Hoje tem aula



_Obrigado, pai.
Disse com a voz atravessada por uma súbita emoção. Meu pai me olhou com expressão surpresa, olhos mais abertos do que o normal, como quem tivesse recebido um murro ou um inesperado beijo. Um segundo depois sua expressão tornou-se mansa como a de uma criança observando um gatinho ou um passarinho.
_ Pelo quê, meu filho?
Papai pareceu-me velho. Velho como não era ainda, naquele tempo em que fizemos aquela pescaria; velho como não chegaria a ser. Mas eu não sabia quanto tempo de vida lhe restava naquela tarde, quando pescávamos num minúsculo barco a motor. E por não saber, não havia agradecido por nada naquela ocasião, quando tive a chance. Nem havia pedido perdão pelo que fosse, ou mesmo comentado alguma coisa inconfessável que só dividiria com aquele homem em caso de vida ou morte.
Não era o caso, então.
Meu pai me olhou cansado e velho com sua face nova de cinquentão bem apessoado. Ele viu algo que não havia ainda acontecido. Viajou no tempo, mas não comigo: eu voltava, ele avançava. Aquele momento era nada mais do que um ponto de confluência, um sopro, um suspiro. Uma patética segunda chance, mas segunda chance para quê? Para dizer o que calou fundo na garganta ou o que não foi sequer cogitado enquanto o tempo seguia o fluxo normal. De qualquer forma, tudo aquilo logo acabaria. Duraria para sempre.
Eu sabia; apenas eu, não ele. E saber era parte do peso. Uma cruz a carregar sozinho. “Obrigado, pai”. Emoção despropositada, fora de contexto, emotividade beirando o piegas. 
_ Você vai pegar outro ainda maior! _ respondeu, imaginando que eu falava da pescaria. Sorri, acabrunhado. Entendi que não poderia explicar a situação. Ficaria o dito pelo não dito.
Naquele barco, as tuviras vivas nadavam plácidas no balde sem saber do destino que as aguardava. Meu pai pegava uma delas, fisgava enfiando o anzol pela boca, puxando para fora e enfiando de novo no lado do peixe, para ocultar a ponta metálica. Da mesma forma, eu escondia de meu pai o conhecimento do futuro, como um pescador tentando enganar um peixe. 
No hospital, fiquei três horas na beira da cama, desfiando uma rede de confidências. As visitas bruscas das enfermeiras apressadas e enfadadas eram as únicas interrupções. O barulho da máquina ligada à glote de meu pai marcava a respiração dele como um relógio-cuco martelando as horas. Tudo artificial e vazio. 
_ Obrigado, pai. _ falei, na beira da cama, rezando para que ele abrisse os olhos e me respondesse, com expressão divertida: “Você vai pegar outro ainda maior!” Mas isso só acontece em flashbacks de filmes ruins.
Meu pai me deu um beijo na testa um dia, anunciou que estava de saída para o trabalho, bateu a porta. Eu saí de casa para comprar jornal na banca da praça. O tempo congelou naquela caminhada sob o sol ameno, o som da cidade abafado por um calor outonal, o rio da vida correndo contra a maré. 
Voltei só no fim do dia, um cansaço gostoso nas juntas, uma expectativa discreta sobre o próximo momento; encontrei meu pai caído no jardim, com a cabeça sobre o colo de minha mãe chorosa. Corri para ele, não sei como… naqueles vinte passos que nos separavam rememorei todas as lições de primeiros socorros ouvidas na sala de aula, quando ainda era uma criança, na quarta-série. Não deviam ensinar noções de primeiros socorros a crianças tão novas; é dar muito poder a quem não sabe o que fazer com ele. É dar culpa a quem não merece essa cruz. 
Ambulância, emergência, hospital, mãe chorando, irmão atônito, longa batalha contra a morte. Tudo num segundo, eterno.
No enterro, a metade abastada e influente da cidade compareceu. Também gente simples, agradecida a meu pai por sua generosidade sempre presente no exercício da medicina. O prefeito quis falar alguma coisa. Protestei. Minha mãe me olhou com pupilas vazias, como quem não soubesse o que estava acontecendo. “Ele não morreu, não, João.”
Meu pai tirou da água um dourado briguento, saltador como todos os dourados do rio Paraná. “Vou soltar o bicho, mas antes, uma foto para mostrar aos nossos amigos lá no Brasil”. O piloteiro bateu a foto. Meu pai a meu lado, eu e ele sorridentes ostentando o troféu de uns bons vinte quilos. Devolvemos o bicho à água e o peixe se afastou devagar, com uma dignidade desconcertante. Tudo era luz e calor, nenhum espaço para a sombra da morte naquela tarde de pescaria.
Naquele dia eu não falei obrigado, não falei nada. Não disse a ele o quanto foi importante para a minha vida; o quanto era grato por ser filho dele. Apenas rimos, falamos bobagens e esperamos o entardecer sobre as águas de Paso de la Pátria. 
Quando o sol vermelho mergulhou, eu estava sozinho, olhando para o rio, lembrando o passado. Recostado em minha cadeira com um cobertor sobre as pernas entrevadas, observava meus netos na areia da prainha. O crepúsculo absorvente trouxe em seu rastro um sono narcotizante. Adormeci, a despeito dos gritos alegres dos meninos na flor d’água.
Acordei com o barulho insistente do rádio-relógio. Olhei assustado em redor. Meu irmão ainda dormia na cama ao lado. A porta do quarto se abriu e minha mãe entrou, animada e radiosa como sempre:
_Levantar, molecada! Hoje tem aula!
Transtornado, caminhei cambaleante de sono até o banheiro. Encontrei meu pai no caminho, já barbeado, um cheiro bom de água de colônia emanando de sua cara bonita, um sorriso generoso:
_Bom dia, filho!
Olhei para ele como quem não se lembra de algo muito importante. Algo fundamental, que não aconteceu mas vai acontecer, ou que já aconteceu mas ainda tem consequências que permanecem; algo como o cheiro da terra molhada depois da chuva.
_ Obrigado, pai – respondi, sem saber por quê…

MC, 31/10/10



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