ENFERMIDADE - PARTE 1
Existem pelo menos dois aspectos que merecem ser observados durante uma grande ameaça: o perigo em si, e a forma como as pessoas reagem a ele.
A reação pode garantir a sobrevivência, como pode também piorar a situação.
Mesmo não fazer nada é uma reação. E como qualquer outra atitude, traz consequências.
PARTE 1 - ANTES DO MUNDO ACABAR
1 -
Bernardo entrou na cabine do caminhão, acenou para Breno abaixo dele e se despediu:
- A gente se vê por aí, parceiro.
- Na estrada... complementou Breno.
O barulho do motor ligando ao girar a chave trouxe lembranças agradáveis. Foram quase sessenta dias ali parado, na frente da refinaria, bloqueando a estrada com os companheiros de todos os cantos do país. Bernardo achou que ia ficar maluco se aquela mobilização se estendesse muito mais. Já estava com saudade da estrada, da família, da vida. "Graças a Deus que fizeram promessas que convenceram as lideranças dos caminhoneiros", pensou. Mas ele próprio não estava convencido de que as promessas seriam cumpridas. Redução no preço do diesel, valor mínimo para o custo do frete, melhores condições de trabalho, perdão de dívidas de transportadoras. Até os mais céticos se espantaram com tamanho sucesso. Mas é como dizem, parando as estradas, para o país. A ameaça de racionamento dos combustíveis causou comoção, mas quando os produtos começaram a faltar nos supermercados, até a dona Maria da esquina botou a boca no trombone pedindo providências do governo. Havia quem questionasse os métodos dos caminhoneiros revoltados, mas ninguém questionava a justeza das reivindicações. Queriam o mínimo para continuar mantendo o país em movimento.
Da refinaria em São José dos Campos para o lar em Goiânia, seria uma longa viagem. Melhor assim, matar a saudade do volante. Talvez ele fizesse algumas paradas em postos de beira de estrada pra descansar e aproveitar a liberdade, depois daquele longo cativeiro autoimposto. As estradas até Goiânia eram todas boas e duplicadas, largas, tranquilas. Primeiro a Via Dutra, principal eixo de riquezas do país. Depois, pouco antes de São Paulo, desviar para a Dom Pedro e dela para a Rodovia Anhanguera, em Campinas. Uma longa esticada até a divisa com Minas Gerais, atravessar o Triângulo Mineiro e ir direto pra capital goiana pela BR-153. Quase mil quilômetros, mais de 11 horas de viagem. Aí sentir de novo o calor da esposa, a alegria dos dois filhos, o cheiro de roupa de cama lavada recém. Viajar é bom, mas voltar pra casa é melhor.
Bernardo poderia fazer o trajeto todo numa única corrida sem paradas. Abriu o porta-luvas e confirmou que tinha um suprimento de "rebites" mais do que suficiente para tal empreitada. Mas dessa vez não queria se drogar, não estava disposto a viajar como um zumbi, dormindo de olhos abertos, agindo automaticamente. Queria aproveitar a viagem, parar no caminho pra tomar uma cerveja, quem sabe até se divertir com alguma mulher da vida. Sem pressa, depois de tanto tempo parado. Retomar o ritmo aos poucos.
O tempo voou até a primeira de muitas praças de pedágio. Aquela era outra promessa arrancada do governo: interferência junto às concessionárias para evitar aumentos nas tarifas para os motoristas de caminhão. Pensando com calma, agora que tudo tinha acabado, parecia muito difícil acreditar que os líderes do protesto acreditassem mesmo que conseguiram aquilo pra valer, que não era apenas uma promessa vazia. Era como acreditar que os bancos estão preocupados com as pessoas, e não com os próprios lucros.
Estava decidido. Dirigiria até Ribeirão Preto e passaria a noite na cidade. Olhou para o relógio - 3 da tarde - e ligou o rádio. A emissora tocava Jorge & Mateus. E a saudade de casa ficou ainda mais presente.
2 - A aproximadamente mil quilômetros dali, Amália tinha acabo de conseguir fazer o bebê dormir depois de uma mamada. A louça do almoço ainda esperava dentro da pia. O mais velho tinha chegado da escola e brincava na rua de terra com as crianças dos vizinhos. Uma algazarra infantil enchia o ar. Medo que o bebê no berço acordasse. Às vezes tudo que ela queria era um tempo sozinha. Como naquele momento.
Bernardo, o marido tinha sido surpreendido pelo protesto de caminhoneiros quando voltava pra casa depois de levar uma carga de algodão para o porto de Santos. Pelo que ela soube do esposo em rápidas ligações telefônicas, ele tinha carregado o caminhão com fertilizantes antes de tomar o rumo de volta, mas ficou uma semana acampado com outros manifestantes perto da marginal Pinheiros em São Paulo, e depois foi convocado a engrossar o movimento na frente de uma refinaria em São José dos Campos. E ali ficou, quase dois meses. Não teve muito poder de escolha. Os colegas reagiam com violência contra os que chamavam de "fura-greve". Conhecedora da índole do marido, imaginou o quanto isso deve ter sido difícil para aquele espírito aventureiro e viajador - ficar em sair do lugar. Bernardo é um homem meio grosseirão, descuidado com o próprio corpo - a barriga já está ficando evidente demais - e não prima pelo romantismo. Mas ela também nunca conheceu outro tipo de relação, foi seu primeiro namorado. Descobriu o sexo com ele, e quando subiram ao altar, o Riquinho, filho mais velho, já estava na barriga dela. Amália não pode sentir falta do que não conhece. Dessa forma o relacionamento com o marido se torna algo imutável, inevitável, como o destino. Algo que tem que ser como é e pronto.
Depois daquela longa estadia dormindo no caminhão, comendo o que tinha ou o que recebia de doação de apoiadores do protesto, finalmente o marido está no caminho de casa. Não é bem alegria o que ela sente, é mais um alívio. Acostumou-se com o Bernardo longe por longos períodos. Acha até bom esses intervalos, pra alimentar uma certa saudade e dar mais sabor à presença do esposo. Na verdade, tem um pouco de inveja do marido que vive pra cima e pra baixo pelas estradas do Brasil, conhecendo lugares diferentes, pessoas diferentes... enquanto ela fica presa em casa com os filhos. Por isso valoriza tanto os momentos de sossego. Também acha justo que Bernardo se divirta um pouco nas viagens, afinal ele é o mantenedor da família. E ela nunca foi de ter muitos ciúmes. Assim vão tocando a vida, nesses 11 anos de casados. Sem grandes emoções, para o bem ou para o mal.
Enquanto o marido vai ficando cada vez mais velho, com o estômago inchado e os cabelos rareando, ela parece não envelhecer, a despeito dos dois filhos e do pesado trabalho doméstico. Cabelos pretos longos, pele morena, olhos muito grandes e inquiridores, lábios grossos. O corpo continua magro e firme como quando era solteira. Não poucos engraçadinhos tentaram a sorte com ela em cantadas desajeitadas... mas ela nunca se interessou por ninguém além de Bernardo. Criada na fé católica com rigidez, não se imagina traindo. É algo que simplesmente não passa pela sua cabeça.
Amália ouve o barulho de uma bolada contra a parede da sala. Os gritos das crianças ficam mais próximos, mais altos e estridentes.
É o fim do sossego.
Ela se levanta e vai em direção à porta da sala, disposta a dar um esparrame na molecada histérica. Mas é interrompida a meio do caminho pelo choro do bebê no quarto dos filhos. Contrariada, muda o rumo para atender o pequenino.
Dá o peito para o chorão e ele imediatamente se acalma. A dor da sucção no seio deixa Amália incomodada, mas não tira a ternura dos gestos de mãe. Faz um leve balançar para embalar o sono infantil interrompido. Senta-se na velha poltrona precisando de uma nova capa, e fica olhando pela janela, para a rua em frente, onde vê o pai se aproximando.
- Uai, pai, não são nem quatro horas. Já fechou o buteco?
- Boa tarde filha. Movimento tava muito ruim, com essa greve de caminhoneiro. Pouca coisa pra oferecer pra freguesia. Não valia o esforço. Dei o resto do dia de folga pro menino que me ajuda e resolvi visitar você. E como é que vai esse monstrinho? - pergunta se aproximando da filha e apertando de leve a bochecha do neto.
- Com fome. Tá sempre com fome ou irritado. Ou os dois.
- Logo isso passa e vai ficar mais fácil.
- Será? Olha o Riquinho lá fora. Nada de fazer lição, chega da escola e já sai correndo pra bagunçar com os amigos.
Amadeu vai para a janela e grita pelo neto - Henrique, vem aqui agora mesmo!
- Vou botar ele na linha, minha filha. Cuida do pequeno aí.
Depois de abraçar Riquinho, o avô ralha com doçura: "quer ficar burro? Crescer ignorante? Então trata de fazer a lição de casa. Mas primeiro vai se lavar, que tá parecendo um caco de telha de tanta poeira".
- Sim senhor, tô indo.
- Riquinho é um bom menino, filha. Só acho que às vezes ele precisava do pai mais por perto.
- Ai, pai, a gente já falou sobre isso várias vezes. Ele não ia aguentar nem uma semana trabalhando com o senhor no buteco. Além do mais, o que ele faz com carreto pode não ser uma fortuna, mas mantém a gente.
- Tá bom filha. Não vim pra discutir. Queria mesmo era saber de você e dos meninos. Sobrou almoço? Vou fazer um prato pra mim.
- Tem um pouco de arroz na panela - disse Amália olhando para o bebê que dormia de novo no seu colo.
3 - Pelo caminho, Bernardo encontrou vários bloqueios de caminhões. Nem todos tinham recebido ao mesmo tempo a notícia da vitória do movimento e do fim do protesto. Muitos permaneciam parados ao longo das estradas, não apenas no interior de São Paulo, mas como Bernardo soube mais tarde, em vários pontos do Brasil: no sul, centro-oeste, nordeste, norte. À medida que a notícia se espalhava, transmitida por rádio, televisões ou simplesmente de um caminhoneiro para outro, o fim da luta era saudado com uma buzinaço. Não apenas dos caminhões, mas dos carros de passeio e motos que passavam por perto.
Ao longo das rodovias, faixas de apoio à manifestação permaneciam estendidas em postes, sob viadutos, em cercas de arame farpado. Bernardo viu até um outdoor onde se lia "Sem caminhões o Brasil para - estamos com vocês", assinado como "cidadãos em defesa do trabalho". Ele tinha ouvido falar daquele grupo. Um dos muitos que assumiram uma postura de apoio à paralisação nas estradas. Todo mundo querendo tirar o seu quinhão do que eles conquistaram. Nas cidades os caminhoneiros eram recebidos com festa. Aplausos, comida de graça, tapas nas costas. Nunca uma categoria tinha se tornado tão popular antes. Tratados como heróis.
Mas Bernardo não conseguia se orgulhar.
Acostumado a ser ludibriado, humilhado ou simplesmente ignorado, era difícil para ele aceitar que de uma hora para outra passaria de mero trabalhador braçal a ídolo das massas. Chame de desconfiança, medo ou simplesmente bom senso. Aquilo não colava. O que poderia acontecer se o protesto continuasse e as pessoas começassem a passar fome? A simpatia do povo não duraria, certamente. Foi bom que tudo acabou antes de uma crise aguda de abastecimento. Os motoristas de caminhão provaram sua força, e souberam largar o osso antes que ele quebrasse.
Em Ribeirão Preto Bernardo encontrou um tradicional posto de combustíveis tomado de caminhões. Já era noite. Havia música e festa, animação, risadas. Bebida. Bernardo estacionou e foi cercado por um grupo alegre oferecendo garrafas de cerveja e abraços. Ele se deixou levar. Na manhã seguinte faria a entrega da carga de fertilizantes, mas naquela noite aproveitaria os louros da vitória. Resolveu entrar na festa.
O posto tinha uma praça com bombas de combustíveis, algumas exclusivamente para diesel; um restaurante térreo de amplas janelas envidraçadas e aparência suspeita - difícil comer ali sem dar uma segunda olhada para o prato, à procura de algo indesejável; e um pequeno bloco de apartamentos, com um quarto sem banheiro para caminhoneiros passarem a noite mais à vontade que nas cabines dos caminhões. Perto desses apartamentos era fácil avistar algumas moças em trajes curtos e extravagantes, com gestos expansivos que alguém poderia considerar sedutores. Prostitutas em busca de clientes.
Além desse cenário rotineiro e absolutamente comum, o que tornava aquele lugar diferente era o grande movimento de pessoas festejando. Um carro parado ali perto impunha o ruído ensurdecedor de grandes caixas de som tocando moda sertaneja em altos brados.
Nessas horas de descontração Bernardo lembrava da esposa. Amália certamente gostaria de estar ali com ele, se divertir um pouco, tomar uma cerveja, e depois se deitarem os dois sem criança por perto para atrapalhar o sexo. Se excitou com o pensamento, e imediatamente olhou para as moças perto dos quartinhos. Homem é assim, sempre pensou: dá vontade, não tem o que fazer senão matá-la. Mulher é diferente, pelo menos as "direitas". Sabem que não podem fazer aquilo e têm que se deitar só com o marido. A incoerência do raciocínio machista nunca ficou evidente para o caminhoneiro meio tosco. Cresceu ouvindo algumas regras, e com elas formou todo seu escopo filosófico - raso e, por vezes, equivocado. A vida para Bernardo é muito simples: trabalhar, botar o que comer na mesa, cuidar da família. Por isso aquele negócio de herói do País não entrava na cabeça dele. A ignorância funcionou como uma vacina contra o deslumbramento e a vaidade. No caso dele pelo menos, porque Bernardo estava cercado de colegas absolutamente convencidos de que haviam se tornado semideuses, capazes de botar freio num governo todo-poderoso.
Bernardo pegou uma garrafa de cachaça, aproximou-se das prostitutas e acertou o preço com uma delas, uma ruiva de cabelos artificiais cor de caju e seios grandes. A mulher que tem em casa sem dúvida é mil vezes mais bonita, mas ela não está aqui e a necessidade exige uma solução. Também certamente não se disporia a fazer certos agrados que Bernardo tinha em mente receber da parceira ocasional. Vai ser essa mesmo.
Acordou horas depois, sol já alto, boca amarga e cabeça doendo como se o cérebro fosse uma esponja sendo pressionada até vazar toda a água acumulada.
Olhou para o lado. A mulher não estava mais lá. Tentou se levantar mas uma tontura envolvente o jogo de volta ao colchão velho na cama rangente. Aguardou alguns minutos até o quarto parar de girar. Tentou se levantar de novo, mas os engulhos o obrigaram a ficar quieto, sentado, com a cabeça apoiada nos braços sobre os joelhos. A farra foi boa, mas agora cobra seu preço.
Alguns minutos se passaram até que Bernardo conseguiu caminhar até a porta e deixar a luz do sol entrar de chofre sobre seus olhos doloridos. Caminhou a passos trôpegos até o banheiro masculino. Jogou água no rosto, na nuca, lavou as mãos, olhou-se no espelho trincado. Saiu dali.
Só no caminho de volta para o quarto imundo conseguiu reparar no ambiente à sua volta. Da festança da véspera, nem vestígio, a não ser a sujeira espalhada pelo pátio, uma lixeira transbordando garrafas vazias, um ou outro caminhão estacionado. Nenhuma pessoa por perto. Um silêncio inquebrantável. Nem mesmo a rodovia em frente mostrava algum movimento capaz de interromper o torpor generalizado.
Na entrada do restaurante, porta fechada e um cartaz: "fechado". Plena sexta-feira? Aquilo era estranho! Só então apareceu um homem, de macacão de frentista e boné na cabeça. Se aproximou e exigiu o pagamento pelo uso do quarto. Bernardo tirou a carteira do bolso da bermuda e deu as cédulas amarrotadas para o outro.
- Por quê estão fechados em plena sexta-feira, a essa hora? - quis saber.
- Uai, não está sabendo? Baixou uma regra, tudo tem que fechar: restaurante, bar, loja, até os shoppings grã-finos estão de porta fechada.
- Não estou sabendo disso! O que aconteceu?
- O governo diz que é medida de segurança pra evitar a doença.
- Doença?
O suposto frentista coçou a testa.
- O senhor estava há muito tempo nalgum bloqueio de estrada ? Ficou sem notícias do mundão de Deus?
Bernardo concordou em silêncio.
- Tem umas duas semanas que um vírus começou a atacar por aí. As pessoas começaram a ficar doentes, alguns morreram, e o governo diz que é porque o mal se espalha de uma pessoa pra outra muito rápido, e mandou todo mundo ficar em casa, sem se misturar. A ordem saiu hoje de manhã e vieram aqui uns homens falando que eram da vigilância sanitária, mandando fechar tudo. Só a parte da venda de combustível ainda pode funcionar.
Aquilo tudo parecia um exagero injustificável. Bernardo olhou em volta e sentiu um vazio, como em filme de terror. Como se o mundo tivesse acabado. Foi pegar a camisa no quarto já esquecido da ressaca e da dor por trás dos olhos ardentes, pensando em tomar logo a estrada no rumo de casa o mais rápido possível.
Seguiu dali direto para a Cooperativa Agrícola a fim de entregar a carga de fertilizantes.
4 - O depósito da cooperativa ficava do outro lado da cidade, perto da rodovia que liga Ribeirão Preto a São Carlos. Bernardo parou na frente do grande portão telado. Reparou que a guarita estava vazia. Desceu e se aproximou do portão, onde um cadeado e uma grossa corrente de ferro impediam o acesso. Havia também um papel colado, com carimbos oficiais e assinaturas, informando que por questão de segurança sanitária aquele lugar estava fechado, sem data para reabrir. Era um lacre da vigilância em saúde.
Através da cerca desenhava-se um grande pátio com alguns caminhões, caixas de madeira, uma carregadeira parada. Nenhum funcionário por perto. Bernardo apoiou as mãos e a testa na grade, sem saber o que fazer. Como se livraria da carga para poder seguir viagem? Resolveu tentar uma cartada: voltou para o caminhão e acionou a buzina estridente, com insistência. Alguém haveria de atender aquele chamado.
No escritório do depósito vazio, o presidente da Cooperativa de Produtores de Cana-de-Açúcar da região e um assessor conversavam em voz baixa.
- Temos que dar um jeito de reabrir o depósito. Não dá pra perder dinheiro nessa crise. Acabamos de amargar prejuízos com a greve dos caminhoneiros e agora já estamos às voltas com essa quarentena idiota! - disse o presidente.
-Logo começa a estação de plantio da próxima safra da cana. Os produtores estão precisando de insumos, e tudo parado por aí nas estradas! É criminoso isso que os caminhoneiros fizeram.
- Mas que buzinaço irritante é esse lá fora? - perguntou o presidente erguendo-se da poltrona e olhando pela janela do escritório.
- Ora! Um caminhão parado no portão da frente!
- Uai já? O protesto mal acabou e já tem motorista batendo na nossa porta! - comentou o assessor.
- Vai lá ver o que ele quer, Reginaldo.
Reginaldo foi. Deparou-se com Bernardo e a carga de fertilizantes. Surgiu um problema. Como receber a carga com o lacre impedindo a abertura do portão? Pelo celular mesmo o assessor comunicou o fato ao chefe no escritório.
- Que dúvida, Reginaldo! Rasga logo esse lacre e manda o moço entrar com a carga. Vou ligar para o Sebastião juntar uma turma de carregadores pra botar a carga no galpão três.
E assim se fez. Três horas depois o trabalho estava concluído. Nesse meio tempo Bernardo conversou com Reginaldo sobre a tal virose que tinha provocado o fechamento do depósito. Ficou sabendo que ela tinha começado a se espalhar pelo estado há umas três semanas, mais ou menos na época em que os caminhoneiros começaram o protesto. Dizem que um dos primeiros casos, talvez o primeiro de todos, foi num estivador que tinha chegado a Santos num navio carregado com eletrônicos de Hong Kong. Desembarcou bem de saúde, como toda a tripulação. Passaram pela inspeção da saúde e foram à terra. Dois dias depois, esse estivador começou a sentir febre, uma tosse ruidosa e insistente, dificuldade para respirar. O caso avançou rapidamente e ele morreu no hospital menos de 10 horas depois do primeiro sintoma.
A gravidade da doença chamou a atenção dos médicos. Exames descartaram bactérias e diversos vírus conhecidos. Acabaram descobrindo um novo tipo de vírus, uma variação de influenza mais resistente aos medicamentos comuns. Disparou-se o alerta, o Ministério da Saúde agiu e mandou isolar todo mundo até que se consiga uma defesa eficaz contra o novo vírus.
Bernardo não conseguiu entender tudo, principalmente a parte sobre "variação de vírus" e "imunização"... mas atinou o suficiente para saber que algo bem grave estava acontecendo.
Não fazia a menor ideia do tamanho da ameaça.
Bernardo poderia fazer o trajeto todo numa única corrida sem paradas. Abriu o porta-luvas e confirmou que tinha um suprimento de "rebites" mais do que suficiente para tal empreitada. Mas dessa vez não queria se drogar, não estava disposto a viajar como um zumbi, dormindo de olhos abertos, agindo automaticamente. Queria aproveitar a viagem, parar no caminho pra tomar uma cerveja, quem sabe até se divertir com alguma mulher da vida. Sem pressa, depois de tanto tempo parado. Retomar o ritmo aos poucos.
O tempo voou até a primeira de muitas praças de pedágio. Aquela era outra promessa arrancada do governo: interferência junto às concessionárias para evitar aumentos nas tarifas para os motoristas de caminhão. Pensando com calma, agora que tudo tinha acabado, parecia muito difícil acreditar que os líderes do protesto acreditassem mesmo que conseguiram aquilo pra valer, que não era apenas uma promessa vazia. Era como acreditar que os bancos estão preocupados com as pessoas, e não com os próprios lucros.
Estava decidido. Dirigiria até Ribeirão Preto e passaria a noite na cidade. Olhou para o relógio - 3 da tarde - e ligou o rádio. A emissora tocava Jorge & Mateus. E a saudade de casa ficou ainda mais presente.
2 - A aproximadamente mil quilômetros dali, Amália tinha acabo de conseguir fazer o bebê dormir depois de uma mamada. A louça do almoço ainda esperava dentro da pia. O mais velho tinha chegado da escola e brincava na rua de terra com as crianças dos vizinhos. Uma algazarra infantil enchia o ar. Medo que o bebê no berço acordasse. Às vezes tudo que ela queria era um tempo sozinha. Como naquele momento.
Bernardo, o marido tinha sido surpreendido pelo protesto de caminhoneiros quando voltava pra casa depois de levar uma carga de algodão para o porto de Santos. Pelo que ela soube do esposo em rápidas ligações telefônicas, ele tinha carregado o caminhão com fertilizantes antes de tomar o rumo de volta, mas ficou uma semana acampado com outros manifestantes perto da marginal Pinheiros em São Paulo, e depois foi convocado a engrossar o movimento na frente de uma refinaria em São José dos Campos. E ali ficou, quase dois meses. Não teve muito poder de escolha. Os colegas reagiam com violência contra os que chamavam de "fura-greve". Conhecedora da índole do marido, imaginou o quanto isso deve ter sido difícil para aquele espírito aventureiro e viajador - ficar em sair do lugar. Bernardo é um homem meio grosseirão, descuidado com o próprio corpo - a barriga já está ficando evidente demais - e não prima pelo romantismo. Mas ela também nunca conheceu outro tipo de relação, foi seu primeiro namorado. Descobriu o sexo com ele, e quando subiram ao altar, o Riquinho, filho mais velho, já estava na barriga dela. Amália não pode sentir falta do que não conhece. Dessa forma o relacionamento com o marido se torna algo imutável, inevitável, como o destino. Algo que tem que ser como é e pronto.
Depois daquela longa estadia dormindo no caminhão, comendo o que tinha ou o que recebia de doação de apoiadores do protesto, finalmente o marido está no caminho de casa. Não é bem alegria o que ela sente, é mais um alívio. Acostumou-se com o Bernardo longe por longos períodos. Acha até bom esses intervalos, pra alimentar uma certa saudade e dar mais sabor à presença do esposo. Na verdade, tem um pouco de inveja do marido que vive pra cima e pra baixo pelas estradas do Brasil, conhecendo lugares diferentes, pessoas diferentes... enquanto ela fica presa em casa com os filhos. Por isso valoriza tanto os momentos de sossego. Também acha justo que Bernardo se divirta um pouco nas viagens, afinal ele é o mantenedor da família. E ela nunca foi de ter muitos ciúmes. Assim vão tocando a vida, nesses 11 anos de casados. Sem grandes emoções, para o bem ou para o mal.
Enquanto o marido vai ficando cada vez mais velho, com o estômago inchado e os cabelos rareando, ela parece não envelhecer, a despeito dos dois filhos e do pesado trabalho doméstico. Cabelos pretos longos, pele morena, olhos muito grandes e inquiridores, lábios grossos. O corpo continua magro e firme como quando era solteira. Não poucos engraçadinhos tentaram a sorte com ela em cantadas desajeitadas... mas ela nunca se interessou por ninguém além de Bernardo. Criada na fé católica com rigidez, não se imagina traindo. É algo que simplesmente não passa pela sua cabeça.
Amália ouve o barulho de uma bolada contra a parede da sala. Os gritos das crianças ficam mais próximos, mais altos e estridentes.
É o fim do sossego.
Ela se levanta e vai em direção à porta da sala, disposta a dar um esparrame na molecada histérica. Mas é interrompida a meio do caminho pelo choro do bebê no quarto dos filhos. Contrariada, muda o rumo para atender o pequenino.
Dá o peito para o chorão e ele imediatamente se acalma. A dor da sucção no seio deixa Amália incomodada, mas não tira a ternura dos gestos de mãe. Faz um leve balançar para embalar o sono infantil interrompido. Senta-se na velha poltrona precisando de uma nova capa, e fica olhando pela janela, para a rua em frente, onde vê o pai se aproximando.
- Uai, pai, não são nem quatro horas. Já fechou o buteco?
- Boa tarde filha. Movimento tava muito ruim, com essa greve de caminhoneiro. Pouca coisa pra oferecer pra freguesia. Não valia o esforço. Dei o resto do dia de folga pro menino que me ajuda e resolvi visitar você. E como é que vai esse monstrinho? - pergunta se aproximando da filha e apertando de leve a bochecha do neto.
- Com fome. Tá sempre com fome ou irritado. Ou os dois.
- Logo isso passa e vai ficar mais fácil.
- Será? Olha o Riquinho lá fora. Nada de fazer lição, chega da escola e já sai correndo pra bagunçar com os amigos.
Amadeu vai para a janela e grita pelo neto - Henrique, vem aqui agora mesmo!
- Vou botar ele na linha, minha filha. Cuida do pequeno aí.
Depois de abraçar Riquinho, o avô ralha com doçura: "quer ficar burro? Crescer ignorante? Então trata de fazer a lição de casa. Mas primeiro vai se lavar, que tá parecendo um caco de telha de tanta poeira".
- Sim senhor, tô indo.
- Riquinho é um bom menino, filha. Só acho que às vezes ele precisava do pai mais por perto.
- Ai, pai, a gente já falou sobre isso várias vezes. Ele não ia aguentar nem uma semana trabalhando com o senhor no buteco. Além do mais, o que ele faz com carreto pode não ser uma fortuna, mas mantém a gente.
- Tá bom filha. Não vim pra discutir. Queria mesmo era saber de você e dos meninos. Sobrou almoço? Vou fazer um prato pra mim.
- Tem um pouco de arroz na panela - disse Amália olhando para o bebê que dormia de novo no seu colo.
3 - Pelo caminho, Bernardo encontrou vários bloqueios de caminhões. Nem todos tinham recebido ao mesmo tempo a notícia da vitória do movimento e do fim do protesto. Muitos permaneciam parados ao longo das estradas, não apenas no interior de São Paulo, mas como Bernardo soube mais tarde, em vários pontos do Brasil: no sul, centro-oeste, nordeste, norte. À medida que a notícia se espalhava, transmitida por rádio, televisões ou simplesmente de um caminhoneiro para outro, o fim da luta era saudado com uma buzinaço. Não apenas dos caminhões, mas dos carros de passeio e motos que passavam por perto.
Ao longo das rodovias, faixas de apoio à manifestação permaneciam estendidas em postes, sob viadutos, em cercas de arame farpado. Bernardo viu até um outdoor onde se lia "Sem caminhões o Brasil para - estamos com vocês", assinado como "cidadãos em defesa do trabalho". Ele tinha ouvido falar daquele grupo. Um dos muitos que assumiram uma postura de apoio à paralisação nas estradas. Todo mundo querendo tirar o seu quinhão do que eles conquistaram. Nas cidades os caminhoneiros eram recebidos com festa. Aplausos, comida de graça, tapas nas costas. Nunca uma categoria tinha se tornado tão popular antes. Tratados como heróis.
Mas Bernardo não conseguia se orgulhar.
Acostumado a ser ludibriado, humilhado ou simplesmente ignorado, era difícil para ele aceitar que de uma hora para outra passaria de mero trabalhador braçal a ídolo das massas. Chame de desconfiança, medo ou simplesmente bom senso. Aquilo não colava. O que poderia acontecer se o protesto continuasse e as pessoas começassem a passar fome? A simpatia do povo não duraria, certamente. Foi bom que tudo acabou antes de uma crise aguda de abastecimento. Os motoristas de caminhão provaram sua força, e souberam largar o osso antes que ele quebrasse.
Em Ribeirão Preto Bernardo encontrou um tradicional posto de combustíveis tomado de caminhões. Já era noite. Havia música e festa, animação, risadas. Bebida. Bernardo estacionou e foi cercado por um grupo alegre oferecendo garrafas de cerveja e abraços. Ele se deixou levar. Na manhã seguinte faria a entrega da carga de fertilizantes, mas naquela noite aproveitaria os louros da vitória. Resolveu entrar na festa.
O posto tinha uma praça com bombas de combustíveis, algumas exclusivamente para diesel; um restaurante térreo de amplas janelas envidraçadas e aparência suspeita - difícil comer ali sem dar uma segunda olhada para o prato, à procura de algo indesejável; e um pequeno bloco de apartamentos, com um quarto sem banheiro para caminhoneiros passarem a noite mais à vontade que nas cabines dos caminhões. Perto desses apartamentos era fácil avistar algumas moças em trajes curtos e extravagantes, com gestos expansivos que alguém poderia considerar sedutores. Prostitutas em busca de clientes.
Além desse cenário rotineiro e absolutamente comum, o que tornava aquele lugar diferente era o grande movimento de pessoas festejando. Um carro parado ali perto impunha o ruído ensurdecedor de grandes caixas de som tocando moda sertaneja em altos brados.
Nessas horas de descontração Bernardo lembrava da esposa. Amália certamente gostaria de estar ali com ele, se divertir um pouco, tomar uma cerveja, e depois se deitarem os dois sem criança por perto para atrapalhar o sexo. Se excitou com o pensamento, e imediatamente olhou para as moças perto dos quartinhos. Homem é assim, sempre pensou: dá vontade, não tem o que fazer senão matá-la. Mulher é diferente, pelo menos as "direitas". Sabem que não podem fazer aquilo e têm que se deitar só com o marido. A incoerência do raciocínio machista nunca ficou evidente para o caminhoneiro meio tosco. Cresceu ouvindo algumas regras, e com elas formou todo seu escopo filosófico - raso e, por vezes, equivocado. A vida para Bernardo é muito simples: trabalhar, botar o que comer na mesa, cuidar da família. Por isso aquele negócio de herói do País não entrava na cabeça dele. A ignorância funcionou como uma vacina contra o deslumbramento e a vaidade. No caso dele pelo menos, porque Bernardo estava cercado de colegas absolutamente convencidos de que haviam se tornado semideuses, capazes de botar freio num governo todo-poderoso.
Bernardo pegou uma garrafa de cachaça, aproximou-se das prostitutas e acertou o preço com uma delas, uma ruiva de cabelos artificiais cor de caju e seios grandes. A mulher que tem em casa sem dúvida é mil vezes mais bonita, mas ela não está aqui e a necessidade exige uma solução. Também certamente não se disporia a fazer certos agrados que Bernardo tinha em mente receber da parceira ocasional. Vai ser essa mesmo.
Acordou horas depois, sol já alto, boca amarga e cabeça doendo como se o cérebro fosse uma esponja sendo pressionada até vazar toda a água acumulada.
Olhou para o lado. A mulher não estava mais lá. Tentou se levantar mas uma tontura envolvente o jogo de volta ao colchão velho na cama rangente. Aguardou alguns minutos até o quarto parar de girar. Tentou se levantar de novo, mas os engulhos o obrigaram a ficar quieto, sentado, com a cabeça apoiada nos braços sobre os joelhos. A farra foi boa, mas agora cobra seu preço.
Alguns minutos se passaram até que Bernardo conseguiu caminhar até a porta e deixar a luz do sol entrar de chofre sobre seus olhos doloridos. Caminhou a passos trôpegos até o banheiro masculino. Jogou água no rosto, na nuca, lavou as mãos, olhou-se no espelho trincado. Saiu dali.
Só no caminho de volta para o quarto imundo conseguiu reparar no ambiente à sua volta. Da festança da véspera, nem vestígio, a não ser a sujeira espalhada pelo pátio, uma lixeira transbordando garrafas vazias, um ou outro caminhão estacionado. Nenhuma pessoa por perto. Um silêncio inquebrantável. Nem mesmo a rodovia em frente mostrava algum movimento capaz de interromper o torpor generalizado.
Na entrada do restaurante, porta fechada e um cartaz: "fechado". Plena sexta-feira? Aquilo era estranho! Só então apareceu um homem, de macacão de frentista e boné na cabeça. Se aproximou e exigiu o pagamento pelo uso do quarto. Bernardo tirou a carteira do bolso da bermuda e deu as cédulas amarrotadas para o outro.
- Por quê estão fechados em plena sexta-feira, a essa hora? - quis saber.
- Uai, não está sabendo? Baixou uma regra, tudo tem que fechar: restaurante, bar, loja, até os shoppings grã-finos estão de porta fechada.
- Não estou sabendo disso! O que aconteceu?
- O governo diz que é medida de segurança pra evitar a doença.
- Doença?
O suposto frentista coçou a testa.
- O senhor estava há muito tempo nalgum bloqueio de estrada ? Ficou sem notícias do mundão de Deus?
Bernardo concordou em silêncio.
- Tem umas duas semanas que um vírus começou a atacar por aí. As pessoas começaram a ficar doentes, alguns morreram, e o governo diz que é porque o mal se espalha de uma pessoa pra outra muito rápido, e mandou todo mundo ficar em casa, sem se misturar. A ordem saiu hoje de manhã e vieram aqui uns homens falando que eram da vigilância sanitária, mandando fechar tudo. Só a parte da venda de combustível ainda pode funcionar.
Aquilo tudo parecia um exagero injustificável. Bernardo olhou em volta e sentiu um vazio, como em filme de terror. Como se o mundo tivesse acabado. Foi pegar a camisa no quarto já esquecido da ressaca e da dor por trás dos olhos ardentes, pensando em tomar logo a estrada no rumo de casa o mais rápido possível.
Seguiu dali direto para a Cooperativa Agrícola a fim de entregar a carga de fertilizantes.
4 - O depósito da cooperativa ficava do outro lado da cidade, perto da rodovia que liga Ribeirão Preto a São Carlos. Bernardo parou na frente do grande portão telado. Reparou que a guarita estava vazia. Desceu e se aproximou do portão, onde um cadeado e uma grossa corrente de ferro impediam o acesso. Havia também um papel colado, com carimbos oficiais e assinaturas, informando que por questão de segurança sanitária aquele lugar estava fechado, sem data para reabrir. Era um lacre da vigilância em saúde.
Através da cerca desenhava-se um grande pátio com alguns caminhões, caixas de madeira, uma carregadeira parada. Nenhum funcionário por perto. Bernardo apoiou as mãos e a testa na grade, sem saber o que fazer. Como se livraria da carga para poder seguir viagem? Resolveu tentar uma cartada: voltou para o caminhão e acionou a buzina estridente, com insistência. Alguém haveria de atender aquele chamado.
No escritório do depósito vazio, o presidente da Cooperativa de Produtores de Cana-de-Açúcar da região e um assessor conversavam em voz baixa.
- Temos que dar um jeito de reabrir o depósito. Não dá pra perder dinheiro nessa crise. Acabamos de amargar prejuízos com a greve dos caminhoneiros e agora já estamos às voltas com essa quarentena idiota! - disse o presidente.
-Logo começa a estação de plantio da próxima safra da cana. Os produtores estão precisando de insumos, e tudo parado por aí nas estradas! É criminoso isso que os caminhoneiros fizeram.
- Mas que buzinaço irritante é esse lá fora? - perguntou o presidente erguendo-se da poltrona e olhando pela janela do escritório.
- Ora! Um caminhão parado no portão da frente!
- Uai já? O protesto mal acabou e já tem motorista batendo na nossa porta! - comentou o assessor.
- Vai lá ver o que ele quer, Reginaldo.
Reginaldo foi. Deparou-se com Bernardo e a carga de fertilizantes. Surgiu um problema. Como receber a carga com o lacre impedindo a abertura do portão? Pelo celular mesmo o assessor comunicou o fato ao chefe no escritório.
- Que dúvida, Reginaldo! Rasga logo esse lacre e manda o moço entrar com a carga. Vou ligar para o Sebastião juntar uma turma de carregadores pra botar a carga no galpão três.
E assim se fez. Três horas depois o trabalho estava concluído. Nesse meio tempo Bernardo conversou com Reginaldo sobre a tal virose que tinha provocado o fechamento do depósito. Ficou sabendo que ela tinha começado a se espalhar pelo estado há umas três semanas, mais ou menos na época em que os caminhoneiros começaram o protesto. Dizem que um dos primeiros casos, talvez o primeiro de todos, foi num estivador que tinha chegado a Santos num navio carregado com eletrônicos de Hong Kong. Desembarcou bem de saúde, como toda a tripulação. Passaram pela inspeção da saúde e foram à terra. Dois dias depois, esse estivador começou a sentir febre, uma tosse ruidosa e insistente, dificuldade para respirar. O caso avançou rapidamente e ele morreu no hospital menos de 10 horas depois do primeiro sintoma.
A gravidade da doença chamou a atenção dos médicos. Exames descartaram bactérias e diversos vírus conhecidos. Acabaram descobrindo um novo tipo de vírus, uma variação de influenza mais resistente aos medicamentos comuns. Disparou-se o alerta, o Ministério da Saúde agiu e mandou isolar todo mundo até que se consiga uma defesa eficaz contra o novo vírus.
Bernardo não conseguiu entender tudo, principalmente a parte sobre "variação de vírus" e "imunização"... mas atinou o suficiente para saber que algo bem grave estava acontecendo.
Não fazia a menor ideia do tamanho da ameaça.
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