Perséfone



            Pelo bosque escuro forrado de musgo, entre altas árvores de diferentes espécies, caminha Perséfone, pensativa. Livre das garras de Hades, demora-se no bosque, retardando a chegada à casa de seu severo pai. Um simples encontro de olhares sempre que volta para o antigo lar é suficiente para deixar claro que não é bem-vinda, como se os quintos dos infernos a contaminassem irremediavelmente.
            Anda lentamente, portanto, meditando sobre o triste destino que a espera. Metade da vida como jovial princesa, metade como sombria feiticeira. Amargura e singeleza descortinando-se como se fossem páginas de um livro por escrever, futuro e passado transpassando o presente. A melancolia, porém, é o único sentimento de que sua alma se tornou capaz. Não há felicidade em nenhuma das esferas que agora dividem sua existência.
            Melhor seria morrer de vez, pensa a bela jovem enquanto tropeça numa raiz e outra de árvores centenárias. “Essas raízes, retorcidas e secas, ainda assim são tão mais frescas que meu espírito”, pensa a deusa, impressionada.
            Caminha assim mergulhada em maus presságios quando nota algo entre os arbustos.
            Reclinado sobre um espelho d`água, um rapaz parece hipnotizado, olhando para o leve tremular da superfície. Perséfone não consegue esconder o encantamento que tal visão lhe proporciona. É um belo adolescente, mais belo que o pôr-do-sol numa tarde de inverno. Suas faces coradas escondem o calor de uma rocha banhada pela luz do meio dia. Seus cabelos dourados parecem raios luminosos aquecendo as sombras.
            Fascinada, Perséfone se atreve a uma aproximação. Toma cuidado para não provocar qualquer ruído que tirasse o belo jovem de seu devaneio particular. Movimenta-se como uma víbora entre as galhas secas que caíram dos abetos.
            O moço parece embevecido e incapaz de desviar os olhos do lago. Dá a impressão de observar um mundo novo absolutamente apaixonante, o que aumenta a curiosidade de Perséfone. Depois de contemplar aquele quadro por longos minutos, ela resolve dirigir a palavra ao jovem.
            _ O que observas, assim entretido, belo rapaz?
            Mas o adolescente não se volta para ela, nem se digna desviar os olhos daquilo que observava antes. Parece não ter ouvido coisa alguma. Intrigada Perséfone se aproxima ainda mais e coloca-se logo atrás do moço.
            _ Não me ouviste? _ pergunta, sem obter qualquer resposta.
            Logo a deusa percebe o que prendeu tão fortemente a atenção do outro. É o próprio reflexo do jovem no espelho d’água. Algumas ninfas que passavam por ali notam a presença de Perséfone e se aproximam. Ela pede informações e descobre que o rapaz chegou ao bosque há muitos dias. Todas as criaturas da floresta imediatamente se apaixonaram por ele, encantadas com sua beleza sobre-humana. Aquele ser irradiava simpatia e ternura por onde passava, até que teve sede e reclinou-se no lago para beber. Depois de alguns goles, pareceu petrificado. As fadas e ninfas que o cercavam assustaram-se com a repentina mudança em seu semblante, instantaneamente tornado mais lívido que a neve, os olhos arregalados.
            _ Desde então, não mais se moveu da margem do lago; permaneceu assim, exatamente como o vedes agora _ concluiu a ninfa. _ Seu nome é Narciso; nada come ou bebe desde então. Se continuar assim, morrerá _ esta última afirmativa veio acompanhada de sinceras lágrimas.
            Perséfone conclui que deve ajudar. Seria mais uma desculpa para retardar o enfrentamento com Zeus, sempre desagradável, e uma chance de fazer algo de bom por um ente maravilhoso. Ela percebe que está irremediavelmente apaixonada pelo adolescente _ pouco mais que um menino, tão diferente de seu esposo egoísta e cruel.
            Enquanto Narciso permanece com o rosto a poucos centímetros da água, Perséfone chama-o novamente, dessa vez pelo nome.
            _ Narciso!
            Não consegue resposta e insiste, mais alto:
            _ Narciso!
            Nada. Ela se inclina sobre o moço e o toca no ombro. Vê então seu próprio reflexo na água, acima do de Narciso, e nota que ele sequer se dignou desviar o olhar para a imagem dela no lago. Tenta erguê-lo envolvendo os ombros do rapaz com as mãos, mas surpreende-se com uma força inexplicável que parece manter Narciso naquela posição. Repete a tentativa diversas vezes, até que se rende aos fatos: é impossível tirar o menino daquele lugar por meio da força física.
            _ Mas deve haver um jeito _ exclama Perséfone, angustiada.
            _ Há uma forma _ responde a ninfa. _ Se algo mais belo do que ele conseguir desviar sua atenção do próprio reflexo, então este maligno encanto que o mantém cativo será rompido.
            Perséfone desanimou diante de tal explicação. Nunca tinha visto nada mais belo que o rosto de Narciso e não tinha a menor ideia de onde procurar tamanha maravilha.
            _ Tu mesma podes romper o encanto _ revelou a ninfa. _ És mais bela que ele.
            _ Mas minha imagem já se refletiu bem na frente do jovem, e nada aconteceu _ questionou Perséfone.
            _ O teu reflexo não basta. Ele precisa da imagem real de tua face luminosa para se livrar da mortífera situação em que se encontra.
            Perséfone julga que o sacrifício vale a pena, um pouco pela falta de perspectiva que sua vida apresenta, um pouco pela vaidade de seduzir o belo Narciso. Despe o manto com lenta cerimônia e caminha até o lago. Mergulha os pés delicados, depois as pernas roliças, afunda lentamente até os seios perfeitos e, finalmente, mergulha a bela cabeça de cabelos castanhos. Tão logo faz isso, percebe-se encarcerada numa armadilha mortal. Debate-se, desesperada, mas não consegue resistir muito tempo. Morre afogada aos pés de Narciso.
            Este, fascinado por si mesmo, nota apenas uma leve ondulação na água, que corrompe seu belo reflexo. Força a vista em busca da imagem encantadora, mas tudo o que consegue distinguir é o corpo sem vida de Perséfone submerso ao alcance de um braço, os cabelos longos espalhados pelas águas, a pele muito branca, a formosura radiante. Imediatamente Narciso se esquece de sua própria imagem e apaixona-se pela deusa. Tenta alcançá-la afundando as mãos no lago, mas perde o equilíbrio e mergulha, para o desespero das ninfas e fadas que assistiam a cena.
            Narciso está morto antes que se possa pensar em ajudá-lo. Seu corpo flutua ao ritmo da água, aproximando-se cada vez mais do de Perséfone. E assim, num abraço gelado, os lábios mortos se tocam suavemente num beijo proibido.
            Todas as criaturas do bosque choram pelos dois infelizes num longo e triste funeral sem túmulo.


MC, 6/08/2010

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