Casa nova III - Partida sem adeus

                                III

O homem estranhou a calmaria, tanto dentro de casa como no quintal. Há vários dias não recebia a visita do compadre Tico-Tico. O bichinho tão sem-cerimônia para invadir a casa e se esparramar, não dava as caras há um tempão. Não era ouvido, nada de trinados ou algazarra. Ele, a esposa Tico-Tico e o filhote. Todos sumidos.
Sabia o homem que o filhote logo se tornaria independente. Tornava-se cada vez maior. Na última vez que o homem foi ver como estava o afilhado de asas, surpreendeu-o de olhos abertos e vivos, o corpo recoberto de densas penugens, quase penas. Outro dia flagrou a mãe numa longa confabulação com o filho, na beira do ninho. Abria e fechava as asas, enquanto gorjeava o que tinha grande probabilidade de serem instruções de voo. O pequeno parecia embevecido, acompanhando a aula com atenção de aluno aplicado.
Mas nos últimos tempos a agitação tinha desaparecido totalmente da cerca viva onde o ninho foi construído. Os passarinhos de várias qualidades que sempre apareciam, estavam rareando as visitas. Um casal de rolinhas que dava o ar da graça com assiduidade tinha trocado a cerca viva por uma árvore próxima, em cuja copa ficava longas temporadas.
            Cismado, o homem decidiu conferir se estava tudo bem. Aproximou-se com cautela do ninho dos tico-ticos, afastou as ramas da cerca. Entendeu tudo. O ninho tinha sido abandonado. Já começava a se desfazer. O filhote devia ter concluído as lições de voo, autorizando a família a procurar outro cantinho para morar.
            Sentiu-se melindrado. Tão abandonado quanto o ninho. Ir embora daquele jeito sem nem dizer adeus? Justo aquele tico-tico que tanto gostava de um dedo de prosa a respeito do que fosse… Isso não é jeito de tratar um compadre.
            O tempo passou, veio o inverno e voltou a primavera. O homem e a mulher já não pensavam mais nas aves o tempo todo, mas a lembrança dos amigos de asas manifestava-se regularmente, sobretudo na hora de sair de casa, quando era inevitável passar pela cerca viva.
A vida ia escoando seu rumo apesar de uma certa saudade.
            Num domingo, o homem ouviu um barulho na cozinha. Foi até lá e deparou-se com um pequeno tico-tico, piando freneticamente, dando notícias naquela sua língua de passarinho. A princípio o dono da casa pensou que fosse o compadre de volta pedindo desculpas pela saída abrupta. Mas uma observação mais atenta revelou que na verdade quem estava ali era o tico-tico seu afilhado, bebê que tinha virado adulto. “Parece muito com o pai, o velho compadre deve ter ficado orgulhoso”.
O homem esfarelou um biscoito e ofereceu à visita, que bicou e bicou, enchendo a pequena pança. O passarinho deu dois trinados em agradecimento e voou até a estante de livros, na sala. “Ah, de novo não”, pensou o homem, preocupado com os clássicos. Imaginou que logo a cerca da casa estaria novamente ocupada por um ninho.
Não há como garantir que aquele era o filho do compadre. Mas há motivos para suspeita: a ousadia ao invadir a casa, a disposição para explorar a sala e, sobretudo, o gosto pela literatura revelado naquele sobrevoo dos livros – tudo aquilo parecia um filme assistido pela segunda vez.
 O homem decidiu que aquele era, sim, o “seu tico-tico”. A volta do filhote se tornou para ele uma dessas certezas que acumulamos na vida. Nascem muito mais do coração do que das evidências.


MC, 19/2/9

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