O ladrão de beijos

Uma agitação se formou no centro da cidade, como uma onda inesperada que varre a praia. Ninguém entendeu direito o que tinha acontecido até que o choro nervoso de uma moça destacou-se no burburinho. “Minha bolsa! Ele roubou minha bolsa”, gritava desconsolada. Uma roda de gente se formou em torno dela, logo um policial barrigudo se aproximou com o cacetete na mão. “Desafasta, povo, desafasta pra moça respirar”, berrava sem sucesso. Resolveu brandir o porrete como argumento mais convincente. Foi o que bastou para afastar os curiosos.
Na frente da padaria um grupo, de copos na mão, parou de bebericar a cerveja de depois do almoço para observar o que se passava; “foi assalto”, disse Juca Engraxate, “aquele ali viu quem foi”, disse alguém, “a moça é bonita, está lá toda chorosa”, compadeceu-se uma senhora carregando sacolas de compras.
O motorista de um fusca velho, de porta amarrada com arame, distraiu-se primeiro com a confusão, depois com as belas coxas da vítima ajoelhada na calçada. Bateu na traseira de uma caminhonete cheia de latões de leite. Foi uma bagunça quando os latões tombaram, despejando seu conteúdo no asfalto quente.  
Logo chegou uma guarnição para dar apoio ao guarda barrigudo. Um policial de bigodinho e ar assustado levantou a moça. Outro, de óculos escuros e mangas arregaçadas até quase os ombros, limitou-se a repetir insistentemente: “calma, calma, muito bem, calma…” Dois outros policiais foram até os carros recém acidentados, para desenroscar a situação. 
Toda a cena urbana durou poucos minutos. Mais trabalhoso foi desobstruir a rua e liberar o tráfego. Também não foi fácil acalmar a moça que havia sido assaltada. 
Na delegacia, o depoimento dela foi rico em detalhes, tamanha a impressão que o assaltante lhe causara:
_Era um moreno alto, forte e de rosto largo, com um queixo quadrado. Olhos azuis. Não, não tinha nenhuma tatuagem visível. O cabelo era um pouco ondulado e penteado para o lado. Alguma particularidade? Na verdade, sim. Depois de pegar minha bolsa, ele me beijou. Na boca. Me puxou pra junto dele e me deu um beijão. Fiquei com as pernas moles de susto e caí no chão. Só consegui gritar por socorro depois de uns segundos. 
A garota só não falou que a moleza nas pernas foi causada por algo mais do que o susto. Tinha uma pegada forte, o bandido. Ali na delegacia, relembrando aquele ataque, sentiu um arrepio nas costas. Ao pensar nisso um estranho e dúbio brilho se revelou em seus olhos . 
A moça passou os dados pessoais para o escrivão. Jane Rissato, 21 anos, profissão modelo, solteira, nome da mãe, do pai, essas coisas que são indispensáveis para redigir um B.O. que se preze.
Mais tarde o delegado Antunes trocou impressões com o chefe dos investigadores:
_Não há dúvida. Mais um crime do Ladrão de Beijos. 
_A descrição bate, e o “modus operandi” também. _ respondeu o investigador.
_Estou preocupado. Esse filho da puta já chamou a atenção da mídia. Não preciso dessa propaganda negativa.
_Já lhe disse, doutor, passa o caso para a Fernanda. Ela está louca para por as mãos em cima desse salafrário. E tem o tipo físico ideal para se disfarçar e chamar a atenção do sujeito.
De fato o ladrão parecia ser muito exigente na escolha das vítimas. Antes da Jane, atacou uma personal trainer, moça loira de corpo perfeito; uma atriz em início de carreira, de cintura fina, pernas grossas e seios fartos; uma empresária de quarenta anos que aparentava 25, morena de cabelos longos e boca carnuda. Na verdade, nunca antes o DP fora tão bem frequentado. Os policiais estavam começando a ficar distraídos, tal a frequência com que beldades desfilavam por entre as mesas e arquivos da delegacia para dar depoimento.
Todas falavam a mesma coisa. Mesma descrição física do suspeito, mesma arma utilizada por ele em todos os casos – uma faca; mesma atitude no final do assalto – o beijo roubado. O mais curioso é que, invariavelmente, os objetos roubados apareciam no setor de achados e perdidos de uma agência dos correios, intocados. Documentos, dinheiro, maquiagem, todas essas coisas que povoam as bolsas femininas eram recuperadas em poucos dias. 
Fernanda, investigadora talentosa, acompanhava quase todos os depoimentos. Ficava louca de raiva quando notava uma certa simpatia, para não dizer encantamento pelo bandido, nos olhos de algumas de suas vítimas. “Não se dão valor mesmo. Agredidas, humilhadas, beijadas à força, e ainda parecem gostar do sujeito”, pensava mal-humorada. Isso só fazia crescer a vontade de prender o ladrão e dar-lhe um corretivo.(…)
A policial tem o perfil para se passar por vítima. Alta, cabelos castanhos claros, olhos de um cinza esverdeado profundo. Fernanda sempre cuidou bem do próprio corpo, e o resultado se vê em suas pernas bonitas, quadris largos, ombros de nadadora. 
O plano não exigiu nenhum assombro de estratégia. Fernanda ficaria na rua em que o marginal pratica seus crimes – sempre a mesma, no centro da cidade. Policiais estariam espalhados no entorno, dando apoio. Quando o homem agisse, seria cercado e preso.
Quando Fernanda se apresentou vestida para o disfarce, usando minissaia e salto alto, os cabelos soltos sobre os ombros, teve que aguentar os assobios e comentários dos colegas. Estava mesmo diferente, sem a arma na cintura, as calças jeans, boné da civil enterrado na cabeça. Parecia uma dessas aspirantes a famosas que se candidatam ao Big Brother só para posar na Playboy.
Fernanda sabia que não podia ficar parada no mesmo lugar o tempo todo, como garota de programa. Se o bandido não se interessasse logo por ela, teria que abortar a missão e tentar de novo no dia seguinte. Caso contrário, poderia despertar suspeitas. 
No primeiro dia de campana, a equipe de policiais apenas perdeu tempo. 
No segundo dia, resolveram montar o cerco mais cedo, no início da tarde – mesmo horário em que Jane, a modelo, fora atacada. Mas nada aconteceu.
No terceiro dia, Fernanda deu uma chave de braço num engraçadinho que se aproximou dela, cheio de mãos e dedos bobos, passando uma cantada e apalpando sua bunda perfeita. O chefe dos investigadores ficou uma fera.
_Espero que o ladrão não tenha visto sua perícia no judô. _ reclamou.
_O que você queria, que eu deixasse aquele babaca passar a mão em mim? _ respondeu Fernanda.
Os dias seguintes correram sem novidades. Os investigadores já estavam quase desistindo. O Ladrão de Beijos não tinha feito nenhuma vítima nos últimos dias. Talvez tivesse desconfiado de alguma coisa, ou mudado para outro ponto da cidade, ou estivesse apenas de férias. 
Apesar da moral baixa depois de tantos fracassos, resolveram tentar mais uma vez. Eram seis da tarde, horário em que o centro ficava movimentado com pessoas indo para casa depois do trabalho. O criminoso parecia gostar de agir nesse horário, aproveitando-se da indiferença coletiva e da confusão de fim de tarde. Fernanda começou a circular pela rua, parando na frente de uma vitrine ou outra, fingindo observar vestidos, sapatos, bolsas expostos nas lojas. Na verdade, não tirava os olhos do reflexo no vidro, perscrutando as calçadas, analisando todos que se aproximavam dela.
Foi quando notou um tipo bem vestido que se encaixava na descrição do suspeito. Homem jovem, alto e muito bonito, olhos de um azul sedutor. O instinto de policial entrou em ação. Seus músculos se retesaram como um bodoque pronto para disparar. O homem vinha tranquilamente em sua direção. Tirou um objeto brilhante do bolso, encostou algo gelado nas costas dela.
_ Boa tarde. Estou com uma faca nas suas costelas. Por favor fique calma, não vou lhe machucar. Só quero sua bolsa. 
A voz do marginal era macia, porém autoritária e intimidadora. Fernanda entregou a bolsa “péssima idéia esconder minha arma ali dentro”, pensou irritada. Teria que deter o suspeito no braço mesmo. 
O homem pegou a bolsa, fez com que Fernanda se virasse para ele e a beijou com energia, enfiando a língua na boca da policial, apertando-a contra ele. Fernanda não pensou para agir, seus movimentos foram puro instinto. Quando o ladrão tentou se afastar, ela o segurou com os braços fortes. Enroscou sua perna entre as dele e o derrubou na calçada. Caiu sobre o assustado sujeito e imobilizou-o. Longos segundos se passaram até que seus colegas chegaram correndo, armas em punho. 
Fernanda levou um tempo para perceber que, depois de conter o bandido, suas bocas continuaram juntas num beijo violento, quente, agressivo, mistura de raiva e tesão. Mesmo quando sentiu as mãos do investigador-chefe agarrando seus ombros e tentando separá-la do ladrão, relutou um pouco em interromper aquela carícia.  
Ficou contrariada com aquela situação. Levantou-se irritada e acertou um chute entre as pernas do criminoso antes de ser contida pelos colegas. Não queria admitir, mas aquele traste tinha mesmo um certo encanto. 
Mais tarde na delegacia descobriu que o sujeito era de família tradicional da cidade, tinha posses, cursou faculdade de engenharia mas nunca trabalhou – nem precisava. A psicóloga forense diagnosticou um caso raro de “cleptomania emocional” com perversão sexual. Pervesão tão inocente que não merecia nem esse nome, a intenção do rapaz era apenas beijar as moças bonitas da cidade. O assalto era uma desculpa para a proximidade física. Inexplicavelmente tímido apesar de bem-apessoado, ao que consta, o marginal nunca tivera uma namorada.  Havia grande chance de que ainda fosse virgem aos 29 anos de idade.
_Não é um simples tarado, muito menos um bandido comum _ disse a psicóloga. _ Na minha opinião, trata-se de um apaixonante caso de obsessão patológica. 
A psicóloga frisou a palavra “apaixonante”. Deu sinais de ter se tornado mais uma das muitas admiradoras do rapaz. Ajeitou involuntariamente os cabelos curtos e os óculos embaçados. Fernanda percebeu isso, mas não conseguiu condená-la, como havia feito com as vítimas do bandido. Na verdade, o rapaz deixou de parecer tão repulsivo a seus olhos, desde aquela prisão. Sem dúvida, a mais bizarra prisão que já fizera na vida. 
O Ladrão de Beijos foi encaminhado para um centro de detenção provisória para esperar julgamento. Ficou em cela especial por ter curso de nível superior. Dividia espaço com um banqueiro de colarinho branco e um advogado que levava celulares para integrantes de uma facção criminosa dentro do presídio. Péssimas influências para um reles “batedor de carinhos”. Mas logo conseguiu mais espaço; o banqueiro não ficou nem três dias na cadeia.
Fernanda lutava ferozmente mas não conseguia parar de pensar no ladrão. Ladrão, ladrão mesmo não era, porque devolvia tudo que roubava. Quase tudo, o beijo ficava para ele. Depois de muito resistir, decidiu visitá-lo na cadeia. 
Conversaram muito naquele dia. Fernanda percebeu sensibilidade, inteligência, cultura, virtudes no rapaz. 
_ Você poderia voltar na semana que vem? _ pediu.
_ Prometo _ disse ela, meio arrependida de ter ido.
E assim se passaram os finais de semana seguintes. Fernanda na cadeia todo domingo conversando com Rodrigo – era esse seu nome. Dali para o namoro foi um salto. Fernanda prometeu esperar que Rodrigo cumprisse pena, para que pudessem ficar juntos.
Rodrigo foi condenado a três anos de cadeia por roubo a mão armada. Saiu em oito meses por bom comportamento. Fernanda foi recebê-lo na porta do presídio. Foram dali direto para o apartamento dela, onde o rapaz finalmente perdeu a virgindade. 
Dois meses depois se casaram. Rodrigo causou inveja em todos os policiais do departamento onde Fernanda trabalhava, tão linda ela estava no vestido branco. Fernanda provocou ciúmes em todas as vítimas de Rodrigo – algumas delas até apareceram na cerimônia, chorosas e suspirantes.
Até onde se sabe, o rapaz superou a compulsão e nunca mais roubou beijos por aí. Hoje em dia, sua única e agradecida vítima é Fernanda.



FIM

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