Seis, ladrão!


A noite estava danada de bonita, cheia de estrelas pontilhando um céu que parecia azul de tão claro. A lua, cheia de orgulho, irradiava luz sobre as árvores mais distantes, permitindo uma visualização das copas que sobrepujavam as sombras. Na venda de Nhô Quirino, as mesas estavam todas ocupadas. Gente que chegava da roça se abancava para bebericar uma bagaçeira. Trabalhadores da Olaria molhavam a garganta e estalavam os beiços, aliviados do dia no forno quente, com o líquido fervente queimando as entranhas.
A mesa mais animada era a de Girino, como sempre. Rapazola magricela, de olhos vivos e cabelo ruim, pele entre o marrom café-com-leite e o ocre-terra-pisada. Mameluco bom de prosa, dono de um sorriso aberto de dentes perfeitos e largos. Querido por todos no povoado. 
_ Truco! _ berrou Zeferino, erguendo os braços e fechando os olhos para potencializar o efeito do grito.
_ Seis, ladrão! _ devolveu Girino, sem pensar no que fazia, erguendo as cartas à altura dos olhos e fitando o adversário com uma expressão ameaçadora.
Todos na mesa se entreolharam. Chupim mal conteve o entusiasmo. Sabia que seu parceiro Zeferino estava com carta boa porque este tinha passado a língua no lábio superior e piscado os olhos como quem estivesse debaixo de luz forte. Os sinais trocados não deixavam margem para engano. 
Raimundo ficou um pouco preocupado, tinha só um cinco vagabundo na mão, não oferecia o menor combate. Mostrou essa situação para o parceiro Girino batendo levemente os dedos no verso das cartas.
_ Nove! _ disse Zeferino. Não queria ficar por baixo diante daquele moleque insolente.
_ Doze! _ respondeu instantaneamente Girino, abrindo a boca numa larga gargalhada. 
Zeferino ficou intimidado. “Ele deve ter cartas melhores”, pensou. Mas tinha ido muito longe para voltar covardemente.
_ Quinze!
_ “Milquinhento”! _ Gritou Girino levantando-se de um salto e derrubando a cadeira. 
_ Pago!
Zeferino jogou um três. Raimundo deitou o cinco vagabundo por baixo da carta do outro, e olhou apreensivo para Girino. Este fez uma algazarra quando cobriu o três do adversário com o Espadilha. Chupim jogou fora um quatro de paus, com saudades da manilha velha, em que aquela carta valeria mais que qualquer outra.
Girino então começou a rir. Passou a lingua no verso da carta que tinha em mãos, e o colou arrogantemente na própria testa, celebrando:
_ Conheceu, papudo!
Era o sete de paus, o zap daquela rodada. Zeferino ficou com os olhos vermelhos de ódio, amassando o sete de copas que tinha nas mãos. Afogou a mágoa virando o copo de cachaça que tinha ao lado do baralho. Levantou-se bruscamente e deixou a mesa sem olhar para Girino.
_ Não joga mais, Zefo? Calma, homem, foi só uma mão ruim. Bom, vamos tratar de arranjar um novo parceiro para o amigo Chupim, então _ exclamou Girino.
_ Não precisa ir longe para procurar, não!
Todos se voltaram para o ponto de onde viera aquela voz potente. Um homem alto, de chapéu enfiado na cabeça, casacão de couro e uma fivela de prata segurando as calças, caminhou lentamente até a mesa. O desconhecido correu o olhar sobre toda a venda, ciente do efeito que sua presença causava naqueles homens pacíficos, tão diferentes dele. Puxou a cadeira e sentou-se, de costas para o balcão e de frente para a rua. 
Um pensamento correu todas as mentes: estava muito quente para usar um casacão daqueles. A menos que fosse para esconder alguma coisa embaixo. E boa coisa não podia ser.
Girino reconheceu no estranho o olho de morte próprio dos jagunços. Engoliu em seco, lembrado que não tinha a menor vocação para herói. Melhor dizendo, era covarde de pai e mãe. 
_ O senhor me desculpe mas tenho que ir andando acabei de lembrar de um compromisso minha senhora me aguarda em casa…
_ Dessa mesa ninguém se alevanta antes de uma rodada de truco! _ o matador interrompeu Girino e não deixou margem para discussão. _ Sei por quê seu apelido é Girino. Faltou homem para fazer um sapo adulto! _ exclamou, com um sorrisinho sarcástico e ofensino nos lábios grossos.
Girino riu nervosamente, como se tivesse levado o insulto na brincadeira. 
_ Quer cortar? _ perguntou, lutando para não trair o medo na voz trêmula.
_ Corta você, que eu para cortar costumo usar outra coisa! _ respondeu o jagunço, alisando o cabo da peixeira que aparecia por entre o casaco, na cintura.
No balcão, observando tudo, Zeferino ria-se de prazer em ver o desafeto naquela situação. Nas mesas em volta, todos faziam um silêncio que tornava o ambiente ainda mais opressivo. 
Girino custou a misturar as cartas, elas teimavam em escapar de seus dedos trêmulos. Ele sorria melancolicamente, como que pedindo desculpas por aquela incompetência. Chupim e Raimundo suavam frio.
Girino distribuiu as cartas, rezando para pegar as piores e mandar apenas manilhas para seu novo adversário. Ia virar a última carta do baralho quando o grandalhão exclamou:
_ Vamos jogar manilha velha!
Claro que ninguém reclamou…
Girino olhou para as cartas que tinha nas mãos. Reconheceu o escandaloso Zap, o Quatro de Paus que parecia rir dele. Olhou para Raimundo e notou que ele estava com o Ás de Espadas, o Espadilha. Não acreditou na própria sorte – ou azar.
Resolveu deitar um seis meia-boca e tranferir o problema para Raimundo. Ele que não era louco de começar a peleja dando um couro no mal-encarado que tinha a seu lado.
O forasteiro viu aquilo e deu um sorriso. Colocou um três sobre a toalha suja da mesa e olhou para Raimundo. Este, movido pelo costume e sem raciocinar direito, cobriu o três com o Espadilha. Olhou satisfeito para Girino, mas desfez o sorriso quando notou a expressão horrorizada do mameluco. Olhou então para o rival. O homem ergueu um pouco a aba do chapéu para revelar uma expressão amarga e ameaçadora de quem não acreditava em tamanha afronta. Raimundo sentiu o sangue abandonar seu rosto.
Chupim então fez uma careta com o canto da boca apontando para o chão. Parecia que tinha sido fisgado com um anzol. De todos os sinais, aquele era certamente o mais escandaloso. Imediatamente cobriu o Espadilha com o Escopeta. Quase beijou o sete de copas antes de colocá-lo na mesa. Olhou para o parceiro desconhecido, ensaiando uma cumplicidade que não existia absolutamente. O outro limitou-se a olhar para ele com indiferença. 
Chupim botou um rei na mesa para iniciar a segunda rodada, Girino superou a carta com um dois raspa-de-tacho e o adversário deixou tudo como estava. Raimundo achou que já tinha abusado demais da sorte, e jogou uma carta sem abrir por baixo do dois de Girino. A partida seria resolvida mesmo na última rodada.
Surgiu o impasse. Que fazer? Apresentar o zap, vencer o jogo e provocar a ira do estranho? Ou entregar a partida e correr o risco do outro querer olhar a carta e se sentir ofendido?
_ Tru… truco _ disse Girino por fim, sem nenhum sinal da confiança que costumava mostrar nessa hora.
Todos ao redor levantaram-se e se aproximaram para ver o desfecho. 
O jagunço coçou os fiapos de barba que trazia debaixo do queixo, e resmungou: 
_ Seis, ladrão.
Agora não dava mais para voltar atrás.
_ Nove.
_ Mil e Quinhentos _ gritou o forasteiro, tirando o chapéu e erguendo os braços.
_ Pago, e seja o que Deus quiser.
Girino colocou o zap sobre a mesa, com todo o respeito, quase como se estivesse pedindo desculpas por aquele ato. Nenhuma gracinha, nenhuma comemoração. Olhou para o adversário. Chupim e Raimundo encolheram-se nas cadeiras esperando o pior.  O Jagunço fez um ar de surpresa, depois fechou a carranca numa máscara de ódio. Mordeu o beiço grosso, resmungou alguma coisa ininteligível olhando para as cartas na mesa, cuspiu no chão e levou a mão para dentro do casaco.
“É agora que eu encontro o Criador, adeus mundo cruel, era uma vez um Girino. Será que ele tem um revólver ou é uma garrucha mesmo? Espaço para esconder uma garrucha ele tem, ali debaixo do capote. Espero que ele não atire na minha cara, senão eu vou ter velório com caixão fechado. Virsantíssima, valei-me”. Pensou nessas coisas de forma desvairada, atropelada, e sentiu um líquido quente molhando-lhe as pernas. 
O jagunço tirou a mão lentamente do casaco, segurando… um cigarro de palha. Desfez a cara feia, deu uma gargalhada nervosa, acendeu o cigarro e olhou para Girino, balançando a cabeça afirmativamente. Jogou a última carta que tinha confessando o blefe. Era um cinquinho sem vergonha que não dava nem pro cheiro.
Girino voltou a respirar. Olhou para a poça de mijo que se formou embaixo de sua cadeira, e teve que rir também.


FIM

Comentários

Postagens mais visitadas