ENFERMIDADE - PARTE 4
"Se você esconder sua ignorância, ninguém lhe baterá e você nunca irá aprender"
("Fahrenheit 451", Ray Bradbury)
1 - Do hospital de campanha até em casa, Rose pega dois ônibus, um até o centro e outro até o outro lado da cidade. Somando o tempo de espera parada em pontos e terminais, mais o trajeto relativamente longo, a viagem dura em torno de uma hora e meia.
Quando Amália consegue trabalho como diarista, costuma começar a faxina pelo banheiro. "O pior primeiro", pensa. Esta parte da tarefa exige dela uma hora e meia de trabalho, quando não há filhos adolescentes e porcalhões na casa.
Rangel leva uma hora e meia para finalizar os relatórios do dia, checar a caixa de recados do telefone, trancar os papeis mais importantes na gaveta e fazer uma ou duas ligações para as fontes a fim de verificar se há alguma novidade.
Riquinho perde uma hora e meia como quem perde o crachá ou a carteira por distração. Quando dá por si, já se passou todo esse tempo e ele ainda não encontrou uma saída concreta para situação de penúria em que foi lançado com a famíla.
Uma hora e meia são noventa minutos. Em noventa minutos, enquanto Rose volta para casa, Amália lava um banheiro relativamente em ordem, Rangel encerra o expediente e Riquinho devaneia, em noventa minutos, noventa pessoas morreram por Dybbuk no país. Pelos menos duas vidas a cada minuto, em média. O mais assustador é que se algum arauto do caos dissesse há menos de dois anos que aquilo iria acontecer, que um vírus assassino mataria mais que qualquer guerra, seria logo ridicularizado ou ignorado como demente. E mesmo enquanto essa catástrofe acontece, parece difícil para muitas pessoas acreditar no que ouvem. E essa descrença é aliada do assassino.
Em 90 minutos, o quadro clínico de Bernardo piora assustadoramenramente. O alarme da UTI, tão frequente como o ruído da cidade, quebra o silêncio da madrugada e desperta uma exausta equipe de plantonistas. Todas as medidas necessárias são tomadas e o paciente é estabilizado à custa de muito esforço.
Amália custa a dormir e, quando dorme, tem um sono entrecortado por pesadelos. Ela sonha que está lavando uma série infindável de privadas, uma mais imunda que a outra e à medida que se aproxima do fim da tarefa novas privadas aparecem, e os produtos de limpeza vão se acabando, e as luvas de látex vão se rompendo e o desespero crescendo. Sempre que ela para o trabalho, uma campainha implacável a obriga a continuar, sem intervalo, sem descanso, sem sossego.
Amália acorda assustada e coberta de suor, mas a campainha continua tocando... ela precisa de alguns segundos para perceber que o que toca é o telefone ao lado da cama.
_ Alô _ diz ela com voz sonolenta.
Permanece em silêncio enquanto ouve a má notícia sobre a saúde do marido. Não tem mais lágrimas a verter, já se secaram há algum tempo. Fica apenas o vazio de mais uma perda iminente. Sem dizer nada, desliga o telefone.
No dia seguinte, de volta ao leito do marido, Amália ouve o longo relatório do médico como um eco no meio de um sonho... como se nada aquilo tivesse ligação com ela, sua vida e seu futuro. "Uma piora inesperada", "precisa de sedação o tempo todo", "mantido vivo por máquinas"...
A pergunta do médico tira Amália de seu torpor.
_ A senhora precisa decidir se devemos manter os aparelhos ligados ou não. É uma decisão dificil, pode levar o tempo que precisar para tomá-la.
Se há uma coisa que Amália tem certeza, é que o marido não desejaria jamais passar a vida vegetando num leito de hospital, dependendo de aparelhos para respirar. A decisão é estranhamente fácil.
_ Desligue - disse simplesmente.
_ Mas tem algo que a senhora precisa saber - redarguiu o médico, surpreso com a presteza da resposta da mulher.
_ O caso de seu marido é único na literatura médica sobre esta praga mortal. Nenhuma outra pessoa contaminada sobreviveu tanto tempo, ou se manteve livre dos sintomas comportamentais agressivos que ela acarreta. Há uma chance de Bernardo ter algo em sua genética que ajuda a controlar a doença, quem sabe até algo que talvez possamos isolar, sintetizar e transformar num remédio ou numa vacina.
Amália permaneceu calada sem entender a maior parte do que ouvia.
_ Vou pedir ao nosso diretor clínico que lhe explique melhor o que especialista ou dizendo - decidiu o médico.
_ Em poucas palavras, senhora Amália - disse o doutor Salomão minutos depois - seu marido pode guardar em si o segredo para uma vacina, talvez até para a cura dessa doença. Mas para isso, precisamos de tempo para fazer exames, testes e estudos. Precisamos verificar todas as características genéticas de Bernardo, e experimentar qual delas provoca essa reação tão incomum do organismo dele ao ataque do vírus. O que estou dizendo, senhora Amália, é que precisamos do seu marido vivo para pesquisar uma cura para o vermelhão.
Amália ponderou tudo que ouviu. Sentiu-se deprimida pela situação do marido, incapaz de tomar qualquer decisão por si mesmo, jogando para ela aquela terrível responsabilidade. Ela seria capaz de impedir o descanso de seu companheiro de tantos anos para que houvesse uma esperança de acabar com a pandemia avassaladora que suprimiu tantas vidas, destruiu tantos lares - lares como o dela?
Não é fácil imaginar o sofrimento de ter o espírito imortal prisioneiro num corpo aniquilado. Incapaz de cortar os laços com este mundo, mantido vivo de forma artificial... por quanto tempo? Quanto demoraria uma pesquisa desse tipo? Anos, certamente. Seria um peso também para ela, carregar para sempre este peso na consciência por permitir que o marido fosse transformado num "rato de laboratório".
Amália pensou então nos filhos, no pai, em todos os conhecidos que morreram por causa do vermelhão... e a decisão ficou menos penosa.
_ Está bem, doutor. Faça o que acha necessário.
2 - Rose estava irritada. Tentava se conter para não dar um soco no homem à sua frente. Lutava para se lembrar que tamanha ignorância não era culpa apenas dele, mas também das fake news e da atitude criminosa de políticos reacionários, com seus discursos negacionistas.
- Já disse, moça! Não vou vacinar minha filha. Esse tal de vermelhão é uma mentira inventada pela esquerda pra desacreditar o governo. O presidente falou que não precisa vacinar!
- Ele está errado, senhor! Não é questão de política. É ciência!
- Bobagem! Minha filha nunca tomou vacina pra nada e está aqui, ótima.
- Mas e as mortes? - Rose pegou um jornal que mantinha por perto pra quando precisava argumentar com algum "cabeça dura" como aquele - Olha aqui! Sete milhões de mortos em todo o mundo. 2 milhões só no Brasil, país mais atingido. 3 mil só aqui na sua cidade!
- Tudo mentira, esse jornal é contra o governo - disse o homem enquanto saía da unidade de saúde com passos firmes, cheio de razão.
Rose sentou-se numa cadeira na recepção, o jornal amassado entre as mãos, exausta. É fato que a pandemia finalmente foi controlada, anos depois de surgir e matar milhões, mas isso só foi possível depois que a vacina foi descoberta. Lembrou-se do paciente em coma na UTI do hospital de campanha. Ficou como um vegetal por anos, sendo sondado e revirado do avesso como uma cobaia, até que o antígeno fosse desenvolvido. Só depois disso os aparelhos que o mantinham vivo foram desligados e ele pode descansar. Ele e a esposa, que nunca o abandonou. E para que tanto sacrifício? Para oferecer uma chance a pessoas como aquele homem que acabara de sair da unidade, recusando a salvação. Ele e a filha podem até sobreviver, mas será uma questão de sorte em vez de uma probabilidade cientificamente garantida. Era desolador pensar naquilo ainda mais porque as mortes continuavam acontecendo - em menor número, mas o vírus ainda fazia vítimas, insaciável.
Rose se levantou para atender mais pacientes que chegavam, e jogou o jornal na lixeira do corredor.
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