Inflação

     
O fim de semana estava no fim (desculpe começar essa breve história com uma repetição tão gratuita de palavras, mas o fato é que já eram mais de seis da tarde de domingo).
   A campainha tocou bem na hora em que meu time ia todo pro ataque, como na música do Skank. Não me movi da poltrona, na esperança de que o "visitante" desistisse.
   Sheik passou a bola pra Romarinho, que serviu Guerrero e… De novo a campainha, estridente, insistente.
   Levantei-me mais impulsionado pela emoção do lance no Pacaembu do que pelo chamado na porta.
   "Pra foraaaaaaaaaa" berrou o narrador. "Béééééééé", berrou a campainha pela enésima vez.
   Sem uma gota de humor que restasse, atendi ao interfone. Uma voz baixa, cavernosa, sussurrou mais do que falou:
   - Desculpe incomodar, mas o senhor não teria algum dinheiro para eu comprar remédio?
   De mal humor, fui taxativo:
   - Tenho não, moço, desculpe. 
   E já ia colocando o interfone no gancho quando ouvi a súplica do outro lado:
   - É pra comprar remédio, doutor. "Qualquer" cem reais ajuda.
   - Cem reais? - não consegui evitar a pergunta, incrédulo.
   - Remédio é caro, doutor, mas "cenzinho" já alivia.
   Por um momento tive vontade de abrir a porta só pra ver a cara do sujeito que teve a coragem de fazer um pedido daqueles.
   Sou um ótimo cidadão, vou à igreja, trabalho, de vez em quando faço doações de alguns centavos para os pobres - só o suficiente pra me pagar uma consciência tranquila e cristã… mas aquele pedido me pareceu "um pouco" demais. 
   - Não tenho nada mesmo, passar bem. 
   Desisti de encarar o pedinte. Pra quê? Pra ficar com mais raiva ainda? Com certeza era um bêbado que ia gastar tudo em pinga. 
   Voltei pro meu sofá e pro meu futebol. Mas aquela conversa não me saía da cabeça. Minha nossa, a inflação devia ter subido muito mesmo. Eu sou da época em que esmolas giravam em torno de cinquenta centavos, um real… Agora o povo já bota preço na doação. Será que eles se baseiam nos índices da FGV ou na cotação do dólar? Dólar nada, devem estar cobrando em Euros…
   Dia seguinte, cedinho, olhei a caixa de correspondência. IPVA, IPTU, imposto disso e daquilo, taxas, contas.
   De repente o valor pedido pelo mendigo não me pareceu mais tão absurdo.

MC, 26/01/2014

(inspirado livremente em fatos reais)

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