Furto no hotel


A recepção do hotel estava particularmente infernal naquele sábado. A gerente mal conseguiu uma pausa para ir ao banheiro o dia todo. Mas, enfim, era essa a vida que tinha escolhido, não?
            Depois de ralhar com duas camareiras por um serviço malfeito, brigar com uma operadora de viagens por equívocos na reserva e recusar três cartões de crédito sem fundos, Natalia passou a agir por instinto, sem qualquer possibilidade de raciocinar sobre o que ocorria.
            Afastou as belas madeixas loiras que lhe caíam sobre os olhos e fitou o relógio de pulso, cabeça baixa, costas levemente arqueadas rumo à luz do abajur da recepção: onze horas, já deveria estar em casa há muito tempo. Ouviria mais uma vez os protestos do namorado que esperou por horas para o jantar, a comida esfriando na mesa.
            Natalia passou pela cozinha, tomou um gole d`água no bebedouro, foi até a área de serviço e finalmente dirigiu-se para o balcão, onde três moças sorridentes e frescas ostentavam seus corpos impecáveis em terninhos azul-escuro. Ergueram os olhos dos terminais a sua frente ao notarem a aproximação da chefe, cumprimentaram com um elegante e discreto movimento de cabeça – sincronizadas como num nado olímpico – e deixaram claro com aquele gesto simples que tudo estava bem.
            _ Boa noite _ disse Natalia, sem esperar resposta.
            Já sentia os ares da liberdade depois de dezoito horas de trabalho, a um passo da calçada, quando notou uma algaravia na portaria. Olhou para trás, tentada a continuar andando. “Mas que adianta? Se for coisa grave, me ligam e eu tenho que voltar”, pensou, coberta de razão.
            Viu que as recepcionistas, até então sorridentes, pareciam constrangidas e inseguras diante de três senhoras que falavam sem parar, em voz alta e com poucos modos. Os ouvidos da gerente, acostumados aos sotaques estrangeiros, logo identificaram o inconfundível tom português naquela enxurrada de protestos.
            _ Estão a brincar comigo _ dizia uma delas _ Faço o que for necessário para reaver minhas posses.
            _ Isto é um descalabro _ dizia a segunda, aparentando ser mais nova, porém não muito _ Não podemos mais confiar em ninguém neste país, ora pois.
            _ Chama tua chefe logo de uma vez, ó pá, e resolvemos isso sem mais delongas _ dizia a terceira, com uma calma forçada e desagradável na voz.
            _ Posso ajudar? _ perguntou Natalia, já definitivamente de volta ao trabalho, logo depois de balbuciar uma desculpa ao namorado pelo celular e ouvir um resmungo mal-humorado como resposta.
            _ E quem és, pequena? _ perguntou a primeira reclamante.
            _ A gerente, Natalia, muito prazer.
            _ Gostaria de dizer que é mesmo um prazer _ respondeu a portuguesa, grosseiramente. – Mas infelizmente, não são bons augúrios que me trazem a esta recepção.
            Natalia ouviu pacientemente a conversa daquela senhora. Tinha deixado três mil dólares no cofre do quarto naquela manhã, antes de sair para um passeio com as duas amigas. Passara o dia todo fora com as companheiras, percorrendo lojas da Oscar Freire e shoppings badalados da capital paulista - uma tarde realmente muito agradável apesar do calor insalubre dos trópicos e dos mendigos escondidos pelas esquinas. Mas o triste foi quando voltou exausta ao quarto, abriu o cofre e quase teve um infarto: todo o dinheiro havia desaparecido misteriosamente. Exigia uma satisfação! Queria o dinheiro de volta, antes que fosse obrigada a tomar providências mais graves.
            Enquanto a senhora falava, Natalia observava seus trejeitos, suas feições, sua roupa extravagantemente colorida, seus cabelos recém-mergulhados em mais de uma pintura, as duas amigas igualmente trajadas… notou que todas rondavam os quarenta e tantos, mais para os cinquenta do que para os trinta. Percebeu também o excesso de joias nos dedos, pescoços e pulsos (mais da metade, bijouterias de baixo valor – sim, Natalia reconhecia o valor de uma joia pelo cheiro, apaixonada que era por esses mimos dourados). Não demorou a fazer seu diagnóstico: desconfiava que aquelas três não eram tão inocentes quanto faziam supor. Resolveu tomar o controle da situação, antes que fosse tarde demais.
            _ As senhoras estão no mesmo quarto? _ perguntou gentilmente.
            _ Sim_ respondeu a portuguesa.
            _ E seu marido se encontra no hotel? _ quis saber Natalia.
            _ Ele não veio. Apenas financiou nosso passeio.
            _ E suas amigas também colocaram algum valor no cofre?
            As duas responderam imediatamente que não.
            _ Entendo. _ disse Natalia, com calma. _ Um momento por favor.
            A gerente procurou o chefe de segurança e o informou de tudo que se passava. Pediu que ele iniciasse os procedimentos cabíveis. Natalia falou solenemente, sem rodeios:
            _ Bem, minhas senhoras, não há outro recurso senão chamarmos a polícia. Registraremos imediatamente o furto e, tenho certeza, logo os policiais descobrirão o culpado.
            _ Vá lá que seja, muito bem! _ exclamou com desdém uma das três senhoras, aquela que tinha o cabelo mais amarelado. _ Até parece que podemos contar com a débil polícia brasileira.
            Natália afastou-se delas e foi até o balcão, com a mão sobre a testa e a paciência no limite. Pegou um telefone e discou o número da delegacia de turismo. Sentiu um alívio ao ouvir a familiar voz do detetive Gusmão.
            _ Nat, minha querida, há quanto tempo. Ainda não esqueci aquela promessa de um happy hour, hein? – fazia tempo que Gusmão tentava alguma coisa com a loira, mesmo sabendo que ela namorava firme. Mas, naquela situação, Natalia resolveu tirar partido da admiração que o policial sentia por ela.
            _ Ora, Gusmão, achei que você nem pensava mais nisso. Tocou no assunto uma vez só e nunca mais me ligou… mas veja, temos que marcar logo isso. Não… não é por isso que estou ligando, não. Preciso da sua ajuda. Tenho aqui um grupo de portuguesas que acha que a polícia de São Paulo é incompetente e preguiçosa… dizem que foram furtadas, perderam uma soma que tinham deixado no cofre do apartamento. Vamos esclarecer tudo? Pode me ajudar?
            Natalia quase sentiu a indignação do detetive na outra ponta da linha, diante da arrogância das portuguesas. Quinze minutos depois uma viatura estacionava na frente do hotel (ninguém sabe como eles venceram o trânsito da capital tão rapidamente, mesmo àquela hora – passava da meia noite).
            As supostas vítimas também se mostraram surpreendidas com tamanha agilidade. Natalia tratou logo de esclarecer:
            _ Por aqui as coisas são assim, senhoras. Nossa polícia está entre as mais eficientes do mundo. Só ouvem falar da Interpol por causa daquela propaganda inglesa. Somos mais discretos, porém muito mais eficazes! _ mentiu descaradamente.
            A mentira surtiu efeito. Natalia notou um certo desconforto entre as três amigas. Insistiu naquele teatro:
            _ Infelizmente, todas terão que ir até a delegacia, prestar queixa. Sugiro que usemos o camburão para chegar mais rápido.
            _ Ora, pois, isto é o fim do mundo! _ disse a “roubada”.
            _ Melhor fazer o que ela diz, Cecilia. _ respondeu a mulher que tinha cabelos oxigenados.
            _ Bem, mas nós ficamos esperando, não? Pouco podemos ajudar. – disse a de cabelos amarelados.
            _ De jeito nenhum, não me podem abandonar à própria sorte, ora pois! _ protestou a “vítima”.
            A contragosto, entraram todos no carro da polícia e seguiram para o distrito. A gerente foi no banco do passageiro ao lado do afoito Gusmão, que mal conseguia tirar os olhos das belas pernas de Natalia.
            Na delegacia teve início um longo interrogatório em que ficou-se sabendo o objetivo da viagem daquele interessante grupo: as três mulheres fariam plásticas com um renomado cirurgião brasileiro. Tudo bancado pelo marido da que fora supostamente roubada. Logo ficou claro que as amigas da esposa eram também ex-mulheres do generoso lisboeta, que ficou em Portugal com o filho para uma pescaria em Cascais. Natalia desconfiou que o cidadão quis mesmo foi se livrar das mulheres por um tempo, ainda que pagando caro por isso. De qualquer forma, aquela amizade tão bonita entre a atual e as duas “ex” do mesmo homem não deixava de ser um belo exemplo de civilidade.
            _Você deveria experimentar, minha filha _ disse Cecilia para Natalia. Não o marido dela, fique bem claro, mas as maravilhas da cirurgia plástica. _ É viciante, isso de construir tudo de novo com um bisturi e olvidar o passar dos anos. Eu já fiz umas três operações!
            _ Vou pensar nisso! _ respondeu a moça, sem acrescentar que estava longe de precisar de qualquer intervenção cirúrgica para manter a natural beleza e juventude.
            No DP, Gusmão teve a mesma impressão de Natalia, de que aquele furto estava mal contado. Depois de uma rápida conversa por telefone com o chefe da segurança do hotel ficou sabendo que o cofre do quarto não tinha sinais de arrombamento. Isso aumentou as suspeitas. Quem abriria o cofre com tanta facilidade, senão alguém que conhecesse a combinação? O detetive sentiu cheiro de trambique no ar, mas disfarçou, tentando parecer simpático e solícito. Deixou claro que encontraria o culpado – “ou culpada” _ disse olhando fixamente para as portuguesas _ antes do que elas pudessem imaginar. Cheio de charme, contou como esclareceu alguns falsos comunicados de crimes, mandando para a cadeia muita gente que tentava faturar às custas dos outros.
            No caminho de volta para o hotel Natalia ouviu uma série de elogios forçados. Eram muito eficientes! Tanto ela quanto a polícia local subiram milagrosamente no conceito das três hóspedes. Quando a viatura parou na frente do hotel, Gusmão ainda declarou, em voz alta:
            _ Não se preocupem, até hoje nem um único malfeitor me escapou, “ora pois”.
            Natalia olhou feio para o amigo, mas não conseguiu evitar um sorriso. Na despedida, premiou o policial com um caloroso beijo no rosto.
            _ E aquela cervejinha, minha linda?
            _ Hoje não dá, não vê?
            Despediram-se enquanto as três senhoras subiam rapidamente a seus apartamentos. Eram já duas horas da manhã. Natalia, com os olhos vermelhos de sono, resolveu esperar mais alguns minutos para ver o que aconteceria.
            Cochilava no sofá do hall quando percebeu um movimento incomum na recepção. Era dona Cecilia com as duas amigas.
            _ Ora pois, isso é mesmo um mistério. O dinheiro apareceu na cabeceira de minha cama! Tudo, tudo, cada dólar, tudo aqui.– e para provar o que dizia, tinha trazido todo o dinheiro até o balcão e chacoalhava as notas na frente dos narizes das atendentes. _ O larápio deve ter ficado com medo ao ver os policiais por aqui, e devolveu tudo. Mas eu bem que gostaria de por as mãos no salafrário
            _ Não seja por isso, dona Cecilia _ disse Natalia, levantando-se de onde estava. _ A investigação continua, é claro.
            _ Como assim? Não há crime algum a investigar! _ disse uma das amigas de Cecilia, surpreendida com a presença da gerente.
            _ Bem, um boletim foi registrado na delegacia, isso é péssimo para o nome do hotel e, de qualquer forma, o dinheiro “sumiu por um tempo”.
            As três respeitáveis senhoras tentaram convencer Natalia do inconveniente daquilo tudo, melhor esquecer e continuar aproveitando aquela agradável viagem ao Brasil, etc. Cecília jurou que voltaria ao distrito no dia seguinte, para retirar a queixa.
            Natalia sorriu e olhou significativamente para as mulheres. Apertou a mão de dona Cecília a título de despedida e não resistiu a dizer, em voz baixa:
            _Se aprontar outra dessas no meu hotel, chuto seu traseiro daqui até Lisboa, entendido?
            Cecilia respondeu com um sorriso nervoso, fingiu não entender e seguiu as colegas, que já se aproximavam dos elevadores.
_ Coitado do marido lá do outro lado do oceano, vivendo cercado dessas víboras! _ pensou a gerente, exausta.
            Três da manhã de mais um dia de trabalho para Natalia. Ela entrou no táxi que havia chamado e recostou a cabeça no banco. Estava dormindo antes de chegar em casa, onde o namorado zeloso também dormia, espalhado no sofá. Sobre a mesa da cozinha, uma garrafa de vinho que, certamente, teria que esperar por outra ocasião para ser aberta.

FIM

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