfiança, experimentou esticar um dedo na direção deles, depois tomou coragem e os agarrou. Deu meia-volta e começou a descer o morro, anda-correndo.
_Mané, Mané, Mané!
_Que foi, cacete? Quem morreu?
_Você subiu o morro agorinha, né? Foi lá em casa devolver os óculos que eu joguei em você, não foi? Não foi?
_Você tá louco, Maguinho. Acha que vou largar meu trabalho pra te devolver aquela porcaria? Tenho mais o que fazer. E quer saber, agora é meu, você não atirou aquilo em mim? Então, agora é meu.
_Você não está entendendo, eu estou com a armação de metal aqui, olha!
_Ué, como é que você pegou de volta?
_Eu não peguei, santa mãe de Deus, eu cheguei em casa e eles estavam lá!
_Impossível, você jogou aqui. Ainda deve estar aqui, esses aí são outros.
_Então vamos achar o que eu joguei em você.
Mané ficou intrigado e resolveu procurar. Reviraram as latas, chapas de alumínio, peças velhas, barras de ferro, onde os óculos tinham caído. Busca completa, resultado infrutífero, nada dos óculos. Os dois olharam para o objeto nas mãos de Maguinho, espantados.
_Maguinho, piada de mau gosto! Você tinha dois desses trecos, jogou um em mim e agora traz o outro para me assustar. Vai ver, os óculos que você jogou caíram em outro canto.
_Mas, Mané… O raciocínio de Maguinho foi interrompido por um novo chute na bunda. Ele até pensou em jogar os óculos contra o serralheiro de novo, mas deteve o impulso, cismado.
Maguinho saiu do ferro-velho e jogou os óculos numa poça de esgoto. Seguiu para casa, abriu a porta, e quase não ficou assustado ao ver o objeto ao lado do vaso. 
Nos dias seguintes foram muitas as tentativas de dar fim à coisa. Uma vez, saiu rumo à praia de Copacabana e enterrou os óculos na areia, bem fundo. Eles voltaram ao barraco antes do próprio Maguinho, como se tivessem asas. Quando o rapaz entrou, estavam no mesmo lugar de antes, ao lado do vaso. Numa outra ocasião, atirou-os ao mar, para trás do ponto onde as ondas começam sua arrebentação. Voltou correndo para casa. Novo fracasso, lá estavam eles, onde já era esperado que estivessem. Nem mesmo a caçamba de um caminhão de lixo deu conta da tarefa. Maguinho ria nervosamente a cada experiência frustrada. Ouvia vez por outra as tosses doídas da avó no quarto, a velha parecia perder o fôlego. Mas não dava atenção a isso, obcecado com o desafio impossível que se lhe apresentava. 
Numa madrugada insone, teve uma idéia diferente. Pegou os óculos, abriu a porta do barraco e os atirou o mais forte que conseguiu. Virou-se imediatamente para a mesinha onde estava o vaso, e respirou aliviado, ao notar que o maldito objeto não tinha retornado magicamente. “Não teve tempo de voltar, eu olhei para a mesinha antes do troço cair no chão, lá longe, só pode ser isso”, pensou. Mas não ficou de todo tranquilo. Passou a noite em claro, olhando fixamente para a mesinha. Medo de ir dormir e acontecer alguma coisa, aquilo voltar…
Logo de manhã, cansado da vigília, Maguinho deixou-se estender no sofá. Ajeitou-se no espaço entre as molas soltas e dormiu sem querer. Um sono tranquilo como há muito não tinha. Sonhou com o pai, a mãe, os dois sorridentes, muito antes do caminhoneiro aparecer e levá-la embora, muito antes do pai entrar em depressão, encharcar-se de drogas, fazer dívidas que não conseguia pagar, morrer por causa disso. Sonhou com aquele fim de semana que eles passaram no Piscinão de Ramos, com direito a churrasquinho de gato e farofa. Eram felizes então, Maguinho e sua família. Sonho real, sentia até o calor do sol na pele, o beijo da mãe no rosto, o abraço do pai. Mas o paraíso daquele delirio foi interrompido bruscamente por um homem, um velho, careca, magro, com um livro na mão, que apareceu bem na frente de Maguinho e disse, com voz colérica:
_Roubou, agora fica com ele!
Maguinho acordou apavorado. Abriu os olhos e começou a chorar. Ali estavam os óculos, exatamente no mesmo lugar, ao lado do vaso com flores de plástico. Levantou-se, quis gritar, mas ficou com medo de acordar a avó, silenciosa no quarto, provavelmente ainda dormindo. Esfregou as mãos até ficarem escamadas, fechou os olhos com tanta força que eles lacrimejaram. Seu rosto tornou-se vermelho de excitação. Imediatamente, soube o que tinha que fazer.
Aproximou-se do quarto, puxou a cortina. 
_Vó, está acordada? Eu vou sair. 
Estranhou o silêncio. Olhou para o despertador ao lado da cama da velha. Dez horas da manhã, ela costuma acordar às seis, tem coisa errada. Maguinho se aproximou. “Vó”, chamou mais alto. Tocou o ombro da velha, sentiu uma rigidez cadavérica, angustiou-se. Sacudiu a mulher, Vó, Vó, nada… Morta, mortinha, morreu durante a noite enquanto ele ignorava suas tosses e só se preocupava com os malditos óculos. “Vou ter que cuidar do enterro”, pensou, em choque, “mas tem uma coisa que eu preciso fazer antes”.
Maguinho pegou os óculos sobre a mesinha. Ignorou os “bom-dia” que ouviu durante a descida do Morro dos Cabritos. Aproximou-se do ferro-velho de Mané, pediu mecanicamente, como quem recita a tabuada:
_Você tem cola-tudo para me arranjar um pouco?
 Mané estranhou o jeito do outro.
_Que é que aconteceu?
_Empresta que eu devolvo sem falta, juro.
Maguinho pegou o tubinho de Super Bonder e tomou o rumo da praia. Andou como um robô pela turística calçada, quase foi atropelado por patinadores e ciclistas, indiferente aos berros e xingamentos que levou. “Sai do caminho, sua besta”, “Vai dormir na cama que é lugar quente”, e assim por diante. 
Avistou a estátua. Reconheceu o velho do sonho, o livro na mão, o rosto magro sem óculos. Aproximou-se em passos decididos, quase correndo. Passou cola nos óculos, e começou a tentar encaixá-los em seu lugar devido. Mas não encaixava, o suor das mãos atrapalhava, a raiva atrapalhava, o medo atrapalhava. O nervosismo foi crescendo, Maguinho começou a esmurrar a estátua. Um policial que passava por perto gritou “Ei, o que você está fazendo?” Maguinho não ouvia nada, como poderia? Esmurrava a estátua, as mãos machucadas. O policial atirou-se sobre ele, agarrou-o, precisou de toda força para afastá-lo do monumento.
_Larga, eu preciso devolver! Larga!
_Calma aí, seu drogado, você está preso.
_Eu preciso colocar no lugar exato, eu preciso devolver, eu preciso…
Os óculos caíram do rosto da estátua, ficaram sobre a calçada, inertes. Meia hora depois, Maguinho estava no banco de trás de uma viatura da polícia militar. 
_Cada louco que me aparece! Comentou o policial que havia surpreendido Maguinho em seus patéticos esforços para devolver os óculos.
_Já roubaram os óculos da estátua duas vezes, mas essa é a primeira vez que alguém agride o coitado do Drummond, disse o policial que veio ajudar o primeiro. _ Bom, vamos levar o menino pro distrito, que isso não é problema nosso.
Maguinho já não pensava em nada. Não pensava na avó morta, abandonada no barraco, não pensava nos sopapos que os policiais lhe ofereceram no caminho para a delegacia. Não pensava nas perguntas que o delegado lhe fizera. Jogado no xadrez, deitado no chão, só pensava nos óculos do Drummond. Aqueles mágicos, tristes, amaldiçoados óculos, ali a seu lado, dentro da cela.

FIM

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