Revelação


“Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades!  Tudo é vaidade”
Eclesiastes 1,2



            Hermes estava de mau humor. Já sabia que acordaria assim desde a véspera, depois de toda aquela cerveja, carne, música. Mesmo enquanto se divertia, a promessa da chegada de outra segunda-feira permanecia sobre sua consciência, como um urubu pairando sobre a carniça. A ressaca tornou ainda mais opressivo o esforço para levantar-se da cama naquela manhã. E para quê? Mais um dia sob o sol, a ser preenchido com um trabalho que fazia cada vez menos sentido para ele. Mas não havia escolha. Precisava do trabalho para sustentar seus muitos vícios. 

            Houve um tempo – ainda conseguia se lembrar? – em que o idealismo pueril era sua maior motivacão. Naquela longínqua época de faculdade, mudar o mundo ainda não era um cliché, mas a única razão para alguém se dedicar ao jornalismo. Isso foi muito antes dos sonhos estudantis serem massacrados pela realidade do Mercado. O Mercado, essa poderosa entidade, medusa de mil cabeças, dragão sem rosto. Não, para Hermes o Mercado tinha rosto sim. Tinha voz. Ocupava uma sala no final do corredor daquele grande jornal diário. Atendia pelo nome de Sillas, editor executivo. .

            Foi Sillas quem ensinou as regras do jogo. Nenhuma piedade, nenhuma consideracão pelos  ideais daquele jovem jornalista. As lições começaram com a sistemática demolição da ética, dos valores e crenças de Hermes. “Bom caratismo não vende jornal”, reza um dos mandamentos do Mercado. “Publique, se é verdade ou não, vê-se depois”, determina a cartilha do sensacionalismo. E a pressa, o maldito fator tempo determinando o ritmo industrial de produção dos repórteres. O grande relógio de algarismos romanos e ponteiros em forma de flecha, colocado na parede da redação, parecia gritar a cada segundo : “notícia boa é a que sai no jornal. Se ficar muito preocupado em checar as informações, acaba perdendo o dead-line”. E perder o dead-line é uma passagem só de ida para o inferno.

            Hermes não se lembrava exatamente quando se tornou uma versão mais jovem de Sillas. O fato é que um belo dia descobriu-se pensando e agindo exatamente como o chefe que tanto odiava. Foi subindo de posto no jornal, passando para novos jornalistas as mesmas regras que recebera. Mostrou tanto empenho em cumprir as metas do Mercado que tornou-se o braço direito de Sillas. A relacão entre os dois não era perturbada por nem um fio de divergência. Havia uma entrega quase religiosa às imposições da empresa. Eram tantos os interesses a observar, que sobrava pouco espaço para o bom jornalismo. Mas, que diabo, não foi Hermes quem criou as normas, por que seria ele o único a nadar contra a maré?

            O triste é que havia muitos outros “Hermes” espalhados pelas redações, lojas, fábricas, prefeituras. Cada um deles  achando que não fazia grande diferença no estado das coisas. Tanto cinismo individual, desaguando num oceano de hipocrisia coletiva, foi como um tapa na cara do povo. O monstro sem cabeça acordou de seu sono em berço esplêndido. A revolução que se seguiu foi desconcertante. Passeatas primeiro, tumultos depois, depredação, saques, violência.
O Estado respondeu. Usou o último argumento, a palavra final de quem não tem poder de convencimento – a força. Prisões, espancamentos, expatriações, mortes... A anarquia foi logo sufocada, ainda em seus primeiros estertores. Rápida como surgiu, a rebelião desapareceu.

            Então o vazio. O estado policial. O sítio e a lei da mordaça numa reedição jamais imaginada. Não houve lugar sequer para a comodista “imprensa livre”. Os cínicos das redações colheram os frutos da indiferença. Amargaram o frio da mudez imposta pelas armas. Calaram e desapareceram.

            Tudo isso aconteceu muitos anos antes dessa manhã em que Hermes regurgitou cerveja e ressaca, de mau humor, pesando os prós e contras  de mais uma segunda-feira de trabalho.
Ele, como tantos outros jornalistas, tornou-se blogueiro. Mas com o confisco de todos os computadores domésticos e o monopólio estatal de acesso à internet, esta função mudou muito. Em vez de uma redação de jornal, seu local de trabalho passou a ser a lan house pública mais próxima, onde o acesso à web é restrito e controlado pelo Estado.
O Governo escolheu o confisco das máquinas particulares como uma das ferramentas de repressão. Ser pego com um notebook ou computador em casa é crime, punido com cadeia e castigos físicos. Só há permissão para uso de computadores públicos devidamente monitorados. Hakers são condenados à morte em julgamentos sumários.

            O conteúdo dos blogs também mudou radicalmente. Uma vez caladas as mídias falada e escrita, faltava destruir a liberdade na Rede de Computadores. Blogueiros, longe de questionar ou promover o debate, são agora meros compiladores de conteúdo oficial. Propaganda do Regime, que precisa ser disseminada como verdade absoluta. Disseminá-la é o dever de pessoas que antes exalavam credibilidade e isenção. Hermes era um desses, mesmo nunca tendo merecido a confiança dos leitores. Passou a emprestar sua assinatura avalizadora para as mentiras oficiais.

            Mas a indiferença de Hermes, tão longamente cultivada, acabou de forma abrupta numa desintegração de nervos. Sentado à frente do computador, ele teve os olhos repentinamente invadidos por uma luz ofuscante. A dor abriu caminho à força entre a neblina da cegueira.

            Hermes ergueu-se assustado. Caiu. Levantou-se novamente. Apoiou-se na cadeira para não tornar a cair. Tudo estava completamente mudado. Aos seus olhos machucados, as pessoas se mostraram como realmente eram: cordeiros, bonecos, peças numa engrenagem. As mesmas faces sem expressão, os mesmos movimentos mecânicos. Hermes viu-se acuado. Gritou, mas não teve certeza se sua voz saiu da garganta. Lutou, quis fugir daquela sala de loucos, fugir daquela ordem artificial, tão contraria à ordem natural das coisas. Foi quando sentiu o peso de um cacetete e a dor como uma agulha na nuca.
            Quando acordou na cela do manicômio, os braços atados por uma camisa-de- força, Hermes teve consciência imediata de tudo que o cercava. A cadeira chumbada ao solo, o colchão sobre o piso frio. As paredes revestidas com almofadas e uma pequena banqueta também chumbada. Sobre ela, um volume de capas gastas. Hermes aproximou-se e leu o título. “Admirável Mundo Novo “. Não notou a ironia sádica de seus algozes: deixaram-lhe um livro, mas impediram-no de folhear as páginas.

Pseudônimo – SOMA
15/05/2008


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