Palestra no refeitório
Os alunos alegres encontraram-se no pátio da
escola e começaram a trocar fofocas sobre o fim de semana. O que fizeram, o que
deixaram de fazer. Animadas vozes infantis tentavam se superar mutuamente,
galgando uma escada de decibéis histéricos. As narrativas se impunham no grito.
O
ritual seguiu conforme um roteiro tão antigo quanto a escola. Filas no patio,
recados da diretora, Hino Nacional. Depois o caminho pelos corredores até as
salas de aula.
As novidades começaram a aparecer
alguns minutos antes do intervalo.
_
Mudança de programação, alunos _ anunciou a professora de matemática. _ Logo
depois do lanche vocês vão ouvir uma palestra lá no refeitório mesmo.
Para
evitar um esperado choque entre as crianças, a direção achou melhor prevenir a
todos sobre as condições da palestrante. Uma moça bonita, jovem ainda. Mas
diferente de qualquer outra.
Ela
não tinha braços nem pernas.
Tão
logo soube daquela estranha particularidade, Mauricio ficou apavorado. Imaginou
um corpo disforme, um dorso nu colocado sobre uma mesa como se fosse um pedaço
de carne, falando sobre algum assunto imprevisível. Um objeto falante, um
daqueles bonecos de ventríloquos. Imaginou cotos sanguinolentos nos lugares
onde deveriam brotar pernas e braços. Era como se os membros tivessem sido
recentemente cortados com um serrote. Um quadro de terror.
Pela
primeira vez na vida Mauricio rezou para o sinal do intervalo falhar. Queria
que as aulas do segundo período começassem assim que a professora de matemática
saísse da sala. Esquecer o lanche, o refeitório e principalmente a terrível
palestra com a criatura bizarra.
Mas
milagres não acontecem. O sinal tocou como o esperado, as crianças saíram
sorridentes e ágeis para os corredores. Mauricio se demorou na carteira,
esperando ser esquecido. Foi repreendido pela professora pedindo urgência:
_
Vamos logo menino. Assim você perde a palestra!
Não
houve remédio. Maurício saiu da sala, começou a descer os degraus da escada que
ligava a sala de aula aos banheiros, passou diante deles e seguiu na direção do
refeitório.
Longas
mesas se espalhavam pelo salão enorme. As freiras que cuidavam da escola
serviram sopa quente e suco de laranja. O cheiro da carne cozida e picada com
legumes emanava dos grandes caldeirões. Seduziu as crianças famintas. Menos
Mauricio. Nele, o cheiro do alimento provocou engulhos. A imagem monstruosa que
formou em sua mente era demais para qualquer apetite. Mauricio ficou brincando
com a colher no prato de sopa, um tom esverdeado de náusea no rosto, sem
coragem de comer.
Ele
não entendia a volúpia com que os colegas atacavam a refeição. Ninguém parecia
incomodado com o que estava prestes a acontecer. As crianças comiam com a mesma
fúria de sempre, alguns repetindo o prato mais de uma vez. Esfomeados. Mauricio
sabia que muitos ali não tinham o que comer em casa, mas mesmo assim aquela
gana lhe pareceu doentia e imoral.
Terminado
o lanche, a diretora da escola se aproximou da frente do refeitório, pegou um
microfone e começou a anunciar a palestrante. Mauricio suou frio, encolhido em
seu canto. Sentiu que não teria forças para encarar o horror que se aproximava.
_
…Portanto, alunos, peço que recebam com uma salva de palmas a Vanessa! _ falou
a professora.
Todos
aplaudiram, menos Mauricio, que usou as duas mãos para fechar bem os olhos.
Alguns
segundos longos demais se passaram. Mauricio ouviu um arrastar de cadeiras “mas
como alguém sem pernas poderia se sentar?”, um limpar de garganta, um ruído de
estática quando o suporte do microfone foi ajustado.
Logo
uma voz macia se fez ouvir. Mauricio ficou surpreso ao imaginar um monstro com
voz tão agradável. O medo perdeu espaço para a curiosidade. Ele afastou os
dedos dos olhos, timidamente. Observou pelas frestas dos dedos, ainda
desconfiado. Depois abaixou as mãos e encarou a moça que estava diante de todos
os alunos da escola.
Vanessa
era sustentada por um homem de pele escura e braços musculosos, de forma que
ela ficasse bem visível, mesmo para quem estava no fundo do refeitório. A jovem
tinha cabelos pretos, presos num rabo de cavalo. Usava um lindo vestido com a
gola coberta de babados e flores estampadas. Nada de cotos à mostra, músculos
deformados, nenhum sinal de monstruosidade.
Durante
longos minutos Vanessa falou sobre otimismo. Contou que tinha nascido daquele
jeito. Nunca conhecera a sensação de pisar a areia da praia, segurar água da
mina nas mãos em concha, acariciar o pelo macio de um gato. Ações prosaicas
para todos os alunos ali reunidos eram sonhos impossíveis para ela.
Nada
disso a desanimava. Mesmo com tamanhas limitações, Vanessa não se tornou uma
pessoa amarga.
A
palestra durou uns vinte minutos. Mauricio saiu do refeitório pensativo. Não
conseguia esquecer o que a moça disse.
Nas demais aulas daquele dia não
aprendeu coisa alguma. Ouvia de novo as convicções da palestrante, como se ela
voltasse a falar pela boca da professora, as frases dela repetidas no lugar das
lições de matemática ou química ou o que fosse. Mas o que realmente precisava
ser entendido não se perdeu no coração do menino.
Muitos anos se passaram. Muitas
outras experiências cruzaram o caminho de Maurício: a dor foi quase sempre o
mestre. Ele cometeu seus erros, falhou, mas também acertou, conquistou
vitórias. Ganhou na pele e na alma algumas cicatrizes, motivo de orgulho mais
do que de arrependimento. Na fase adulta, encaminhado na vida, julgou que o
saldo foi positivo até ali.
Aquela imagem da bela moça,
deficiente de corpo mas vigorosa de espírito, sempre o acompanhou. O teor do
discurso dela se perdeu depois de alguns anos, vencido pelo tempo. Palavras, o
vento leva. O que fica é a força do exemplo.
MC, 8/1/2010
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