Chapeuzinho vermelho de sangue



Helen já estava arrependida. Devia ter ouvido os conselhos da mãe e adiado a visita à avó, do outro lado da floresta. Agora era tarde para voltar atrás, mais da metade do caminho tinha sido percorrida e o bosque de carvalhos estava a seu redor como uma armadilha de passarinhos. Os galhos secos estendiam-se rumo às estrelas da noite que caía rapidamente sobre a trilha. Aqueles braços ressequidos cruzavam-se sobre a cabeça da moça, deixando transparecer pouca luz da pálida lua cheia, lá no alto.
O lamento de uma coruja numa árvore próxima fez gelar o coração de Helen. A moça puxou as bordas do capuz sobre os belos cabelos dourados e apertou o passo, olhando timidamente para os lados, assustada. Uma angústia sem motivo aparente a oprimia no meio daquela solidão escura. 
A coruja se calou, e Helen voltou a ouvir apenas o barulho de seus pés sobre as folhas secas de outono que forravam a trilha. O medo foi crescendo em sua alma de forma irracional e misteriosa. Começou a imaginar vultos escondidos entre os troncos dos carvalhos; apavorou-se quando um morcego sobrevoou sua cabeça encapuzada. Não conseguiu conter um grito.
Logo à frente a trilha se bifurcava. O caminho da esquerda era considerado perigoso, mas era muito mais curto que o da direita. Helen resolveu se arriscar. Estava sozinha, o único perigo que corria era de morrer de susto com algum coelho ou gato-do-mato escondido nos arbustos. “Melhor chegar o quanto antes à casa de vovó”, pensava. “Ela gostará de receber os doces que levo nesta cesta”.
Decidida, a moça tomou o caminho da esquerda com passos firmes, evitando os pensamentos assustadores que a assaltavam. Longos minutos se passaram sem que qualquer ruído denunciasse algum perigo. 
Numa curva do caminho, de repente um som fantasmagórico atingiu os ouvidos de Helen como pequenas adagas de amargura. Um uivo tristonho, muito de longe. “Um lobo”, constatou. Ela tinha ouvido histórias sobre ovelhas encontradas mortas nos arredores daquela floresta com as cabeças quase arrancadas, os pescoços felpudos repletos de marcas profundas de presas.
Outro uivo se fez ouvir, dessa vez bem mais perto. Helen olhou para trás mas não conseguiu divisar nada na absoluta escuridão. Já estava difícil reconhecer a trilha, coberta de folhas e galhos secos. Mais um uivo, ainda mais próximo que o último. O medo tomou conta da alma da moça, que começou a correr. Notou o barulho de alguns passos acelerados atrás dela. Tentou ser ainda mais rápida, mas o pavor começava a enfraquecer suas belas pernas nuas, arranhadas pelos galhos caídos no caminho. O curto vestido enroscava-se nos arbustos que estreitavam a trilha mais e mais, a cada passo. As lágrimas do pânico molhavam o rosto de Helen quando ela notou que seu perseguidor estava a poucos metros de distância. Virou-se para olhar, mas só teve tempo de ver um vulto enorme, coberto de pêlos castanhos, com presas reluzindo ao luar, atirando-se sobre ela. Sentiu o impacto sobre as costas e caiu na trilha, com o rosto enfiado na terra e nas folhas secas. Na queda, bateu a cabeça em uma pedra e percebeu o líquido quente espalhando-se por sua testa, cegando-a e embebendo o capuz que usava. 
O animal começou a rosnar. Helen sentiu o hálito podre contra sua nuca, garras pontiagudas rasgando seu vestido e marcando sua pele alva. Começou a sufocar enquanto lutava furiosamente para se libertar. O monstro que estava sobre ela, então, afastou as pernas de Helen com as patas mortíferas… ela tentou implorar para que ele não fizesse aquilo, mas não conseguiu falar. Rezou para desmaiar; permaneceu consciente durante todos os últimos minutos de sua vida.
O corpo de Helen, deformado por cortes profundos, foi encontrado no bosque na manhã seguinte. Os policiais, desacostumados com aquele tipo de situação, não sabiam bem o que fazer; limitaram-se a cumprir a burocracia exigida em cenas como aquela, com uma inépcia lamentável.
No enterro o boato de que Helen havia sido morta por um lobo gigantesco se espalhou rapidamente entre os moradores supersticiosos da pequena vila. A avó da garota parecia ser a mais desconsolada de todas; mais até do que a própria mãe da moça. 
Uma semana de dor se passou para a família da morta. A avó de Helen, que permaneceu na casa da filha desde o crime, resolveu que era hora de voltar para seu lar no outro lado da floresta. Ela havia tomado uma decisão importante, e apressava-se em colocar sua ideia em prática.
Chegando em casa foi até a prateleira da cozinha, afastou alguns velhos livros de receitas e encontrou, no fundo da estante, um grande volume de capas amareladas. Olhou para as letras marcadas a fogo sobre a lombada. Um arrepio percorreu-lhe a espinha, mas decidiu que era preciso continuar. “Necronomicon”, leu na encadernação de pele humana. “Faz tanto tempo, meu Deus… pelo menos trinta anos desde que abri este livro pela última vez. Jurei abandonar os antigos ritos, mas tenho que quebrar a promessa! Não posso viver com a dor”, pensou. Já era noite quando vestiu uma capa negra e saiu de casa rumo ao cemitério nos arredores da vila, onde Helen foi sepultada. 
Os portões de ferro estavam destrancados como de costume. Nunca ninguém havia violado a moradia dos mortos, até então. A velha afastou as folhas metálicas provocando um rangido enferrujado e caminhou até o túmulo da neta. Abriu o livro diabólico que trouxera e começou a entoar uma antiga prece maldita, numa língua há muito esquecida. 
Passava da meia-noite quando a terra começou a se mexer junto à lápide. Logo a velha vislumbrou as mãos, num mórbido tom azulado, estendendo-se para fora da sepultura como garras de uma ave de rapina. A cabeça da morta, com os cabelos loiros cobertos de terra, despontou logo em seguida. Uma voz que mais parecia um chiado se impôs ao silêncio da noite:
_ Por quê a senhora me chamou? _ perguntou aquela coisa _ A dor, a dor da morte… meu corpo dói como se devorado por milhões de vermes. Não posso suportar! Por quê me invocou, vovó?
_ Precisava vê-la de novo, querida! Não aceito sua morte, ainda tão jovem e linda… O que conteceu com você, Helen? Sei que de além-túmulo tudo lhe foi revelado. Como você morreu?
Uma nuvem de tempestade se interpôs entre a lua fulgurante e a terra, trazendo em seu rastro o ribombar de mil trovões. A violência dos elementos só não superava o ódio que fulminava o coração da velha mulher, diante da revelação feita pelo que restou de sua neta.
Uma semana se passou. Um lenhador da região, conhecido da família de Helen, decidiu que era hora de verificar se a avó da moça estava passando bem. Nunca mais a visitara desde o enterro. O homem foi recebido com uma satisfação sincera. Logo se viu confortavelmente sentado à mesa da cozinha, com quitandas à sua volta; bolos, biscoitos, doces como aqueles que Helen levava para a avó naquela noite terrível. O chá fumegava na xícara e era sorvido por ele em pequenos goles, com um prazer sutil.
_ Fico feliz em ver que a senhora está lidando bem… hum… a senhora sabe, com a sua perda _ disse.
_ Claro, meu filho, claro que sim. A vida continua _ respondeu a senhora, com uma espécie de alegria _ Aliás, você nem pode imaginar o quanto essa frase é verdadeira.
_ E como tem passado o tempo, vovó?
_ Ora, cozinhando, costurando, essas coisas que as avós fazem. Tenho conversado muito com minha neta também.
O lenhador julgou não ter entendido direito o que a mulher havia dito. Mostrou sua surpresa contorcendo as grossas sobrancelhas entre os olhos negros e engolindo com dificuldade o resto do chá. 
_ Sim, é isso mesmo que o senhor ouviu. Helen é uma ótima companhia. Não gostaria de revê-la?
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, o corpo putrefato da defunta apareceu, saindo de um quarto nos fundos da casa. As carnes da moça, tão bela em vida, apresentavam toda a corrupção da morte. Vermes caíam-lhe dos olhos vazios, chagas profundas cobriam-lhe a pele antes tão branca e suave. A voz terrível, como que saída de um fosso profundo, se fez ouvir numa única e seca palavra:
_ Assassino!
O lenhador tentou sair dali mas notou que seus músculos estavam paralisados. Só então se deu conta de que a velha não tomara nem uma gota do chá que lhe ofereceu. Quis falar, mas sua língua não conseguia articular coisa alguma.
_ Várias vezes fiquei tentada a convidá-lo para vir a minha casa, mas resisti _ continuou a avó, indiferente aos grunhidos apavorados de sua vítima. _ Achei que seria mais irônico se você decidisse me visitar por conta própria. Não acha engraçado? O senhor mesmo procurar seu castigo! Isso deixa tudo muito mais interessante. A vingança perfeita exige esses requintes de paciência.
O terror espalhou-se pelo espírito do homem quando os dedos descarnados de Helen se aproximaram de seu rosto, enroscaram-se em seu farto bigode e o arrancaram com um puxão violento, o cheiro da podridão misturada com sangue invadindo-lhe as narinas.
_Espero que o prazer que sentiu quando estuprou minha neta tenha valido a pena.
Alucinado de dor e medo, o lenhador não viu mais nada; apenas a treva impenetrável da loucura.
Semanas depois o burburinho provocado pela misteriosa violação do túmulo de Helen perdeu espaço no interesse do povo para o encontro do corpo do lenhador, a poucos metros do lugar onde a moça havia sido morta. Estava em péssimo estado, meio devorado pelos animais da floresta. Algumas marcas no pescoço sugeriam que um lobo de grande porte havia participado daquele terrível banquete.
A polícia do vilarejo pediu ajuda a um investigador da capital. Duas mortes misteriosas em tão pouco tempo eram demais para aquela comunidade pacata e os parcos recursos dos policiais, acostumados a investigar roubos de galinhas ou brigas entre vizinhos. 
O experiente investigador designado para o caso chegou logo e, no mesmo dia, resolveu ir até a cabana do infeliz atrás de alguma pista. Ao vasculhar o quarto da casa, ouviu o ranger em falso de uma tábua sob seus pés. Ergueu o tapete e encontrou uma passagem para um porão secreto. Naquele recinto subterrâneo, viu uma estranha pele de lobo pendurada num canto, de pêlos castanho-cinzentos, garras afiadas como adagas e presas pontiagudas.
Longe dali, na casa da vovó, o chá era servido à hora de sempre, com todo esmero de que uma doce e solitária velhinha era capaz.
_ Você aceita um biscoito, querida? – perguntou a idosa.
_ Não, vovó, obrigada – respondeu a morta com sua voz de cemitério.
E todos foram felizes para sempre.
FIM
(Referências: H.P. Lovecraft; Hans Christian Andersen; irmãos Grimm; Charles Perrault) 


Comentários

Postagens mais visitadas