Pendurado


O trabalho seguia meticuloso. Oitavo andar, muito longe do solo. Sebastião suava embaixo do capacete, exposto ao sol que já estava forte às nove horas. Limpava as esquadrias e vidros das janelas, a luz cortante da manhã refletindo sobre seus olhos desprotegidos.

Realizava sua tarefa com precisão, embora fizesse tudo mecanicamente. Anos de prática. Pensava em outras coisas, distantes daquele calor e daquela insegurança sustentada por um fio. Hoje é sexta, dia da cerveja com os amigos logo depois do trampo, fazer a fezinha no bicho lá no boteco do Nicolau. Apostar na mega-sena também, que não custa nada arriscar – ou quase nada.
Foi arrancado de seus pensamentos quando tentou baixar um pouco mais. As polias fizeram um barulho engraçado, como um engasgo enferrujado. O equipamento de segurança balançou ameaçador, depois parou onde estava, relutante. Sebastião ficou com medo de tentar uma nova descida.
Gritou pelo colega Tatu. Viu a cabeça dele saindo da janela, um andar acima. Contou o que aconteceu. A geringonça que sustentava Sebastião estava emperrada mesmo. Ele não conseguia alcançar a janela e entrar por ela. Subir pelo cabo poderia fazer alguma coisa se soltar, despencar, adeus mundo.
E se ele tentasse descer para a beirada mais próxima? Não dava, teria que pular no vazio, abandonando o cinto de segurança. Seria Tatu louco o bastante para fazer tal disparate, se estivesse no lugar de Sebastião? Ficaram alguns minutos trocando ideias sobre o que fazer, até que desistiram. Precisariam de ajuda para resolver a questão. Chamaram o Corpo de Bombeiros.
Meia hora depois chegava uma equipe num carro de resgate. A calçada lá embaixo foi interditada, para impedir que uma eventual desgraça ficasse ainda maior, o limpador de janelas caindo sobre alguém.
Os bombeiros subiram até a janela onde Tatu aguardava preocupado. Perguntaram como Sebastião estava se sentindo. Já fazia hora e meia que estava ali pendurado, mas mantinha uma absurda tranquilidade.
Vai ser preciso equipamento de alpinismo, constataram. Passaram um rádio para o soldado lá embaixo, na viatura. Pediram o material necessário.
Enquanto os bombeiros trabalhavam no preparo de um rapel, Sebastião divagou. Pensou na morte, quem nunca pensou nela? Mas naquela hora, o pensamento se tornava mais vivo (contradição), mais colorido, mais assustador. Lembrou-se das poucas vezes em que se encontrara perto da Indesejada, bastando um passo para dar fim a tudo. Nessas horas, uns geniozinhos obsessores costumam gritar a ordem irracional dentro da cabeça dele. Faça, faça, acabe com sua vida. Mas Sebastião não era louco nem suicida, conseguia rir desses pensamentos.
A situação agora é diferente, porém. Está em perigo, e a solução não depende dele. O fim não é uma questão de escolha. O poder sobre a própria vida lhe foi negado sem aviso prévio, de um momento para o outro.
Quanto vale um homem, assim tão frágil, tão facilmente ameaçado? Por que dar importância tão grande a pequenas frustrações do dia-a-dia, se tudo pode acabar de repente, sem motivo algum, sem justificativa?
A curiosidade, natural no ser humano, apareceu de repente e cresceu a cada segundo. O que há do outro lado do “rio”? Para onde vamos depois da “travessia” ? Existe “depois” ou apenas um grande vazio? As perguntas seduzem, quase como um convite: soltar o cinto de segurança, jogar a cabeça para trás, cair livre.
No meio do desvario, Sebastião pensou na patroa e nos moleques, aguardando seu retorno em casa, na periferia, à noite. Voltariam a se encontrar? Olhou para baixo e notou uma equipe de TV, registrando o resgate. Essa é boa, se a família estiver assistindo ao jornal, vai saber do aperto em que ele se encontra. Fez um sinal de positivo para a câmera e abriu um sorriso tranquilizador, dirigido muito mais para a família que talvez o assistisse do que para o cinegrafista.
Quando o bombeiro se aproximou, encontrou Sebastião com o rosto sereno. O único suor em sua testa vinha mesmo do calor, não tinha relação com medo ou desespero. Sebastião resolveu pensar em outra coisa. Mas no quê? O que seria tão importante lembrar quando a vida está pendurada daquele jeito? Enquanto era preso a um outro rapel, tentava desesperadamente ordenar os pensamentos, mas todas as imagens, lembranças e ideias desapareceram de sua mente. Só conseguia pensar nas instruções de seu salvador, nas cordas, mosquetões e tiras que eram passados em torno de seu corpo.
Alguns minutos depois, estava a caminho da janela mais próxima, acompanhado de perto do bombeiro. Duas horas de aventura, história para contar em casa e na roda de amigos durante a cerveja de mais tarde.
Logo tudo estaria esquecido, até os pensamentos sobre vida e morte que povoaram a mente de Sebastião durante a experiência. Apenas mais um dia comum na vida da cidade.
(Inspirado em reportagem de Luiz Crescenzo e Oswaldo Zague, divulgada no Jornal Regional Segunda Edição. Ilustração de Marcos Correia)

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