O redimido
(Este conto deve ser lido depois de "O Resgate", também neste blog)
A caminho do Paraíso, Miguel
continuava sentindo a opressiva maldade que o envolveu durante toda sua estada
no Inferno. O sofrimento das almas condenadas parecia acompanhá-lo. Ainda podia
ouvir os gritos de dor.
Olhou de soslaio para seu repugnante
companheiro: a alma que havia tirado das garras de Lúcifer, poucos segundos
atrás. Seu estômago se revoltaria, se o arcanjo fosse capaz de tal sensação.
Aquele espírito, ainda coberto de
chagas, impregnado do mal cheiro da vilania, traía um insolente entusiasmo nos
olhos brilhantes e sossegados.
_ Finalmente! Demoraste a cumprir a
ordem de teu Senhor, arcanjo _ reclamou com voz suave, embora marcada por um
tom arrogante.
Miguel conteve uma resposta irritada
mas, inconscientemente, levou a mão até o cabo da espada. Ele daria qualquer
coisa por uma contraordem determinando a devolução daquele infeliz para a mais
recôndita masmorra do Inferno.
Em vida, nunca faltou nada àquele
homem. Nasceu em uma das famílias mais ricas do mundo, mas abriu mão de todo o
luxo por conta da interpretação que fez do Livro Sagrado. Abraçou o estoicismo
e colocou a fortuna a serviço de sua “causa”. Viveu em buracos no chão e
cavernas nas montanhas, pregou a Guerra Santa contra os invasores de sua nação
e ajudou a conduzir o povo à liberdade. Depois, virou-se contra os antigos
aliados quando enxergou neles o novo foco de opressão; declarou guerra à Grande
Potência. Liderou um grupo extremista; entre os seus atos mais sórdidos,
destacou-se pela infâmia um atentado na capital do mundo: ele derrubou o que
considerava serem as torres da tirania, matando instantaneamente quase 3 mil
pessoas. Vangloriou-se da própria eficiência e atribuiu a Deus o resultado
prodigioso de sua ação.
Vivendo sem endereço fixo, escapando
de seus perseguidores, enganando a morte incontáveis vezes: assim foi a vida
deste homem. Mas um dia tudo acabou.
Ao contrário de todas as
possibilidades, “O Príncipe” não foi executado pelo Tribunal de Haia, nem por
seus inimigos; morreu solitário de ataque cardíaco, numa gruta nas montanhas de
seu país, discretamente. Tão discretamente que, até hoje, a humanidade ainda
procura por Osama Bin Laden – nome como “O Príncipe” ficou famoso na Terra.
Sua morte é conhecida apenas por
seus partidários mais chegados; nem mesmo sua família foi informada do fato.
Por conta disso, para muitos, o velho terrorista ainda está vivo, escondido em
algum lugar. Essa crença é motivo de ânimo para seus seguidores desinformados,
e de terror para bilhões de pessoas.
Nos portais do Paraíso, trombetas
soaram ao primeiro sinal da chegada do redimido. Um séquito de serafins
ofereceu-lhe homenagens e unguento para as feridas antes de introduzi-lo à
glória dos abençoados.
Miguel ficou onde estava, ainda sem
entender a atitude divina. Um serafim notou a perplexidade do arcanjo e se
aproximou:
_O
que te aflige, filho?
Depois de um silêncio constrangido,
Miguel respondeu:
_Serei eu o único que não entende os
desígnios divinos neste caso? Como resgatar tal monstro do castigo eterno? Isso
vai contra tudo o que sempre pensei de nosso Criador.
_Há coisas que não sabes, criança.
Cuidado com a arrogância, foi ela que perdeu teu irmão caído. Nosso Pai não te
deve satisfações, ou a qualquer um de nós. Tu não poderias jamais imaginar, mas
naquela tragédia ocorrida na grande metrópole, em que tantos inocentes
morreram, havia um que merecia o fim que teve.
_Como, mestre? Será possível?
_Sim, filho, sim. A encarnação do
mal estava entre os ocupantes de uma das torres. Vivia na opulência, era quase
intocável na Terra; já acumulava mais poder do que muitos líderes de grandes
nações, mas de forma sub-reptícia, como um verme que se alimenta na escuridão.
Este infeliz que acabaste de trazer para o nosso meio é outro pobre ignorante:
acredita que está aqui porque o Pai abençoa sua visão deturpada e monstruosa da
fé. Não se trata disso: o Príncipe só está aqui porque, ao agir como um
genocida, inadvertidamente, eliminou a única e real ameaça ao Reino de Deus na
Terra. Claro que o pobre idiota não tem a menor ideia disso. Chegou ao Paraíso
por vias tortas e, de certa forma, a crença equivocada de que estava certo faz
parte de seu prêmio. Passará a eternidade na ignorância.
_ Não é possível, mestre –
desacreditou Miguel. _ Matar tantas pessoas para executar um único culpado! É
hediondo!
_ Não cabe a ti entender, criança.
Só posso afirmar que, se o Anticristo tivesse sobrevivido, milhões morreriam. E
o Príncipe, ainda que sem saber, tornou-se um aríete nas mãos do Senhor.
O serafim juntou-se ao cortejo que
acolhia o recém-chegado, deixando para tráz um atônito arcanjo. Em vez de se
apresentar diante do Trono do Santíssimo, Miguel resolveu percorrer as mais
altas e desoladas montanhas terrestres em busca da serenidade que perdera.
FIM
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