Casa nova II - Notícia de um batizado
O
homem acordou meio de ressaca, querendo ter dormido mais. Tateou às cegas, até
que encontrou o relógio ao lado da cama. Confirmou o que a luz fria e azul que
vazava pelas frestas da janela indicava: não eram nem seis horas da manhã.
Acordar a essa hora num raro dia de folga era tudo, menos agradável.
Logo
percebeu o que o despertara. Uma confusão de trinados. Era um tal de passarinhada
cantando na frente da casa, que a anarquia não deixava um mínimo de espaço para
o silêncio. Olhou para a mulher a seu lado, ainda dormindo profundamente. Como
podia ignorar tanto barulho? Resolveu levantar-se com todo cuidado para não
despertar a companheira. Calçou as chinelas e foi para a sala.
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A família
Tico-Tico é acostumada a madrugar. Antes das cinco horas, o pai tem o hábito de
esticar as penas e dar uma revoada pelo quintal atrás do café da manhã. Pode
ser uma minhoca ou, nos dias de sorte, um grilinho bem pequeno para caber em
seu bico modesto. Quando volta para o ninho, sempre se depara com a mãe e o
filhote despertos. Dessa forma, normalmente os primeiros raios de sol encontram
toda a família de bucho cheio.
Esse,
porém, é um dia especial. O filhotinho recém-nascido vai ser batizado. Vem
convidados de perto e de longe, amigos de longa data. O celebrante vai ser o
pomposo Cardeal, com sua mitra vermelha, sua bata de plumagem branca.
Na
véspera, pai Tico-Tico visitou seu mais ilustre vizinho – o humano que mora na
casa em frente ao ninho. Foi convidá-lo pessoalmente para o evento. Ficou na
sala, de peito estufado de orgulho, trinou o convite com a mais melodiosa
composição. Mas desconfia que, como de costume, a obtusa criatura sem penas não
entendeu nada. Ficou com a mesma cara pasmada de quando o Tico-Tico chegou por
ali, algumas semanas atrás, à procura de um bom lugar para morar.
De
qualquer forma, se entre muitos humanos o tico-tico é considerado ave ordinária,
entre seus pares alados goza de grande consideração. O fato de viver tão perto
dos poderosos homens é motivo de incredulidade e até inveja por parte de
voadores de alta estirpe, como o sabiá, o bem-te-vi, as saíras e os surucuás
todos. Prova disso é que todos estes confirmaram presença no batizado do
pequerrucho ticotiquinho. E Cardeal declarou-se orgulhoso em presidir a
cerimônia. Viajou de longe, um remanescente de mata atlântica há muitos
quilômetros dessas bandas, só para oficiar o batizado.
O
jardim da casa estava coberto de convidados quando os primeiros raios de luz,
frios e azulados, anunciaram o alvorecer próximo. Cardeal limpou a garganta. “Passarinhas
e passarinhos, aves de plumagem e de canto, semeadores da natureza, caçadores
das florestas, senhores do céu. Estamos aqui para celebrar o batizado de mais
um de nossos irmãos voadores, o pequeno ticotiquinho, primogênito de nosso
honrado amigo senhor Tico-Tico”.
A abertura deixou Tico-Tico e sua família
empavonados, embora um ou outro canário-da-terra tenha achado aquela acolhida
um tanto quanto afetada.
Cardeal fez um gesto com a coroa vermelha
sobre a cabeça e um coral de rouxinóis começou uma celestial melodia. Logo os
canários, musicais por natureza, juntaram suas vozes ao concerto.
Surucuá-de-peito-azul marcou o ritmo com seu canto monocórdio.
Pica-pau-de-cabeça-amarela voou até uma árvore próxima e começou a castigar o
tronco, emitindo o ruído característico de madeira rasgada. Eram tantas as
vozes em harmonia que até as cigarras do bosque vizinho calaram seus
estertores, talvez com medo de serem escolhidas para compor o banquete que
sucederia o batizado.
Estavam todos tão mergulhados no transe
musical, que ninguém se assustou quando a porta da casa se abriu e um homem
apareceu na varanda.
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O homem olhou pela janela da sala. Não
acreditou no que viu, esfregou os olhos e arregalou-os bem. Só poderia estar
sonhando. Aves de todos os tipos, tamanhos, cores, pássaros dificilmente
observados na cidade, todos reunidos no seu quintal, cantando ao mesmo tempo.
Incrédulo, abriu sorrateiramente a porta da sala e posicionou-se na varanda.
Sentiu-se mergulhado em alegria diante daquela música delicada e selvagem a um
tempo. Sentou-se no banco externo com todo cuidado para não assustar os
visitantes.
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Tico-Tico ficou visivelmente orgulhoso.
Ora, aquela criatura sem penas não era tão burra quanto ele imaginava, afinal.
Apareceu para o batizado, e a tempo de ser padrinho do seu filho.
Todas as aves mostraram-se deslumbradas
com tamanha prova de consideração. Até mesmo o homem, o senhor absoluto do
planeta, o monstro assassino dos animais e destruidor da mata, prestava
homenagem ao pequeno Tico-Tico. Para muitos emplumados ali reunidos, aquilo era
prova de que havia, sim, possibilidade de entendimento entre os humanos e os
demais seres vivos. Nem tudo estava perdido...
O batizado durou ainda poucos segundos.
Cardeal abençoou o filhote, trêmulo e de olhinhos fechados dentro do ninho, com
o corpo minúsculo ainda desprovido de qualquer penugem. Depois dirigiu-se aos
pais, exortou-os a cuidar bem do pequeno, representante do futuro. Encerrou a
celebração, e todos voaram em bando até o bosque próximo, onde ocorreria a
recepção e o banquete de cigarras.
Tico-Tico deteve-se ainda diante do
vizinho homem. Agradeceu a presença do amigo antes de voar em direção ao
bosque, deixando atrás de si a zelosa esposa e o filhote. Logo voltaria com uma
saborosa refeição para eles. Essa é a alegria do Tico-Tico. Cuidar da família e
da própria vida.
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O homem ficou deslumbrado. Mudo de
emoção. Só conseguiu enxugar as lágrimas quando o último pássaro alçou voo em
direção à reserva do condomínio, uma pequena mata que escapou da sanha
imobiliária.
Quando olhou para baixo, viu que o
Tico-Tico o observava, cantando. “Se pelo menos eu soubesse passarinhês”,
pensou, nostálgico.
Depois que o vizinho emplumado seguiu as
outras aves, o homem se levantou e entrou correndo na casa. Foi direto para o
quarto, sacudiu a mulher que resmungou algo ininteligível. “Mulher, mulher, acorda,
você não vai acreditar no que aconteceu”.
Contou tudo que tinha visto e ouvido. A
mulher, meio dormindo, não levou a sério. “Está bem, volta a dormir que ainda é
muito cedo”. O homem desistiu de convencê-la que não tinha enlouquecido. Mesmo
ele não estava muito seguro da própria sanidade naquele momento.
Dia
seguinte quem levantou primeiro foi a mulher. Levou um susto ao abrir a porta
da sala. Um lindo tapete de flores miúdas, muito brancas e cheirosas, cobria
parte da varanda. Flores que não cresciam ali no quintal. Ela mostrou ao
marido, apaixonada. Ele olhou, coçou o queixo e virou-se para o pequeno ninho
na cerca viva em frente à casa, onde os tico-ticos o olhavam, com a naturalidade
própria dos tico-ticos.
MC, 13/2/9 – Esse é totalmente ficcional –
infelizmente.
Final alternativo:
Dia seguinte quem levantou primeiro foi a mulher.
Levou um susto ao abrir a porta da cozinha. Lá estavam Tico-Tico pai e
Tico-Tico mãe, gorjeando o desejo de um bom dia. Chamou o marido, que
limitou-se a olhar e sorrir. Tomaram café da manhã juntos, os quatro. Os
humanos comeram pão e tomaram leite, os passarinhos se banquetearam com as
migalhas que caíram no chão da cozinha. Assim passaram as primeiras horas do
domingo. Compadres aproveitando um dia de descanso.
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