Traição
Quando aquela puta se aproximou exalando
perfume de quinta e pó-de-arroz, Armando contou mentalmente os poucos cobres
que lhe restavam. Tinha uns dez reais no bolso da camisa e umas moedas
espalhadas pelos bolsinhos do paletó. Ele já sabia que a moça pediria uma
cerveja. “Lá se vão mais cinco mangos”, pensou preocupado. Mas não havia como resistir àquela beleza vulgar
e devassa. O jeito era arranjar o dinheiro e sentir os seios dela esfregando-se
em sua cara, a bunda avantajada em seu colo provocando uma inabalável ereção.
Quem sabe com o dinheiro que restasse ele não conseguiria alguns minutos num
quarto com a loira – ou pelo menos a compensação oral pela gentileza de ter
pago a bebida...
Ainda de uniforme, Armando foi direto do
trabalho para aquele inferninho. Uma rua suja no centro da cidade, tomada de
botecos duvidosos e “casas de espetáculos”, ponto de diversão para inúmeros
assalariados que não ganham o suficiente para procurar um recinto mais
sofisticado.
A grande vedete do puteiro é uma ruiva
falsa com banhas salientes na cintura. Todas as noites apresenta o mesmo número
usando trajes sumários, com uma cobra enrolada no pescoço. No palco mal
iluminado, faz uma dança pretensamente erótica, afasta para o lado a calcinha
de oncinha e enfia a cabeça da cobra na vagina, sem piedade. A pobre jiboia
balança então a calda, desesperada, tentando se livrar daquela clausura
ginecológica. A ruiva finge um orgasmo, se contorce, apalpa os seios com uma
mão e enfia mais e mais a cobra com a outra.
Um velho olhou em redor, assustado com o
show. Olhos arregalados, confusos... primeira vez que visita o lugar. Não é
como Armando, freguês assíduo, já conhecido das garotas, acostumado com as
extravagâncias de Jessica (este é o nome da ruiva) no palco.
No ambiente enfumaçado meninas de todos
os tipos e cores circulam por sombras azuladas estroboscópicas. Homens destilam
seus arremedos de amores em carícias desajeitadas e olhos famintos. A atmosfera
oprime e seduz.
De repente um barulho estranho perto da
entrada. Vozes altas em discussão quebrando a magia do lugar. Alguns soldados
com uniforme da PM invadiram o salão dando ordens em altos brados. Todos contra
a parede. Mãos na cabeça.
Armando gelou de pavor, surpreendido em
flagrante delito. Tentou argumentar sobre sua condição de trabalhador mas levou
um empurrão do policial mais próximo. Começou a suar frio e chorar em silêncio.
Outro PM veio dos fundos com cara
assustada e pediu orientação sobre o que fazer com a jiboia de Jessica. “Vamos
ter que chamar alguém da polícia ambiental”, respondeu o sargento, admirado com
a descoberta.
Todos para fora, para a calçada.
Ali teve lugar o pior dos pesadelos.
Jornalistas reunidos na rua como abutres esperando a carniça filmavam,
fotografavam, tomavam nota sabe-se lá do quê em bloquinhos e cadernos. A
vergonha, a vergonha absoluta. As vontades secretas de Armando expostas na
imprensa como uma prostituta se oferecendo na esquina. Cairia por terra o mito
do homem sério e reservado, que mal conversa com os colegas por causa de uma
insuperável timidez.
A revista da PM teve início. Virilha,
coxas, braços e bunda apalpados sem cerimônia. Invasão das mais recônditas
intimidades sob os holofotes da mídia.
Armando só pensava em tapar o nome da
empresa onde trabalha, estampado no bolso da camisa. Abaixou a mão para fazer
isso mas recebeu uma bronca do PM à sua frente. Mãos na cabeça, ninguém mandou
abaixar.
Longos minutos depois os clientes receberam os
documentos de volta e foram liberados. Armando se afastou rápido, quase
correndo rua abaixo. Na cabeça, uma única preocupação. Evitar que a esposa
assistisse ao telejornal no dia seguinte.
E o dia seguinte chegou, a despeito da
vigília e das preces de Armando para que algum cataclismo mudasse a rotina do
tempo. No café da manhã, como de costume, ele e a mulher permaneceram mudos na
cozinha, olhando hipnoticamente para uma pequena TV.
A apresentadora do telejornal anunciou,
aparentando uma satisfação quase sexual com a notícia bombástica:
_ Ronda da prefeitura e da polícia no
centro da cidade desbarata indústria da pornografia!
“Ai, meu Deus!”, pensou o pobre operador
de produção, “é agora que a casa cai”...
_ Gina, muda de canal, quero ver o
resultado do futebol _ tentou despistar.
_ Sem chance, essa notícia me deixou
curiosa!
A reportagem começou com o jornalista
anunciando que a prefeitura pretendia moralizar o centro velho, limpar os
imóveis de todo tipo de depravação. A tarefa contava com o apoio da polícia
militar, do setor de posturas públicas, tributação e até do IBAMA, chamado às pressas
quando uma cobra foi encontrada num dos prostíbulos.
Armando reconheceu numa das imagens a
fachada da boate onde foi surpreendido. Tapou os olhos com as mãos quando viu a
cena dos policiais saindo, prestes a organizar a revista dos clientes.
_ Que pouca vergonha! _ disse Gina,
indignada.
_ Calma, Gina, eu posso explicar...
Houve um silêncio.
Armando tirou as mãos do rosto, olhou
primeiro para a esposa, que o encarava com olhar inquisidor, depois para a tela
da TV.
Em fila junto à parede, todos os frequentadores
da boate - inclusive ele - alinhados e devidamente revistados. Os rostos...
Armando quase chorou. Os rostos estavam embaçados e irreconhecíveis, ocultos
por um recurso de edição usado pelas emissoras de TV para preservar a
identidade das pessoas.
_ Explicar o quê, Armando?
_ Não... então... eu posso explicar...
Gina olhou com mais atenção para a tela
da TV.
_ Esse cara gordinho, aqui – ela apontou
para ele, na imagem – está com o uniforme da empresa em que você trabalha...
_ Quê? Como? Não, imagina. Nossas camisas
são mais claras.
_ Não são não.
_ Claro que são, Gina. Então você não
sabe que a televisão deixa todas as imagens mais claras? Essa camisa desse
tarado aí parece ser bem clarinha, mas isso é um efeito da câmera, na verdade é
mais escura.
_ Que papo é esse?
_ É verdade, é um fenômeno ótico _ gastou
todo o português que lhe restava naquela explicação que não explicava nada.
_ Mas, Armando... essa barriga se parece
com a sua.
_ Imagina, mulher, estou malhando há mais
de três meses. _ e para provar o que dizia, levantou-se e encolheu a barriga o
máximo que pôde, prendendo a respiração.
_ Sei, sei, mas o que você queria
explicar mesmo?
_ É que, sabe, então, como você tinha
falado... _ Armando vasculhou cada alcova do próprio cérebro atrás de uma
resposta. De repente, fez-se a luz.
_ ... então, eu esqueci de combinar com o
Valdir para consertar o encanamento do banheiro...
_ Ah, isso não me surpreende, você é
mesmo desleixado! O banheiro vazando, desperdiçando água, fazendo a maior
sujeira, mas para você é o mesmo que nada, quem fica em casa lidando com o
problema sou eu, não é?
_ Calma, Gina, eu ligo para ele.
_ Tudo bem, Armando, mas não passa de
hoje. Quero o Valdir aqui antes do almoço! _ determinou, com inquestionável
autoridade.
Armando deu um beijo na mulher e saiu
para o trabalho feliz da vida, satisfeito por ter enganado a esposa com tanto
sangue frio. “Nunca mais entro num puteiro”, prometeu a si mesmo, sem muita
convicção.
Gina acompanhou o marido com os olhos
enquanto ele saía para a rua. Começou a sonhar assim que ficou sozinha. Fazia
tempo que ela não via o encanador, aqueles braços fortes, a pele morena, uma
perdição. Já estava com saudades do último encontro, em que Vadão revelou a
ela, entre beijos e suspiros, uma bela “chave inglesa”, robusta e versátil.
Gina lembrou-se das mãos calejadas dele agarrando seu corpo como se fosse de
papel enquanto o relapso marido trabalhava, incapaz de imaginar o que acontecia
em sua ausência. Só de lembrar a mulher sentiu novamente o calor do desejo.
Levantou-se da mesa e foi para o banheiro ajeitar os cabelos e passar batom nos
lábios. “O Vadão gosta de entrar em mim quando estou com a boca bem vermelha”,
considerou.
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