VESPEIRO


Parte de um quadro de Jackson Pollock





1


     Quinta-feira, 12 de setembro de 1991.
     


     O caminho de casa para o trabalho estava entre os mais belos e iluminados de que pudesse se lembrar. Uma rua bem asfaltada passando entre casas de estilo colonial e grandes quintais que acolhiam até mesmo as majestosas Araucárias. Depois a rua sinuosa desaguava numa avenida larga, entremeada pela estrada de ferro, onde ocasionalmente se via o romântico bondinho elétrico vermelho levando passageiros da cidade e turistas pelo mesmo preço irrisório. A avenida era margeada de Plátanus que enchiam a paisagem de verde na primavera e de um tom queimado de cobre no outono, quando as folhas caídas se transformavam num tapete farfalhante. Sim, o lugar era lindo, ele não cansava de repetir. Àquela hora da manhã o orvalho tingia de prata as copas das árvores e a folhagem dos arbustos. Apesar do sol imponente e do céu totalmente azul, o frio deixava uma agradável sensação de aconchego. Estava há poucos meses na cidade mas já se sentia como se tivesse vivido ali desde sempre. Um paraíso terrestre, como dizia a letra do hino do município. Campos do Jordão, Suíça Brasileira. Seu novo lar, de tantos que já teve na vida. 
     A viagem pela paisagem bucólica durava menos de 40 minutos. Ele quase lamentava essa proximidade. Trânsito quase inexistente, apenas a exuberância ao longo do caminho. Impossível imaginar alguém com pressa num lugar desses. Que diferença da barulhenta e superpovoada capital!
     Foi difícil convencer a família da mudança completa de vida, ele se lembra. Não queria assustar ninguém, mas teve que argumentar que talvez São Paulo não fosse mais uma cidade segura para ele. Shirley relutou, a filha odiou a ideia de deixar para trás amigos e paqueras. Hoje, menos de dois meses depois, nenhuma das duas consegue se imaginar vivendo em qualquer outro lugar. Foram conquistadas pelo cheiro da terra molhada de orvalho, pelas colinas de um verde luxurioso, pelo céu de um azul tão cristalino que chegava a cegar, onde nuvens eram uma exceção quase que todos os dias. 
    O juiz Flávio Rogendorff estacionou numa das poucas vagas nos fundos do prédio. Pegou a maleta de duplo fecho e foi para a entrada de serviço do fórum. Antes de seguir para sua sala no primeiro andar, parou na copa e pediu uma xícara de café.
     - Bom dia, sêo dotô Frávio. Tá aqui sua caneca com café quentinho.
     - Obrigado, dona Expedita. A senhora sempre muito gentil.
     - Nunca vi juíz que chegava antes das oito pra trabaiá - comentou dona Expedita com a faxineira, logo que o homem saiu da copa em direção às escadas. - I é bonzim tamém, fala sempre com a gente. Num é arrogante qui nem os ôtro.
     Flávio destrancou a sala, colocou a pasta sobre a mesa, tirou o paletó e o jogou sobre o espaldar da poltrona, como sempre fazia. Deu um gole no café e olhou para as pilhas de processos no canto da mesa, na escrivaninha ao lado, na estante perto da parede. Deu um suspiro resignado. Aquelas pilhas nunca encolhiam, não importava o quanto ele trabalhasse para dar andamento aos casos. Sempre surgiam outras demandas para substituir as concluídas. 
     O juiz criminal deu mais um gole no café sem açúcar de dona Expedita. Do jeito que ele gosta, forte, amargo, bem quente. Para acordar. Sentou-se na cadeira e puxou um dos processos para perto de si. Tinha acabado de abrir a capa quando o novo escriturário bateu na porta entreaberta.
     - Licença, doutor. Estou com a correspondência.
     Flávio logo notou um pacote diferente junto com as cartas. Resolveu deixar para examiná-lo por último. Antes inspecionou os envelopes. Nada pessoal, nem um bilhete sequer. Tudo referente a trabalho. Tudo desimportante, a propósito. Coisas que podiam bem esperar uma vida inteira para receberem atenção. O juiz afastou os envelopes com uma certa impaciência e pegou o pacote maior.
     Era um pouco menor que uma caixa de bombons. Inconscientemente, com um risinho nos lábios, Flávio apalpou a barriga um tanto protuberante a despeito de seus esforços nas corridas de rua. Mas logo afastou da mente a visão dos chocolates. Voltou a se concentrar no pacote. Estava embrulhado em papel pardo atado com um cordão de sisal. Em letras de forma, num dos lados do papel, o nome do juiz e o endereço do fórum - minucioso, trazendo até o número da sala ocupada por ele. Nada mais. Nenhum endereço de remetente. Aquilo era incomum. 
     Curioso, o magistrado desatou o barbante. Rasgou o papel nos pontos em que estava preso com durex. Uma Bíblia se revelou em suas mãos. Flávio estranhou o presente. Nunca foi religioso e nem teve amigos que fossem. "Talvez um agrado de alguém que foi beneficiado por uma de minhas decisões", pensou por um momento. Pouco provável na área criminal em que sempre atuou, mais condenando do que absolvendo. Mas quem sabe aquilo não veio de algum parente de vítima cujo algoz ele julgou? Podia ser.
     A Bíblia era das mais comuns. Encadernação dura, preta, com os dizeres "Bíblia Sagrada" gravados em tinta dourada. Flávio pegou a grossa maleta de trabalho e a abriu sobre o colo, para guardar a Bíblia. Mas antes, resolveu verificar se havia alguma dedicatória na primeira página daquele livro inesperado. Abriu a capa.


    A explosão ecoou por vários quarteirões.

                             
2

    Ricardo era escriturário há pouco tempo. Tinha passado num concurso do judiciário e conseguido uma vaga no fórum de Campos do Jordão. Achou ótimo trabalhar numa cidade turística, viver num lugar que muitos pagam rios de dinheiro para visitar. Além disso, havia ainda a garantia de trabalhar num lugar tranquilo, de pouco movimento, sem grandes confusões…
  Entre as atribuições de Ricardo estava a entrega da correspondência aos juízes. Todos os dias ele saía da expedição, logo no início do expediente, com uma cesta abarrotada de cartas, documentos, pacotes. A função permitiu que ele conhecesse um por um todos os magistrados que trabalhavam ali. Infelizmente, o mesmo não se podia dizer dos juízes em relação a ele. Muitos nem levantavam os olhos da mesa quando ele anunciava a chegada da correspondência. Exceção era o doutor Flávio, sempre simpático.
     O escriturário pensava nisso quando sentiu uma pressão na nuca. Foi empurrado escada abaixo, como se alguém tivesse lhe dado uma rasteira. Caiu, esparramando cartas e documentos da cesta pra todo lado. Levou um minuto até se recompor e notar uma correria de pessoas subindo a escada. Ainda zonzo, levantou-se e percebeu um forte cheiro de fumaça. Olhou para o alto da escada e viu de onde vinha aquilo: da sala do doutor Flávio. 
     - Você tá bem, filho? 
     Ricardo olhou para cima e notou seo Otávio, o segurança, colocando as mãos sobre os ombros dele. Não teve tempo de responder: o velho guarda subiu as escadas, com a mão no coldre do velho 22 que, provavelmente, também explodiria se fosse usado, já que estava ali enfiado há pelo menos vinte anos sem nunca ter sido sacado, muito menos disparado alguma vez.
     Sem forças para subir a escadaria, com o corpo dolorido da queda pelos degraus, Ricardo só conseguiu se sentar no chão e apoiar a cabeça nas mãos, ainda confuso. E o zunido no ouvido, zunido de explosão, de madeira rachando, de vidros estilhaçados. Zunido que não sai de dentro da cabeça, fica ali ecoando como um grito, um apito, um trem descarrilado. Se ao menos o barulho parasse, talvez ele conseguisse se erguer e ver o que aconteceu. O mundo acabou, o teto desabou? O chão sumiu? Na vertigem, Ricardo vomitou copiosamente o café da manhã.
     O ar empesteado. O cheiro venenoso de pólvora -  é pólvora? - talvez não, talvez sim… mas é mais. Tem mais coisa no ar. Mais coisa suja, fedorenta, repugnante. Cadê o ar puro da montanha? expulso violentamente do recinto, com força, rebuliço, barulho. Agora um brigadista agarra o extintor de incêndio e dispara escada acima. Corajoso, o moço. Ricardo espera que ele se lembre como usar aquele troço. Em volta, uma gritaria, vozes confusas comentando, perguntando, exclamando… O ar está sujo, e parte da sujeira é o ruído, parte da sujeira é sonora. Só faz aumentar a confusão generalizada.
     - O que aconteceu, Ricardo? - quem é esse que grita, em pé, na frente do escriturário? Ricardo demora a reconhecer o colega da expedição. 
     - Eu … não sei… - Ricardo não ouve mais nada. Tem a breve noção de que alguém está no orelhão que fica no hall, discando um número freneticamente. O tempo está fragmentado. O tempo está quebrado, não flui segundo a segundo, mas em saltos. Tempo passando em solavancos estroboscópicos. Melhor ir para fora dessa bagunça. Ir para fora do prédio. Para a calçada. O dia está ensolarado. O céu está com aquele azul profundo que só se vê em Campos do Jordão. O ar está frio, ar de alto de montanha. Típica manhã, nada de diferente aqui fora. Lá dentro, um inferno nada comum. 
     Sirenes cortam o ar. Estão longe, se aproximam, mais e mais perto, chegam ao prédio. Ambulância, bombeiros, polícia militar. Homens uniformizados entram correndo. Socorristas levam maletas médicas. Bombeiros com extintores e machados nas mãos. Policiais com os revólveres em punho. A confusão veio para fora também. Viaturas paradas no meio da rua, sobre a calçada, em frente ao fórum. 
     Nenhum destes homens sabe exatamente o que vai encontrar lá dentro. Sabem que foi algo inédito. Uma explosão. Acidente, talvez… talvez algo mais grave. Mais assustador. Prontos pra reagir a um possível agressor. Preparados para socorrer rapidamente os feridos. Esperançosos de não precisar do IML nem do carro funerário. 
     Uma multidão se aproxima. Curiosos, assustados, ansiosos. Do outro lado da avenida Januário Miráglia, no ponto de ônibus do mercado municipal, passageiros assustados observam, comentando entre si o pandemônio que se formou. O trânsito está bloqueado no sentido que leva ao bairro Capivari. Motoristas a caminho do trabalho saem dos carros para ver o que acontece. Dois policiais conversam na calçada enquanto improvisam um cordão de isolamento e tentam afastar os curiosos:
     - Sabe o que houve lá dentro?
     - Parece que foi uma explosão num dos gabinetes. 
     - Explosão? Aqui? É o fim do mundo!
     Ricardo concorda em silêncio. 

3

     Já se passaram duas horas desde a explosão. O juiz Flávio Rogendorff foi levado para a Santa Casa e, de lá, seguiu em estado grave para um hospital com mais recursos, em São Paulo. O prédio do fórum foi evacuado e interditado. Corredores e salas repletos de agentes do esquadrão anti-bombas da polícia militar, revirando tudo à procura de outra eventual bomba largada em algum lugar.
     A sala onde ocorreu o atentado fica no meio do corredor superior, bem em frente à escadaria que liga ao térreo. Pelo lado de fora a porta não permite imaginar o estrago ocorrido ali dentro. Mas do lado interno, a madeira do batente e a maçaneta ficaram em pedaços. A porta ficou chamuscada e cheia de descascados. Uma cena é particularmente sombria: a caneta tinteiro do juiz ficou cravada na porta com a força da detonação.
     A mesa resistiu, mas o tampão de vidro virou um monte de cacos. Papeis e documentos rasgados ou queimados, espalhados por toda parte. 
     Manchados de sangue. 
    Um perito recolhe da mesa o que restou de uma Bíblia de capa dura. Ele cheira o resto de livro, sente o cheiro de pólvora e coloca o objeto num saco plástico. Observa um pouco mais e encontra um pequeno pedaço de fio, usado em aparelhos eletrônicos - e também em espoletas de bombas. Recolhido e ensacado, numerado, rotulado. Evidência. 
     No saguão, lá embaixo, a confusão ainda é grande. Um batalhão de policiais. Entre eles o inspetor Mário Russo, chefe dos investigadores da delegacia de Campos do Jordão. O policial mantém uma expressão tranquila e neutra, enquanto interroga os funcionários do fórum, um a um. 
     Dona Expedita:
     - Num vi nadinha de nada. Só pegou o café e subiu rápido. Deus do céu homi tão bom quem ia fazer um negócio desse com ele?
     Ricardo, o escriturário:
     - Eu senti a explosão quando já estava na escada. Caí e demorei a entender o que tinha acontecido… nossa, aquele pacote podia ter explodido na minha mão. 
     O segurança:
     - Não notei nada de estranho. Sempre as mesmas pessoas. Cidade pequena, a gente conhece todo mundo… não apareceu ninguém diferente. 
     O encarregado da correspondência:
     - As cartas ficam aqui no máximo um dia. Chegam duas vezes ao dia, de manhã e à tarde. Isso quer dizer que, se o pacote foi entregue logo cedo pro juiz, chegou aqui na véspera, à tarde, por volta de cinco horas. É sempre o mesmo carteiro que traz o material do fórum.
     O carteiro:
     - O malote de ontem não tinha nada de diferente. Nada de especial. Mas eu me lembro desse pacote porque é raro entregar esse tipo de correspondência aqui no fórum. É mais comum entregar envelopes e cartas. O pacote era embrulhado com papel ordinário, sem nada de especial. Desses papeis pardos que a gente compra em qualquer papelaria. Lembro que eu fiquei contrariado porque não tinha endereço de remetente. Se a gente não consegue entregar pro destinatário fica sem ter como devolver pra quem mandou, o senhor sabe…
     - Nesse caso acho que o remetente não ia se importar - disse o inspetor Mário Russo, encarregado da investigação, enquanto jogava na boca uma de suas incontáveis pastilhas de menta. 
     O dia continua ensolarado. Os passarinhos cantam, as pessoas, ainda que curiosas e assustadas, andam pela calçada em frente ao fórum, no rumo de suas rotinas e tarefas. 
     Tudo muito comum no dia, no tempo. Isso incomoda Mário Russo, porque ele sabe que o crime em questão não tem nada de comum.
    Ainda dentro do fórum ele encontra o perito e pede as primeiras informações.
     - Nada de especial pra dizer. Tudo muito caseiro, material encontrado em qualquer parte.
     - E o explosivo?
     - Diria que é dinamite, mas só depois de teste pra confirmar.
     - E o jeito de fazer a bomba, te parece coisa ordinária também?
     - Pra dizer a verdade, inspetor, tem alguns livros por aí que ensinam a fazer um livro-bomba. São restritos, mas qualquer pessoa que tenha acesso a eles, saiba ler e tenha coragem pra se arriscar pode tentar fazer uma surpresinha dessas. Sei lá, ainda é cedo pra deduzir alguma coisa. Vou ter que analisar tudo num laboratório… talvez em Taubaté, talvez em São Paulo… te entrego meu relatório em quinze dias.
     - Quinze dias? Nem pensar. Vamos nos falando informalmente todo dia, pra ver o que você vai descobrindo.
     O perito se afastou de cara fechada. É um dos muitos que não gostam nem um pouco dessa característica de Mário Russo, de querer tudo pra ontem. 
     "Qualquer pessoa pode fazer, até parece", pensou Mário enquanto o perito se afastava. O investigador logo percebeu que dali não sairia muita coisa. Então uma bomba é escondida numa inocente bíblia, passa pelo menos dois dias entre a agência dos correios e o fórum sem detonar acidentalmente, e quando explode, destrói uma sala inteira - e o corpo de um homem? Coisa de profissional.
     Mário subiu as escadas e entrou na sala do juiz. Farejou o ar como um perdigueiro. Passou o dedo enluvado numa mancha de fuligem sobre a mesa. Tentou identificar um padrão no meio do caos, entre os destroços. Logo notou que a carga explosiva tinha sido ajustada no pacote de forma a dirigir o maior impacto em direção a quem abrisse a Bíblia. A poltrona do juiz ficou em farrapos. A janela atrás dele se quebrou. Vidro grosso, resistente… não quebraria com uma explosão mais fraca. Os estragos em volta da poltrona, na parede e na janela atrás dela comprovam a perícia de quem preparou aquele mortífero presente. Eram maiores naquele ponto do que no resto da sala. Eficiência. Sangue frio. Coisa de perito. Certamente não foi uma molecagem de alguém que acabou saindo do controle. Quem fez aquilo sabia exatamente o que queria. 
     Ao lado da poltrona, no chão, encontrava-se uma valise , com o tampo completamente destruído. Mário tentou imaginar como aquele padrão de queimaduras se formou na pasta. Deduziu que ela estava entre a Bíblia e o corpo do juiz no momento da explosão. Talvez isso tenha impedido a morte imediata. A pasta recebeu boa parte do primeiro impacto, e era feita de material muito resistente. 
     - Já anotei todos os depoimentos, Mário. E pedi pras testemunhas irem até a delegacia amanhã assinar.
     Mário saiu de sua introspecção com a voz de Júlia. Olhou para a bela escrivã, ainda sem concatenar o que ela tinha acabado de dizer. Isso sempre acontecia quando ele a via de repente… algo como um pequeno choque. 
     - Certo, Júlia. Se quiser pode ir embora. Eu vou dar mais uma olhada por aí. 
     Já era noite alta quando Mário saiu do fórum. A lua estava brilhante, a rua com pouco movimento. O ar estava fresco, puro, relaxante, desconexo daquela cena de um crime tão brutal. 
     Mário olhou para a rua de cima, atrás do fórum. Notou um vulto mirrado, baixo, e a luz bruxuleante de um cigarro. Àquela distância não teve certeza mas achou que viu o reflexo da brasa acesa em duas grossas lentes de óculos. Ficou alguns segundos observando aquela figura, até que o cigarro foi jogado no chão e o vulto desapareceu.  
     

Interstício 1
     Está tudo errado. Está tudo confuso. Um barulho, um frio cortante, depois um calor. Uma viscosidade nas mãos, viscosidade vermelha e quente. Sangue. Meu sangue. Jorrando, espirrando sobre documentos, móveis, papéis, canetas. Tudo revirado, dentro e fora de mim. Roupas rasgadas, carne rasgada, cheiro de pólvora e fumaça. Mas não há dor, não há dor. Apenas frio. Um frio cortante e a cabeça girando. Só inconsciência. Uma inconsciência agitada, truculenta, barulhenta, confusa. Um livro nas minhas mãos, um livro explodiu. Uma Bíblia. Livros não explodem. No mundo real, livros não explodem. Mas nesse mundo para onde fui jogado, os livros explodem sim. Livros matam. Não no mundo de onde fui arrancado; neste mundo para onde fui jogado. Estou aqui sozinho neste mundo onde livros são armas. Sozinho, cercado de gente. Ouço a todos, vejo todos, mas eles não me ouvem. Eu não me ouço. Eu não falo, não gemo, não reclamo. Só espero, com essa febre gelada drenando minha alma. Essa febre e esse calor...     
4

     Sexta-feira, 13 de setembro.


      
     Gato preto, passar embaixo de escada, trevo de quatro folhas. Pé-de-coelho, galinha preta, quebrar espelho, sete anos de azar.
     Para o juiz, o "dia do azar" chegou de véspera.
     O dia vai ser agitado, Mário Russo sabe disso antes de chegar à delegacia. O secretário de estado da segurança pública veio a Campos do Jordão. Está na sala do delegado. Magro, tranquilo e discreto. Olhos abaixados sobre uma pasta. Apenas ouve o que o delegado diz, o relatório completo do que se sabe sobre o atentado. Dali a meia hora vai dar uma coletiva de imprensa no plenário da Câmara de Vereadores - pequeno, mas suficiente para acomodar a legião de jornalistas que se amontoam na porta da delegacia. Não adianta ficarem aqui, abutres, ele não vai dizer nada antes de estar devidamente informado. Não vai falar na delegacia. Só mais tarde, na câmara de vereadores. 
    Mário entra e olha para Júlia, já a postos, trabalhando. Todos os outros casos foram para a gaveta. Dedicação total ao atentado. Júlia organiza as notas dos depoimentos de ontem. Datilografa as declarações de todas as testemunhas. Júlia olha para Mário com um sorriso meio triste, meio desesperado, de quem sabe que tem muito trabalho pela frente. 
     De repente a porta da sala do delegado se abre. O secretário de segurança pública sai e cumprimenta a todos com um sorriso. Vai para o estacionamento, cercado pelos repórteres e fotógrafos. Entra num carro oficial e segue para a Câmara sem nenhuma declaração, seguido por uma procissão de veículos de TVs, rádios, jornais.
     O delegado Afanásio sai da sala com o rosto vermelho de excitação. Gesticula os braços num balanço nervoso e esfrega as mãos ansiosas. Olha para o inspetor Mário Russo e começa a falar, desembestado como um carro sem freio.
     - Ah, chegou. Olá. O homem quer resultados, Mário, e quer rápido. - Júlia, termina logo o relatório de ontem - Ele quer um nome até o fim do dia. Um suspeito pelo menos. Não precisa ser o melhor suspeito do mundo. Alguma coisa pra entregar pra imprensa. Ele ofereceu ajuda da polícia da capital, eu disse que não precisava, que minha equipe dá conta. Ele insistiu. Vem um delegado aí, do recém-criado G.O.E. Ele vai acompanhar tudo, mas a gente que manda, viu, Mário? Ordens você recebe de mim. Fique claro isso. Bom, o tal do G.O.E. deve chegar logo. Mas antes vamos acompanhar a coletiva do secretário. Pegue a viatura. Vamos logo pra Câmara.
     Mário logo percebeu que o aspecto político teria um peso diferenciado na investigação, muito mais inconveniente do que na maioria dos casos que já assumiu. As vaidades estarão exaltadas, os egos inflados e expostos. Lidar com isso, para ele, sempre foi o osso do trabalho policial. Não foi para acariciar suscetibilidades que ele fez a academia com especialização em perícia criminal. Acreditava, naquele tempo de treinamento, num mundo preto e branco. Um mundo em que os fatos se bastavam, e a chave para o sucesso era descobrir o assassino, o ladrão, o criminoso, e levá-lo à justiça; simples assim. Mas não, nada é simples nesse mundo, e o preto e o branco se misturam num indefinido, incerto e maleável cinza. O grande desafio é manter a clareza e a integridade nessa enxurrada de dúvidas que é o trabalho de um oficial de polícia.
     No trajeto para a Câmara o delegado Afanásio manteve um silêncio inquieto. Era como se “gritasse para dentro”. Mário podia ouvir os pensamentos do chefe. 
     Vinte minutos depois todos se acomodavam nas cadeiras da platéia enquanto alguns técnicos testavam o microfone na mesa da presidência da Câmara. O secretário ocupava a cadeira do presidente, tendo ao lado o delegado Afanásio.
     A maior autoridade de segurança do estado falava como se tivesse decorado um texto de uma peça de teatro. Tudo no seu devido lugar, cada raciocínio perfeitamente encaixado, porém sem evitar que o contexto geral transmitisse um aspecto de coisa pré-fabricada e falsa:
     _ Como todos sabem, o eminente senhor juiz de direito Flávio Rogendorf foi vítima de um terrível incidente no Fórum desta comarca, envolvendo uma explosão cuja natureza ainda estamos investigando. O magistrado foi prontamente socorrido e logo transferido para a capital, devido à gravidade dos ferimentos...
     O plenário da Câmara de Vereadores de Campos do Jordão não era grande. Limitava-se a uns trinta lugares no primeiro andar de um estreito prédio, espremido entre duas lojas. O ambiente, lotado por causa da coletiva, ficou quente e desconfortável - apesar do agradável clima que caracteriza a estância, naquela manhã o Sol decidiu se exibir com o máximo de brilho e poder. O dia estava bonito e a temperatura, muito elevada. Mais ainda dentro daquele salão minúsculo. Enquanto ouviam-se os ruídos de gravadores e câmeras sendo acionados, algumas expressões dos jornalistas denunciavam uma certa impaciência com aquele início de entrevista cheio de rodeios e com poucas informações novas.
     A preleção do secretário foi muito mais um discurso do que uma entrevista. Ele deu um panorama resumido do que tinha acontecido na véspera, falou dos esforços movidos até ali no sentido de descobrir o criminoso - ou criminosos, e depois começou uma arenga insuportável sobre o empenho de todos os policiais do estado em esclarecer o atentado, etc, etc, etc. Pelo menos um jornalista cabeceou no vazio, os olhos pesados. 
     Depois do discurso foi aberto o microfone para as perguntas dos jornalistas. 
     - Alguma pista? - quis saber a bela jornalista de Tv na primeira fileira de cadeiras.
     - Temos algumas hipóteses, mas para evitar prejuízos à investigação não é possível adiantar quais por enquanto.
     - Sabemos que o doutor Flávio condenou alguns membros do crime organizado recentemente, secretário. Inclusive gente grande do tráfico de drogas. Pode ser...
     - É prematuro dizer que este atentado tenha ligação com qualquer dos muitos casos que o juiz conduziu em sua carreira - o secretário interrompeu o repórter. 
     Diante do vazio de informações que ficou evidente depois disso, a entrevista coletiva se encerrou em poucos minutos, não sem antes o secretário garantir pela enésima vez que o culpado - ou culpados - seria levado à justiça. Era um compromisso inamovível, tanto mais que o próprio excelentíssimo senhor governador do estado é um policial de carreira também... etc... e etc. 
     Só então, quando todos se levantaram para sair da sala, o delegado Afanásio se deu conta: Mário não estava em lugar nenhum. 
     - É muito desaforo. O chefe dos meus investigadores simplesmente não se deu ao trabalho de acompanhar a entrevista. Vou querer saber em detalhes onde ele se meteu, quando o achar - pensou o velho policial.
     

     O chefe dos investigadores se meteu na sala destruída do juiz Flávio Rogendorff. 
     Quando chegou ao fórum, Mário reparou num homem de óculos redondos, paletó surrado, caderneta e caneta Bic nas mãos. Um repórter, sem dúvida. Mas aquele não era um anônimo, Mário o reconheceu imediatamente. Tratava-se de um dos maiores repórteres policiais do país, contratado do Estadão. 
     - Senhor Mário. - cumprimentou o jornalista assim que o inspetor se aproximou da porta de entrada do fórum.
     - Luis Quevedo, repórter policial. Não sei se fico surpreso ou lisonjeado pelo fato do senhor me conhecer.
     - Não seja modesto, inspetor. Depois da prisão do Kerouac o seu nome entrou pra agenda de qualquer jornalista policial que se preza. 
     Mário se lembrava bem do caso, de quando o traficante carioca Cláudio Rezende, mais conhecido como Kerouac, intimidado pela polícia e sentindo o cerco se fechar em torno dele, resolveu dar um tempo em Campos do Jordão e acabou cruzando o caminho do inspetor. Mário quase morreu naquele dia. Mas levou a melhor. E o traficante, depois de preso, não durou muito tempo: foi executado por bandidos rivais durante uma rebelião no presídio onde cumpria pena.
     - Não foi pra coletiva? - perguntou o policial.
     - Nem o senhor? - retrucou o jornalista.
     Meio constrangido, Mário não respondeu. Apenas continuou seu caminho rumo à sala do juiz.
     - É fora de questão o senhor deixar eu ir junto? - perguntou o repórter, como que adivinhando que o inspetor pretendia fazer mais uma varredura no local do crime.
     Mário se limitou a deixar escapar um sorriso irônico e seguiu adiante. 
     A verdade é que o investigador não sabia o que esperar daquela visita. Tudo já tinha sido revirado pelos peritos. Ele mesmo esteve ali há poucas horas e não tinha notado quase nada que fosse revelador sobre o autor do atentado. Mas era um costume dele sempre voltar ao local do crime com a cabeça fria, depois de passadas algumas horas... Sem a pressão dos primeiros momentos, as ideias ficavam mais claras, os sentidos mais despertos, a atenção aos detalhes mais acurada. Em muitas oportunidades aquilo se demonstrou uma perda de tempo. Mas em alguns casos valiosos, aquele hábito tinha sido a diferença entre o sucesso e o fracasso da investigação. Além do mais, se a questão era perder tempo, Mário preferia perdê-lo ali, onde o cheiro de explosivo e a desordem causada pela explosão davam a ele a sensação de proximidade com o criminoso - antes ali, pensava, do que numa entrevista coletiva inútil que não acrescentaria nada ao trabalho policial.
     O inspetor circulou novamente pela sala em destroços. Relembrava mentalmente o perfil da vítima enquanto caminhava, esmagando escombros debaixo dos sapatos: juiz há muitos anos na Vara Criminal em São Paulo, recém-chegado a Campos do Jordão, uma bela coleção de condenações de criminosos, principalmente traficantes, uma esposa, uma filha, nenhum indício de vida paralela ou romance clandestino, nenhum fato conhecido que o desabone… Apreciador de bons vinhos e queijos, um pouco fora do peso, sedentário como a maioria dos juízes… Estimado por colegas, odiado por criminosos… a lista de suspeitos seria enorme, sem dúvida. Observou os amontoados de documentos espalhados pelo chão, pela mesa, sobre a poltrona do juiz. Reparou mais uma vez no padrão de marcas deixado na parede atrás da poltrona. Tudo como ele tinha deixado na véspera. A única diferença era a faixa de isolamento colocada na porta.
     Dessa vez Mário aproveitou para abrir as gavetas da mesa. Eram quatro, duas de cada lado da poltrona. As da esquerda estavam repletas de pastas e documentos. A da direita na parte de cima guardava uma arma. Uma pistola 9 mm. Será que o doutor Flávio considerava a possibilidade de precisar dela ali, para se defender? Se sim, a explosão provava que ele não era paranóico. Mário verificou o pente. Estava carregado. 
    A gaveta de baixo, do lado direito, tinha apenas um bloco de papel e uma caneta. Mário ia fechá-la quando notou uma saliência no fundo, perto da lateral da gaveta. O inspetor tirou as folhas e a caneta e forçou a saliência com um clipe que encontrou na mesa. A prancha era um fundo falso. Ela se soltou e deslizou para dentro da mesa revelando um compartimento escondido. Nele havia um pequeno caderno, pouco mais que uma caderneta, com encadernação de couro, preso por um fecho de metal. Mário tentou violar o cadeado usando apenas o clipe, sem sucesso. Procurou um pouco no meio daquela confusão, até encontrar um abridor de cartas no chão. Tentou novamente e, não sem esforço, finalmente conseguiu romper o minúsculo cadeado. Mário não conseguiu evitar pensar que o diário de sua filha ofereceria a mesma resistência, se ele um dia tivesse se rendido à curiosidade sobre o que ela tanto anotava naquela agenda enfeitada com flores e passarinhos. Mas o tempo para aquele tipo de indiscrição já tinha passado, hoje Natália é uma moça, dona do próprio nariz. 
    O rápido devaneio familiar desapareceu com o som do cadeado se rompendo. Mário abriu o caderno e inspecionou algumas páginas - parecia uma agenda, com datas, nomes e números que poderiam ser de contas bancárias, senhas, ou mesmo telefones. Alguns nomes ali eram bem conhecidos, antigos réus em processos presididos pelo juiz. De outros, Mário nunca tinha ouvido falar. Algumas anotações tinham um "x" com tinta vermelha na frente. 
     Não dava para deduzir para que servia aquele caderno. Mas qualquer documento guardado com tanto cuidado, num fundo falso de uma mesa pessoal, merecia atenção. 
     Mário colocou o caderno no bolso interno do paletó, deu uma última olhada em redor e saiu da sala. 

      
5

     - Encontrou alguma coisa, inspetor?
     Luiz Quevedo continuava de prontidão na frente do fórum.
     Mário não se surpreendeu com isso.
     - Nada sobre o que possa falar agora, jornalista.
     - De qualquer forma a resposta pra este crime não vai aparecer aqui em Campos do Jordão, inspetor.
     - O que quer dizer?
     - Ora, o juiz estava aqui há pouco tempo; a maior parte da carreira dele foi feita na capital. Foi em São Paulo que o juiz Flávio pegou os casos mais escabrosos, condenou os bandidos mais violentos. Se o senhor fizer uma pesquisa vai ver que esta transferência para cá foi quase como umas férias... ou um castigo. Tipo colocar um sujeito na geladeira. Talvez ele tivesse arranhado alguns interesses na capital, talvez simplesmente precisasse se afastar daquela violência toda, para o bem dele próprio. 
     - Você fez sua lição de casa, não fez? - perguntou o detetive.
     - Fiz minhas pesquisas... confirmou Quevedo. - Por favor, fique com o meu cartão. Se tiver algo que queira compartilhar, ou simplesmente trocar umas ideias... vamos lá inspetor, ficar com o cartão não te obriga a nada, não está vendendo a alma pro diabo.
     - Será que não mesmo? - Mário relutou um pouco mas acabou pegando o cartão. Colocou no bolso interno, junto do caderno que tinha acabado de tirar da mesa do juiz.
     Mal chegou à delegacia, o inspetor ouviu a voz estridente do delegado:
     - Na minha sala, Mário.
     O tom não era nada amigável.
     Mário jogou um olhar de canto de olho para Júlia, que olhou de volta com uma expressão engraçada: entortou um pouco a boca e arregalou os olhos, como quem prevê um acidente inevitável. Mário sorriu e venceu em poucos passos a distância que o separava da sala do delegado. 
     - Você tá louco né Mário? Eu já estou acostumado com o seu jeito de fazer as coisas, já sei que você vai muito pela sua cabeça, não gosta de protocolos nem de normas... Mas pelo amor de Deus, o secretário Mariz tava aqui! E você simplesmente desaparece enquanto o homem atende a imprensa? Não dava pra esperar até ele ir embora?
     - Ele já foi? - Mário perguntou, na verdade, como quem não fazia a menor questão de saber. E deixou isso evidente para o superior. Esse comportamento estava entre as facetas do policial que mais irritavam Afanásio, desde que os dois começaram a trabalhar juntos, muitos anos antes. 
     - Já, já foi, Mário - explodiu Afanásio - ... Não interessa! Onde você estava?
     - Investigando o caso.
     - Sei... não adianta mais discutir agora. O delegado do G.O.E. vai chegar hoje à tarde. Você acha que dá pra estar aqui quando ele chegar? Dá pra receber o homem?
     Mário fez que sim com a cabeça. 
     - Tá dispensado.
     Mário foi até a mesa, no canto da delegacia. Tirou o paletó e o colocou no cabide. Pegou o caderno do juiz no bolso, sentou-se e começou a examinar as anotações.
     Os números mantinham um padrão em alguns casos: quatro algarismos , um hífen, mais quatro algarismos, uma barra, outros quatro algarismos. Lembrava mesmo alguma conta bancária, embora nada provasse se tratar disso. Em outros casos a série era claramente de números de telefone: 362-4587; 2488-7231; por fim, um terceiro padrão de anotações combinava números e letras. Senhas? Talvez. 
     Entretido com aqueles registros Mário teve um sobressalto ao ouvir uma pasta sendo jogada sobre sua mesa. Olhou para o material, depois ergueu os olhos para o belo rosto de Júlia, parada à sua frente. Ela tinha os cabelos presos num rabo de cavalo, como de costume. O perfume estava ali também, Mário não conseguia ignorar. O olhar da escrivã tinha um tom inquiridor. Um leve sorriso ornamentava os belos lábios.
     - Estranho - disse ela.
     - O quê? - perguntou sinceramente o inspetor.
     - Em todos esses anos que trabalhamos juntos, sempre que aparece um caso importante, a primeira coisa que você pede são os depoimentos dos envolvidos. Estão aí, nesta pasta que acabei de colocar sobre sua mesa. Esta pasta que, desta vez, você não pediu. 
     Mário não conseguiu disfarçar um rubor de meliante desmascarado. 
     - Eu já ia pedir - respondeu, meio sem jeito.
     - O que é mais interessante pra esse seu cérebro de workaholic do que o inquérito que eu organizei? - insistiu Júlia, apontando para o caderno nas mãos do policial. 
     _ Isso? Não é nada - Mário sentia o rubor aumentando - é só um caderno...
     Estava claro que a inteligente escrivã não ia desistir. 
     - Caderno? O que tem nele?
     Mário se deu por vencido. Não queria revelar sua descoberta ao delegado, porque tinha certeza que o caderno ia parar nas mãos do G.O.E. antes que ele pudesse chegar a qualquer conclusão. Mas se tinha alguém naquela delegacia em quem ele podia confiar, esse alguém era Júlia. 
     - Escute, não comente com ninguém. Achei este caderno hoje mais cedo, na mesa do doutor Flávio, no fórum. Estava num fundo falso numa das gavetas. Fiquei curioso. O que era tão importante pra ser guardado daquela forma, num esconderijo? De certa forma isso indica que o juiz dá muito valor a esse caderno. Não quis nem colocar num cofre, talvez ciente de que cofres são os primeiros alvos de ladrões em caso de furto ou roubo. Mas um fundo falso… pouca gente pensaria em procurar esse tipo de coisa na mesa de um magistrado, não acha? Enfim, isso me deixou curioso. E algumas anotações também. Nomes de réus em processos que o juiz conduziu. E, na frente dos nomes, números misteriosos. Alguns têm "x" em vermelho, também, veja.
     Júlia se abaixou para observar as anotações. O cheiro dela ficou mais vivo, marcante. Mário nunca conseguiu ser indiferente a isso. Ficou observando o pescoço da colega, a nuca, os cabelos escapando do rabo de cavalo...
     - Interessante. Muito interessante - disse a escrivã. 
     - Não conte a ninguém. Quero investigar um pouco esses dados, sem ninguém pressionando, antes de revelar minha descoberta.
     - Você sabe que pode contar comigo - respondeu a moça. E estendeu uma pasta de papelão para o inspetor. - O relatório do IML - explicou.
      Mário abriu a pasta. Um desenho representando a figura humana indicava os ferimentos causados pelo explosivo. Anelar e mínimo da mão esquerda arrancados. Abdomen rompido logo abaixo do esterno. Exposição de intestinos. Queimaduras generalizadas no rosto, peito, braços e no que restou do abdomen do juiz. Tudo marcado com caneta vermelha sobre a figura de papel. Um registro quase inocente de um crime audacioso e violento.
     O inspetor leu o relatório dos ferimentos, anotados com competência pelo médico-perito. Sabia que sua memória peculiar registraria cada detalhe daquele horror.
     - Ele ficou furioso, né ? - Júlia interrompeu os pensamentos do inspetor.
     - Afanásio? Não é a primeira vez. 
     - Acho que o que o irritou mais foi o fato de ter que voltar andando pra delegacia. São 10 minutos de caminhada, mas para ele devem ter parecido horas inteiras! - Júlia riu mostrando os dentes perfeitos. 
     Mário fechou a pasta, pegou o paletó e se dirigiu para a porta.
     -Onde você vai?
     - Dar uma volta, pensar um pouco. 
     Na verdade Mário queria sair da delegacia e evitar o encontro com o delegado do G.O.E. quando ele chegasse. Sabia que o policial de São Paulo ia querer analisar a cena do crime - coisa que o inspetor já tinha feito duas vezes. Não estava disposto a servir de babá para ninguém. 
     Mário pegou a viatura, foi até o fórum e se informou do endereço residencial do juiz. Seguiu pela avenida Januário Miráglia, uma via larga, arborizada, que atravessa a cidade praticamente de ponta a ponta em seu trecho mais urbanizado. Seguiu rumo ao Capivari. Logo depois do Jaguaribe, virou à direita numa subida íngreme. Percorreu algumas ruas sinuosas e logo chegou ao Alto de Capivari, uma das partes mais nobres do bairro mais chique da cidade. Numa pequena rua, estreita, bem asfaltada, cercada de cedros, ele encontrou o endereço que procurava. A casa não ficava visível, apenas um enorme muro de pedras cinzentas, com um portão coberto por um pequeno telhado. 
     Mário não sabia se haveria alguém em casa. Talvez todos tivessem ido para São Paulo, acompanhar o juiz que lutava pra não morrer no hospital. Mas valia a pena tentar dar uma olhada.
     Mário apertou o interfone. 
     Nada.
     Tentou de novo, um pouco mais insistente. Ouviu o latido de um cachorro do outro lado do portão. Furioso e forte. Um rottweiler ou um pitbull, pensou o investigador. 
     Mário se preparava para ir embora quando ouviu um barulho no portão, como um pedaço de madeira deslizando. Uma pequena janela se abriu. Uma mulher perguntou:
     - Quem é?
     - Bom dia - respondeu Mário - Sou da polícia. Posso falar com a senhora?
     - Polícia? Posso ver o distintivo?
     Mário mostrou a carteira pela janelinha aberta.
     A janela se fechou. Seguiu-se um segundo antes do barulho de chaves tilintando e trincos sendo removidos. 
     Mário viu uma mulher vestida com uniforme de empregada, meio inclinada, fazendo um grande esforço para segurar o enforcador de um monstruoso rottweiler. O animal ficou ainda mais furioso ao ver o policial. Mário se manteve calmo, mas seus dedos acariciaram o cabo do revólver que trazia no coldre, junto ao peito. 
     - Pois não - gritou a mulher, para superar o ruído dos latidos.
     - Estou investigando o que aconteceu com o juiz Flávio Rogendorff - Mário gritou de volta. 
     - Quieto, Boris! - a empregada repreendeu o animal e deu um forte puxão no enforcador. De nada adiantou.
     - Será que a senhorita pode prender o Boris pra gente conversar num tom de gente normal? - o pedido de Mário foi acompanhado de um sorriso tranquilizador.
     A serviçal sentiu-se mais à vontade e concordou. Convidou Mário a acompanhá-la até o canil, enquanto conduzia com dificuldade o cão para sua casinha. 
     No caminho Mário reparou no tamanho da propriedade. Um gigantesco jardim de grama bem aparada, alguns ciprestes, uma fonte mais para o alto de um leve aclive, que terminava na frente de uma suntuosa mansão. 
     Finalmente livres dos latidos infernais da fera, Mário e a empregada subiram até a porta da frente. 
     - Em que posso ajudar? Não tem ninguém na casa, só eu e o caseiro. 
     - Ah, eu imaginei que a família do juiz estivesse com ele em São Paulo. Que coisa terrível - comentou Mário, tentando criar intimidade.
     - O senhor é polícia mesmo? - perguntou a garota, desconfiada.
     Mário riu e confirmou.
     - Quer ver meu distintivo de novo?
     A empregada também riu, desarmada pela simpatia do inspetor, e fez que não.
     - Está quente esses dias... a senhorita se importa se eu entrar um pouco? Estou desde cedo trabalhando e não tive tempo nem de parar um pouquinho.
     A moça hesitou um momento, mas acabou achando que não havia nenhum mal nisso. 
     Assim que se viu no hall, o olhar de Mário percorreu rapidamente todos os cômodos, portas e corredores próximos. Logo identificou uma porta grande, de correr, de duas folhas de madeira maciça. Imaginou que atrás daquela porta seria o escritório do juiz. 
     - Moça, não querendo abusar... Eu queria falar com algum parente do doutor Flávio, mas parece que perdi mesmo a viagem. A senhora sabe se alguém volta pra cá ainda de manhã? Não volta? Ah, que pena, vou ter que voltar outro dia. Moça, como eu disse, não querendo abusar... seria demais pedir pra senhorita um cafezinho? Dormi mal à noite, estou cansado. Se não for incômodo. Ah, muito obrigado, a senhorita é muito gentil. Vai passar um fresquinho agora? Quanta gentileza, obrigado.
     Assim que a empregada desapareceu na direção da cozinha, Mário saltou do sofá onde tinha se instalado e correu para a grande porta maciça. Não estava trancada. Ele afastou uma das folhas, entrou e a fechou atrás dele. Olhou rapidamente para o cômodo. Grandes prateleiras repletas de livros grossos, com lombadas de couro e letras douradas, se espalhavam pelas paredes. Perto de uma ampla janela, que provia todo o ambiente de luz natural, havia uma grande mesa de tampo de vidro e uma poltrona, parecida com a que Mário viu, rasgada e ensanguentada, no fórum. Ele foi até a mesa, olhou rapidamente alguns papeis sobre ela, e teve uma ideia.
     - Será que o mesmo truque funciona duas vezes? - pensou. 
     Abriu a gaveta de baixo do lado direito da mesa. Afastou alguns papeis e notou uma saliência idêntica à da mesa do fórum. Mário pegou um clipe sobre a mesa e forçou a saliência, que deslizou imediatamente, revelando um fundo falso. Um sorriso irônico marcou seu rosto enquanto ele verificava o que havia ali dentro. 
     Extratos bancários com depósitos registrados em pelo menos três bancos estrangeiros; e uma pequena caderneta de capa vermelha. Mário abriu a caderneta e notou padrões de números e de letras parecidos com os do caderno que encontrou no Forum. Mas, em vez de nomes de réus, havia nomes de bancos anotados na frente deles. Ilhas Cayman, Zurique e Berna, na Suíça, Luxemburgo.
     Mário pegou os extratos e a caderneta, enfiou nos bolsos e voltou para a sala. A empregada voltou alguns segundos depois com o café. Mário virou uma xícara goela abaixo, queimando a língua. Levantou-se, agradeceu e foi embora. 
     Na viatura, pensamentos sombrios tomaram forma. Na procura por um terrorista e assassino, talvez o inspetor acabasse encontrando um corrupto e ladrão; - talvez a vítima não fosse tão inocente quanto se poderia supor.
     Ele girou a chave no contato e saiu dali, já pensando nos próximos passos a tomar.

Interstício II

     Não, não há dor. Não há dor, apenas frio. Frio e dormência. Como se o sangue tivesse escapado de meus músculos, deixado de irrigar meus membros, provocando cãibras incômodas... Há ruídos. Bandejas metálicas com aparelhos médicos. Vozes entrecortadas, vislumbres de uniformes brancos... no demais, semiconsciência. Dormência nas mãos, que pinicam como se eu tivesse dormido sobre elas, expulsando o sangue das extremidades do meu corpo. Paralisia, frio, dormência. Confusão mental, desvio de tempo e de lugar, viagem no tempo.
     Tudo começou quando eu nasci.
     Não, tudo começou no começo do mundo, no começo do universo, muito antes do meu nascimento. Tudo começou há bilhões de anos, com uma explosão. Uma explosão muito maior que essa, que me prende a esta cama de hospital. Começou há bilhões de anos, uma explosão que deu origem às coisas no meio do Caos. Uma explosão que fez os corpos celestes se expandirem até atingirem os bilhões de anos-luz de comprimento que o Universo observável tem hoje. Uma explosão em andamento, infinita, provocando um eterno movimento, uma interminável expansão. 
     Em algum momento no meio dessa mixórdia de números gigantescos, de datas perdidas e distâncias impossíveis de percorrer, eu nasci. Minha história é uma pequena linha numa história muito maior, mais envolvente... mais antiga. É menos que uma linha na história do Universo. Menos que uma palavra... minha vida não passa de um rabisco, um ponto, um pedaço minúsculo de uma letra esquecida no livro da Criação.
     Eu nasci Olav Yaakov Rosarot, na Alemanha às vésperas de um período que seria de grande atribulação para o meu povo. 
     Naquele ano de 1932 ainda houve espaço para alegria pelo meu nascimento. Minha casa celebrou. Meu pai era engenheiro. Minha mãe, professora. Meus pais ficaram satisfeitos por eu ter nascido menino, forte e saudável. Meus avós abençoaram a minha vida, fizeram as orações. Houve o Brit Milá conforme a tradição, fui circuncidado no oitavo dia de vida por um mohel experiente. Meu pai dizia que eu não chorei, não protestei, não dei um gemido sequer quando o  mohel cortou meu prepúcio de acordo com os rituais ancestrais.  Para todos, aquilo foi um sinal de virilidade e força. Um sinal de predestinação. 
     Depois da circuncisão houve festa, meu pai me contou. Houve celebração, alegria, risos, até tarde da noite. 
     Eu era o primogênito. 
     No trigésimo primeiro dia depois do meu nascimento,  meu pai pagou o resgate das cinco moedas ao cohen, tudo conforme os antigos costumes. 
     Eu crescia rápido e forte. Não parecia haver nada que ameaçasse a felicidade de nossa família naqueles meus primeiros dias de vida. Estavam enganados quanto a isso, logo ficou claro.
     Minha infância deixou em mim lembranças indeléveis desde muito cedo. Lembro-me de detalhes de quando era ainda muito pequeno - não fui agraciado com a bénção do esquecimento. Não são detalhes agradáveis. Talvez por isso não consiga apagá-los de minha mente. Não me lembro de brincadeiras, não me lembro de jogos, de carinhos... Lembro-me apenas do frio. E da fome.
     Meus pais tiveram outro filho. Uma menina, muito frágil, que nasceu prematura e morreu poucos dias depois do parto. Acho que foi melhor para ela. Não teve que passar pelo que nós passamos. Lembro de minha mãe chorando, com os cotovelos cravados na mesa da cozinha e as mãos tampando o rosto, entre convulsões de lágrimas. E de meu pai, em pé na frente da mesa, com um cigarro entre os dedos, soltando fumaça e olhando para o vazio. 
     A vida não estava fácil para nós. Apesar do conhecimento do meu pai, apesar do talento da minha mãe, isso não significava garantia de trabalho; nosso sangue pesava mais do que qualquer qualificação. Era difícil sobreviver. 
     Lembro que eu tinha um pequeno caminhão de madeira, faltando uma das rodas. Meu único brinquedo. Esse caminhãozinho ficou para trás quando tivemos que sair de casa às pressas, numa noite em que homens de uniforme bateram na nossa porta.   Meu pai foi levado por dois soldados. Lembro-me do medo nos olhos dele. Lembro-me que ele olhou para nós, com olhos vazios, como quem não entendia o que estava acontecendo. Eu e minha mãe fomos levados por outros soldados; entramos num caminhão cheio de outras mulheres e crianças. aquela noite meu pai foi conduzido a uma fábrica subterrânea nos arredores de Berlim e colocado para trabalhar num estranho projeto, de uma nova arma. Um projeto que acabou causando a morte de milhares de pessoas. Um foguete batizado com o singelo nome de Vergeltungswaffe 2 - a arma da vingança - ou simplesmente V-2, como ficou tristemente conhecido. Meu pai era engenheiro aeronáutico de primeira linha, e esse conhecimento técnico o salvou dos campos de concentração. Seu destino, porém, não foi muito melhor. 
     Eu e minha mãe fomos levados para o mesmo campo de concentração em Buchenwald, perto de Weimar, no leste. São de lá as lembranças mais marcantes de minha infância. Fui parar em alojamentos coletivos, com centenas de outras crianças. Não via minha mãe mais do que dez minutos por dia, no intervalo para a única refeição que fazíamos - um caldo de textura rala e gosto repugnante. Até hoje sinto esse gosto em minha boca quando lembro daqueles dias. Recordo-me também de minha mãe se tornando cada vez mais magra, diante dos meus olhos. Suas faces afundavam dia a dia; suas mãos eram ossos revestidos de pele; Seus ombros pareciam estacas apontando para o alto.
     Meus avós paternos e maternos, fiquei sabendo muito mais tarde, foram direto para um campo de concentração.  Eram velhos demais para trabalhar. Na triagem médica, receberam a classificação negativa - dispensáveis. Não ouso imaginar o que pensaram quando o gás Zyklon B começou a cair sobre suas cabeças, dentro das câmaras herméticas, saindo dos chuveiros. Espero que tenha sido rápido. Mas sei, pelo que pesquisei anos mais tarde, que quem morreu ali sofreu uma agonia terrível. 
     O gás matava primeiro os mais altos. Só depois alcançava as crianças, que eram mais baixas e demoravam a sentir os efeitos do veneno expelido pelos "chuveiros". Essas crianças assistiam atônitas a morte dolorosa dos pais e entes queridos, entre convulsões e espasmos, asfixiados. Depois, passavam pelo mesmo destino. Sufocavam num mar de sofrimento, lutando pelo ar que não mais existia. Desesperador.
     Mas eu só soube dessa tragédia muito tempo depois. Naqueles dias, nos campos, a informação era escassa. E tínhamos muito em que pensar para nos lembrarmos de parentes desaparecidos. 
     Muitos de meus companheiros de alojamento simplesmente desapareciam. Numa noite, íamos para a cama e contávamos histórias sobre o que tínhamos visto durante o dia. Na noite seguinte, a cama ao lado ficava vazia. Nunca soube o que aconteceu com aquelas crianças. Imagino que algumas tenham sido transferidas para outros campos... outras talvez tenham simplesmente sido transferidas para o alojamento ao lado... ou coisa muito, muito pior. 
     Os dias eram longos, intermináveis em Buchenwald. Mas a rotina era quebrada algumas vezes, de forma assustadora e violenta. O comandante do campo convocava a todos - adultos e crianças - para o pátio central. Então falava algumas coisas sobre algo que não tinha ficado direito, ou alguma informação que ele queria confirmar mas não estava conseguindo. E ameaçava. Se não houvesse uma solução ou uma resposta imediata, ele teria que ser duro. 
     Invariavelmente, alguém era enforcado diante de nossos olhos nessas ocasiões. Ou porque era "culpado" de algo, ou simplesmente para servir de exemplo.
    Por causa disso, a rotina cansativa e degradante começou a ser considerada uma bênção, já que quando ela era quebrada, alguém sempre acabava morrendo. 

     Passamos dois anos em Buchenwald e depois fomos transferidos para Mittelbau-Dora. A situação não melhorou em nada. Pelo contrário. O campo recém aberto recebeu um líder que queria mostrar serviço. Um oficial nazista que tinha lá suas ambições, e pretendia fazer uma grande escada de corpos de judeus mortos para alcançar suas mais altas metas junto ao Reich. 
     Um dia, não encontrei minha mãe no horário do rancho. Fui dormir preocupado, chorando baixinho para nenhum vigia me ouvir - seria duramente castigado se algum soldado ouvisse meus lamentos.
     No dia seguinte contei cada segundo para a hora do almoço. Corri como um louco para o barracão onde o caldo era servido. Lembro-me de um soldado comentar, entre risos, que eu devia ser louco por estar tão ansioso para provar aquela "iguaria" que nos serviam. 
     Entrei no galpão olhando para todos os lados, vasculhando cada centímetro à procura de minha mãe. Sem sucesso.
     O mesmo acontece no dia seguinte, e no outro, e no outro... Até que um dia eu simplesmente parei de procurar. 
     Nunca soube o que aconteceu a ela.
     Durante o dia, esgotávamos nossas forças em todo tipo de trabalho degradante. Durante a noite, demorávamos a conciliar o sono, cortados pelo frio, sem nada além de um sujo, piniquento e fedido cobertor para nos cobrir. 
     Até que um dia notei uma movimentação diferente no campo. Eu e outros garotos de minha idade fomos colocados num caminhão e levados até Mittelwerk. 
     O caminhão se dirigiu para a periferia da cidade e entrou por um portão de aço numa casamata de cimento. Senti que descíamos rapidamente. 
     O caminhão parou. Desembarcamos e fomos levados a uma linha de montagem. Um instrutor nos orientou sobre nossas novas funções a partir daquele dia. Já tínhamos idade suficiente para deixar de limpar as latrinas ou carregar pedras no campo; faríamos outro serviço: ajudaríamos na fabricação dos foguetes V-2. 
     Contra todas as possibilidades, encontrei meu pai naquela fábrica. Ele era encarregado de supervisionar uma das linhas de produção. Corri para ele quando o encontrei, mas tive essa ousadia punida com uma forte coronhada de fuzil nas costas. Meu pai tentou me defender e foi brutalmente espancado. Depois disso, qualquer nova tentativa de aproximação ficou desencorajada. Limitávamo-nos a nos olhar de longe, trocando sinais de vez em quando. 
     Assim foi minha nova rotina: eu era levado do campo para a fábrica, trabalhava doze a treze horas sem descanso, e depois era trazido de volta para o campo. 
     Um dia ouvi uma gritaria vindo de um dos grupos de produção da fábrica. Olhei naquela direção e vi meu pai sendo arrastado por um grupo de soldados. Alguém comentou que ele tinha sido pego tentando sabotar a linha de montagem. Seria enforcado em seguida. 
     Foi a última vez que vi meu pai. 
     Não consegui transformar a tristeza em lágrimas. Elas secaram em meu peito. Transformaram-se num frio profundo, doloroso, como se eu vivesse mergulhado num rio de águas geladas. 
     
(...)

     O frio, o frio... o gelo que me mantém paralisado... o gelo que me prende a este leito de hospital e me impede de gritar. Sinto a presença de uma enfermeira, mas não consigo ver seu rosto, só uma luminosidade... uma luz branca e fria cegando minha consciência. Primeiro foi o calor, a explosão... agora o frio que não me abandona. 

6


     Campos do Jordão é um convite para o devaneio. Suas colinas verdejantes, cobertas de Araucárias, suas avenidas pontuadas de hortênsias e plátanos. A natureza faz parte da vida da cidade, como um morador onipresente. Para onde se olha, encontra-se algo bonito ou selvagem, digno da atenção dos poetas. No centro de Abernéssia, os motores roncando não conseguem quebrar o encanto.  A Praça da Bandeira se torna reduto para aves cantantes que desafiam a sonoridade urbana, e por vezes se destacam sobre os ruídos da rotina. A história desse lugar mágico, a 1.600 metros de altitude, se divide basicamente em dois períodos, como define o historiador Pedro Paulo Filho: o clico da doença, em que a Serra começava a ser ocupada por doentes de Tuberculose em busca dos benefícios que o ar gelado e puro da montanha forneciam; e o ciclo do turismo, quando as belezas naturais se juntaram à excelência do clima para conquistar visitantes de todo o Brasil e até do exterior. As características únicas para uma cidade paulista renderam ao município o singelo apelido de “Suíça Brasileira”. 
     Mário ficou rodando pela cidade, sem destino certo, um pouco encantado pela beleza do lugar onde nasceu. Isso sempre acontecia quando ele percorria as ruas da estância, mesmo nos momentos mais tensos. Como aquele, em que uma dura missão se descortinava diante dele. Numa situação normal apreciaria muito mais aquele passeio pelas ruas margeadas por Araucárias e Plátanos, paralela à estrada de ferro do romântico bondinho que passava vez ou outra, apinhado de turistas. Mas naquele dia qualquer prazer ao contemplar a beleza de Campos do Jordão estava reduzido, e a paisagem desempenhava o papel de catalisador de ideias. Aquele cenário ajudava a juntar peças, pensar, concentrar-se. 
     Parou num orelhão e ligou para casa. Estava tudo bem, Su lhe garantiu. Queria saber a que horas ele voltava pra casa. Ele não sabia. Esperava que logo. 
     Pelos seus cálculos, àquela hora o encarregado do G.O.E. já estaria na delegacia. E o delegado já estaria com aquela pequena cãibra na pálpebra que o acometia sempre que se sentia contrariado. Ele teria perguntado por Mário mais de uma vez, sem conseguir uma resposta adequada. 
     Nada disso preocupava. O importante era analisar aqueles dois grupos de documentos: o caderno encontrado no fórum e a caderneta com os extratos bancários na casa do juiz. Os dois juntos, com suas informações combinadas, tinham alguma resposta a dar. E não era coisa boa, Mário intuía. 
     Seguiu para a biblioteca municipal. Lugar tranquilo, numa rua secundária do centro da cidade, com espaço para ele analisar os papéis sem ser incomodado. Parou a viatura a certa distância e caminhou até a casa. Era um prédio interessante. A entrada principal ficava numa parte elevada. Abaixo havia outras salas, no fim de uma curta escada com degraus de madeira. Apesar de ter dois andares, a biblioteca não se parecia com um sobrado por causa do desnível do terreno, que escondia a parte inferior do prédio. As salas baixas só eram descobertas depois de entrar na casa - ou se o visitante se aproximasse pelo outro lado da rua, tendo depois que enfrentar um leve aclive para alcançar a porta principal, perto do pequeno estacionamento coberto de pedriscos. 
     Mário entrou, assinou o livro de visitantes e foi para o fundo do prédio, onde algumas mesas eram iluminadas por janelas abertas, com as cortinas recolhidas. Atravessando o amplo salão, com estantes repletas de livros, notou grupos de estudantes, alguns com uniformes do SESI, outros do TCC, todos aparentando estar no ensino fundamental, não mais do que sétima série, conversando reservadamente e contendo risinhos conspiratórios. Esses alunos tinham sobre as mesas à sua frente grandes livros abertos, cadernos, folhas de papel almaço, canetas esferográficas nas cores azul e vermelha; alguns tinham canetinhas hidrocor também. 
     Mário recordou os tempos de escola e perguntou-se por que cargas d'água foi obrigado a copiar tantas páginas de livros, de forma tão mecânica que não seria capaz de repetir o que anotou, nem no minuto seguinte. Seria muito mais prático se os professores pedissem a leitura dos textos e a apresentação de um comentário, ou um relatório. Mas talvez isso desse muito trabalho para ser corrigido, ao passo que o plágio era bem simples: quanto mais páginas copiadas, mais pontos positivos no boletim. A eficácia do aprendizado, porém, já era outra questão.
     Mário escolheu uma mesinha afastada, colocou o caderno, os extratos e a caderneta sobre ela. Logo os risinhos dos alunos e os gritos alegres das crianças do lado de fora da biblioteca desapareceram a seus ouvidos. Concentrado, parou de ouvir tudo o que acontecia à sua volta.
     Cinco horas se passaram rapidamente, como se tivessem quebrado a regra do espaço-tempo e se transformado magicamente em poucos minutos. De volta à viatura, com os documentos do juiz nas mãos, Mário ouviu o chiado do rádio assim que abriu a porta. Uma voz metálica perguntava por ele. Atender? Ou ignorar? A tentação foi grande, mas Mário resistiu a ela e pegou o rádio.
     - Mário Russo falando.
     - Chefe, onde diabos você estava? -  A voz do escrivão Rivaldo traía uma forte emoção - O delegado tá puto, inspetor. Desculpa o palavrão, mas é isso mesmo. Tá querendo que ache o senhor de qualquer jeito. O delegado do G.O.E. tá aqui faz um tempão, sentado na sala do delegado, esperando.
     - Tive uma emergência em casa, Rivaldo. Avisa que não volto pra delegacia hoje. Amanhã a gente conversa.
     - Como é que é? O senhor tá louco, chefe? O delegado vai te matar! É melhor...
     - Tive uma emergência. Não volto hoje. Amanhã conversamos. 
     Mário desligou.
     Olhou para os pinheiros que circundavam a biblioteca, margeando a rua. Viu o céu naquele tom azul escuro, salpicado do vermelho do entardecer. Não importa quantas vezes o policial tenha este cenário diante dos olhos, sempre será tomado pelo mesmo sentimento de introspecção, de tranquilidade e aconchego... de lar. Esta é sua terra, é sua cidade, e ele pertence a ela. O lugar em que nasceu e onde escolheu viver. O lugar que jurou proteger. O lugar onde ninguém explode juízes impunemente - não enquanto ele estiver na polícia.
     Mário manobrou a viatura e tomou a rua em direção à estação da Telesp, menos de um quilômetro abaixo. Ligou para a esposa. Suely atendeu.
     - Onde você está? Tá voltando pra casa?
     - Daqui a pouco, Su. Preciso de um favor: Não atenda o telefone.
     Mário ouviu o suspiro pelo fone.
     - Que foi dessa vez, Mário?
     - Só não quero que você tenha que mentir quando o meu chefe te ligar. Se preferir, tira o telefone do gancho. Estou numa daquelas investigações que exigem um pouco de liberdade da minha parte, sabe?
     - O caso do juiz, né? Toma cuidado, Mário. Quem explode um juiz pode fazer coisa muito pior com um simples policial.
     - Sei que sempre posso contar com você, Su. 
    Trocaram uma despedida carinhosa e ele desligou.
     Não lhe agradava envolver a mulher em suas confusões. Mas naquele caso não teve tempo de pensar em nenhuma desculpa melhor para o delegado, do que algum imprevisto em casa. Ele sabia que não ia escapar do sermão, mas pelo menos não teria que servir de babá para o policial da capital, enquanto investigava o atentado.
     Mário pegou o gancho do telefone e discou outro número, que sabia de cor. 
     Uma voz feminina atendeu:
     - Júlia.
     - Não perde essa mania de atender o telefone dizendo o seu nome? Já te disse que não é prudente dar nenhuma informação antes de saber quem está ligando.
     Risinhos.
     - Ah, Mário. Você me conhece. Não sou paranóica como você. O que foi desta vez? O delegado tá louco atrás de você.
     - Preciso da sua ajuda. Tem uma horinha? Quer tomar um café?
     - Passa aqui em casa. 
     Júlia morava em Jaguaribe, um bairro relativamente perto do centro - pensando bem, naquela estância abençoada por Deus, se um visitante de cidade grande prestar atenção, vai achar que tudo é muito perto. 
     A casa era pequena, uma sala, dois quartos, banheiro e cozinha. Mas Júlia gostava dela por causa do quintal nos fundos. Um lugar espaçoso, com um pé de jabuticabas, uma amoreira e muitas flores. Tudo muito doméstico e acolhedor para uma escrivã que vivia sozinha. 
     - Desculpe acabar com seu descanso.
     - Larga disso. Diga lá.
     Mário tirou dos bolsos o caderno, a caderneta, os extratos. Colocou sobre a mesa da escrivã. 
     - Passei o dia cruzando informações desses documentos. O caderno você já conhece. Estive na casa do juiz e encontrei esta caderneta e estes extratos bancários. Também estavam escondidos, de um jeito muito parecido com o caderno. E a coincidência não para aí. Depois de ficar montando o quebra-cabeça a tarde toda, cheguei à conclusão de que o caderno anota informações de contas bancárias. A caderneta tem as senhas dessas contas. E os extratos mostram a movimentação delas. Chega a milhões.
     - Milhões! - Júlia arregalou os olhos.
     - Preciso que você tente confirmar se são mesmo informações bancárias que a gente tem aqui. E, em caso afirmativo, que você descubra de que bancos são.
     - Bom, se são mesmo contas, e se o dono queria mantê-las escondidas, não vai ser fácil. Mas acho que tenho um ou dois amigos no mercado financeiro que podem me ajudar. 
     - Imaginei. Boa sorte.
     Mário hesitou um pouco. Guardar aqueles documentos poderia ser perigoso. Deixá-los com a jovem poderiam colocá-la em risco também. 
     Júlia pareceu ler seus pensamentos:
     -Não esquenta, vão ficar bem guardados. E nem a minha sombra vai saber que estão aqui.
     Aquela firmeza lhe pareceu suficiente. Mário levantou-se.
     - Espera - disse Júlia. 
     O inspetor se virou para ela.
     - Certeza que você não almoçou. Conheço essa sua expressão meio alucinada, de quando fica obcecado por alguma coisa.
     Júlia levantou-se, foi até a cozinha. Na porta, fez um sinal com o dedo indicador, para que Mário a seguisse. Como resistir àquilo?
     Júlia abriu a geladeira, pegou um pedaço de queijo. Tirou uma garrafa de vinho da porta e a abriu.
     - Você já terminou por hoje, não é, chefe? Podemos tomar um vinho pra refrescar as ideias ?
     Mário não respondeu. Sentou-se numa das cadeiras da pequena mesa da cozinha. Cortou um pedaço do queijo e o comeu, mastigando com calma. 
     Júlia encheu duas taças. Moça de iniciativa, não esperou Mário se oferecer para abrir o vinho. Ela mesma fez isso, com habilidade e rapidez. 
     Os dois ficaram num silêncio opressivo, um tanto constrangidos. 
     - Tenho que ir pra casa. Obrigado pelo queijo e pelo vinho.
     Mário se levantou deixando a taça intocada. 
     Júlia não o impediu.
     Chegando em casa, o inspetor encontrou Suely na sala, montando um quebra-cabeças com Paulo, o filho mais novo do casal. O garoto apenas olhou para o pai, sem entusiasmo.
     - Dia difícil? - perguntou Suely.
     - Nada fora do normal. Vou tomar um banho.
     Depois da ducha, revigorado, Mário jantou com apetite. 
     Naquela noite, enquanto Suely contava suas aventuras domésticas com os filhos, Mário se flagrou mais uma vez viajando nas ondas tenebrosas do caso que tinha nas mãos. Consternado, notou que não tinha entendido nada do que a esposa lhe contava. Pior: ela também notou isso.
     - Nem sei por que ainda falo com você... Suely reclamou.
     - Porque você me ama.
     - Infelizmente.
     Os dois se beijaram... Mário excitado, Suely relutante no início, mas logo entregue também. Por mais que a rotina estivesse carregada para ambos, impondo um distanciamento difícil de superar,  pelo menos a intimidade física entre eles continuava sendo muito boa, quando acontecia. 
     O casal deixou o ardor transformar em cinzas qualquer ressentimento... pelo menos naquela noite.
     - Já fazia algum tempo que a gente não ficava assim - disse Suely, quando a vontade foi satisfeita.
     Mário ficou calado.
     - Mário, falei sério aquela hora. Toma cuidado.
     - Você sabe como eu sou, Su. Não entro em buraco de onde não saiba sair.
     Suely descansou a cabeça sobre o peito do marido. Sabia que não adiantava discutir aquilo com ele. Mário nunca seria um típico policial cuidadoso. Era do tipo que assumia riscos, que enfrentava interesses... e que se metia em encrencas. 
     Horas depois, Mário ainda não conseguia dormir. Ficou ouvindo o leve ressonar da esposa, fitando a escuridão no teto do quarto, quebrada apenas por um leve reflexo de luz vinda do poste em frente à casa. Tentou com vontade, mas não conseguiu abstrair e tirar o caso do juiz da cabeça. 
     Levantou-se com cuidado para não acordar a mulher. Foi até a cozinha, louco por um cigarro. Fez um esforço considerável. Abriu a gaveta da prateleira, pegou uma caixinha de pastilhas de menta e jogou duas na boca. Ficou ali, mastigando, sentado na cadeira da cozinha, com as mãos no queixo e a cabeça nos papéis que o juiz escondeu com tanto cuidado. 
     Sem querer, pensou em Júlia. A jovem, inteligente, bela colega. Ela estava bonita hoje, em casa, com o cabelo preso, usando aquelas calças folgadas de moletom - que não escondiam de jeito nenhum suas curvas bem feitas - , com aquela blusinha leve, solta, de gola rasgada e sem mangas. 
     Mário foi até o banheiro e enfiou a cabeça na pia. Abriu a torneira e deixou a água gelada correr por seus cabelos. Estava frio naquela noite, como convinha à montanha. Tentou afastar aqueles pensamentos lascivos... apagou a luz do banheiro e voltou para o quarto.
     Não conseguiu dormir até que um galo distante anunciou o raiar do dia. 

     7

Sábado, 14 de setembro.

     - Sua filha vem nos visitar hoje, tá lembrado?
     Suely foi direto ao ponto logo no café da manhã.
     Mário tinha esquecido.
     - Claro que me lembro. 
     - Vai tentar ficar em casa pra recebê-la? Suely fez a pergunta sem grandes esperanças.
     - Ficar o tempo todo, acho que não dá... a que horas ela chega?
     - Dez. 
     - Tento estar aqui nesse horário.
     Mário se levantou, deu um beijo nos lábios da mulher e acenou para os filhos à mesa. Eles nem ergueram os olhos.
     Às vezes Mário se perguntava como filhos podiam ser tão diferentes dos pais...
     Mas com Natália a história era outra. Os dois sempre se deram muitíssimo bem. Ao ponto de um saber o que o outro pensava, só pelo olhar. Aquela bebê chorona, aquela criança alegre, aquela adolescente intempestiva e corajosa, tornou-se uma bela mulher. O orgulho do pai. Quando passou no vestibular da Casper Líbero para jornalismo, foi uma festa. A saída de casa, para morar em São Paulo, foi uma consequência natural dos acontecimentos. Mesmo assim Nat sempre manteve um contato próximo e carinhoso com a família, seja por telefone, seja por meio de visitas regulares. Nem mesmo as novas atividades da moça, ou a carreira absorvente do pai, conseguiram afastar os dois. 
     Quando os compromissos de escola eram negligenciados por exigências da polícia, Natália ficava triste, mas não recriminava. Tentava ser compreensiva com o pai, aquele homem que admirava acima de todos os outros. Nat sempre foi bastante madura, mesmo quando bem novinha. Uma bênção para um pai sem tempo livre, obsessivo, profundamente devotado ao trabalho.
     Mário não se considera um mal chefe de família. Tanto é assim, que sabe que a opinião dele sobre isso não é a mais importante, mas a de seus filhos e esposa. Nunca se importou em agradar chefes, superiores, encarregados. Nunca na vida experimentou a degradante sensação de puxar um saco. Por outro lado, junto a essa liberdade de intenções, colou-se uma dificuldade em reconhecer a autoridade, seja ela de que tipo for. O que ele nunca conseguiu entender é como uma mente tão desimpedida no campo profissional consegue ser tão submissa aos mínimos caprichos familiares. 
     A indiferença dos filhos menores o incomoda mais do que uma quadrilha inteira de punguistas; tem dias em que tudo que queria era trocar mais do que três frases com um deles. A aprovação da esposa, para ele, sempre teve a mesma importância de uma investigação bem sucedida - grande importância, que fique claro. E a filha, principalmente a filha… Mário secaria como uma folha de plátanos caída no outono, se não contasse com a admiração e o respeito dela.
     Mesmo com tamanha devoção e entrega, ele falha. Insistentemente. São falhas pequenas, ou nem tanto. Uma reunião da escola à qual não compareceu aqui, uma carona para a esposa que não conseguiu dar ali... O trabalho é sempre a explicação. Explicação que ultimamente tem perdido a capacidade de perdoar esses pequenos furos. 
     Claro que ele veria a filha; só não sabia ainda como faria isso num sábado complicado como aquele, com um caso misterioso para resolver e as atenções do alto comando da polícia voltadas para Campos do Jordão. 
     Ele daria um jeito, como sempre. 

     Mas agora é tempo de pensar em assuntos policiais.
     A delegacia estava quase completamente deserta. Apenas o escrivão plantonista ocupava uma das mesas, com o jornal aberto na frente da cara.
     - Bom dia Dias. - a sonoridade da frase pareceu engraçada. 
     - Oh, inspetor Russo. Bom dia. - Dias não notou o tom jocoso da saudação.
     - Novidades?
     - Só que o delegado de São Paulo deve aparecer já já.
     - Num sábado? - Mário fingiu a surpresa - Está mesmo disposto a trabalhar, esse aí.
     - É o que parece, inspetor. Ele tem ordens diretas do secretário, né. 
     - Bom, acho que dessa vez não escapo de conhecer o homem.
     Mário foi até a mesa no fundo da delegacia, jogou a maleta ao lado da cadeira, sentou-se e pegou o jornal que Dias lhe estendeu. Seria muito melhor se Júlia estivesse de plantão, não conseguiu evitar de pensar. Sim, ela poderia fazer um relatório de seus esforços para decodificar as informações que Mário lhe confiou... mas não apenas por isso.
     Passaram-se longos minutos até que o ruído de pneus sobre o cascalho se fez ouvir na frente da delegacia. Mário continuou com o jornal aberto, mas manteve os ouvidos atentos. Passos no cascalho. Dois homens. Um deles de andar desencontrado e confuso. O outro, convicto, passos firmes em direção à porta. Mário ficou ouvindo e tentou montar a imagem dos dois personagens. O dos passos convictos, um sujeito corpulento e alto. Uma leve calva se formando no alto da cabeça. Queixo duplo, bochechas cheias, olhos grandes e negros. Nariz arredondado e lábios grossos. 
     O outro, magro, levemente arqueado, nariz pontudo e queixo inexistente, fazendo com que o pescoço se tornasse quase que um prolongamento do rosto fino. Cabelos lisos e pretos, penteados para o lado e separados minuciosamente com um pente. Os dois, de gravata e paletó.
     - Bom dia. - uma voz grossa, meio rouca, firme, se anunciou.
     Mário abaixou o jornal e se permitiu olhar para os dois homens, que já entravam na delegacia como velhos conhecidos do lugar. 
     "É incrível o que se pode deduzir simplesmente ouvindo passos sobre o cascalho", pensou Mário.
     - O senhor, quem é? - perguntou o gordo alto.
     - Acho que, diante das circunstâncias, talvez eu devesse perguntar isso, não?
     O outro olhou com uma atenção renovada para o homem à sua frente.
    - Por que diz isso?
     - Ora, eu estou no meu local de trabalho. Eu cheguei primeiro. Eu tenho meu nome aqui nesse troço sobre  a minha mesa (nunca soube o nome disso). Enfim, acho que a pergunta cabe a mim fazer.
     O grandalhão ficou um pouco desconsertado. Diminuiu a frieza e se apresentou.
     - Sou o delegado especial Herculano Seixas. G.O.E. , setor de inteligência. E o senhor... Mário Russo...
     - Sou inspetor de polícia. Chefe dos investigadores desta delegacia.
     Não houve um "muito prazer". Os dois ficaram se olhando por um segundo.
     - Senhor Russo, acho que seu superior já o informou da situação. Uma equipe do G.O.E. já está aqui na cidade pra fazer a segurança do local do crime.
     - Desculpe...? - Mário ficou surpreso.
     - Isso mesmo, ordens diretas do governador. Nosso grupo está no fórum para evitar qualquer novo incidente. E outra equipe foi designada aqui para a delegacia. 
     - Como é? doutor...
     - Herculano. É isso mesmo que o senhor ouviu. Não sabemos se o magistrado é o único alvo. Pode ser um ato de terror contra as instituições civis, com mais explosões e mais vítimas. Por isso, vamos colocar uma equipe de choque aqui na delegacia também, até segunda ordem.
     Mário não se conteve. 
     - Achei que não havia dúvidas sobre o objetivo dos agressores...
     - Não se pode prever o que esses terroristas pensam. 
     - Terroristas? - Mário ficou sinceramente assustado. Não com a ameaça do terror, mas com o fato de alguma autoridade policial levar aquela teoria a sério.
     - ...Nunca tivemos um ataque deste tipo aqui. É preciso cercar todas as possibilidades. Os agentes do G.O.E. vão se posicionar a partir de hoje. Chegam em dez minutos. 
     - Isso é absurdo. E ridículo. Terroristas? Tá mais com cara de vingança. Esse circo que você está montando vai expor a polícia civil a piadas e criar um clima de terror injustificado.
     Mário teve o impulso quase irresistível de falar tudo isso. Mas apenas pensou. 
     - Enquanto a gente cuida da segurança no fórum e aqui na delegacia, tudo que lhe peço é que nos mantenha informados sobre tudo - eu disse tudo - que diga respeito a essa investigação. Dúvidas?
     - Nenhuma - Mário pegou o paletó e se dirigiu à porta.
     - Onde o senhor vai?
     - Investigar.
    
     Mário pegou a viatura e foi para casa. No caminho, passou na frente do fórum a tempo de ver os policiais do G.O.E. posicionados nos mesmos pontos onde PMs faziam a segurança antes. Uniformes negros, armas em punho, carros nas laterais do fórum. Capacetes sobre capuzes ninja, assustadores. Um espetáculo completo. 
     Em vez de ir para casa, Mário resolveu tomar o rumo da rodoviária. Com um pouco de sorte, chegaria lá a tempo de receber a filha. 
     Eram dez para as dez da manhã quando ele estacionou a viatura na frente da rodoviária. Ainda dava tempo de fazer uma ligação antes do ônibus de Natália chegar. 
     Ele pegou algumas fichas no bolso, onde se lia a palavra "Telesp" incrustada. Enfiou logo três num orelhão próximo e aguardou.
     No segundo toque, Dias atendeu.
     - Polícia civil.
     - Dias, sou eu, Mário. Você já recebeu os arquivos dos processos em que o doutor Flávio estava trabalhando recentemente? Ainda não? - essa demora para as coisas acontecerem sempre foi o que mais incomodou Mário no serviço público - Liga para o Fórum cobrando isso, Dias, é preciso dar uma olhada, ver se em algum desses processos aparece alguma pista. Certamente lá está um resumo das inimizades do juiz.
     Mário desligou bem a tempo de ver o ônibus que vinha de São Paulo entrar na única plataforma da minúscula rodoviária. Não era nem bem uma plataforma, estava mais para um acostamento de rua com uma cobertura e uma sala servindo de escritório.
     Houve uma certa ansiedade até que os cabelos pretos e o sorriso aberto de Natália apareceram na escadinha do coletivo.
     - Pai! Que legal que você veio!
     - E você acha que eu ia te deixar ir pra casa de táxi?
     Os dois se abraçaram apertado, longamente. Mesmo em mil anos, a sensação que Mário experimentava ao fazer aquilo jamais mudaria. E, ao mesmo tempo, seria eternamente nova; como o nascer do sol. Um espetáculo de roteiro conhecido, mas único a cada edição.
     Natália estava mesmo feliz de estar ali. Seu entusiasmo ficou evidente durante todo o caminho até em casa. Não parou de falar um minuto. Fez várias perguntas sem ter paciência para as respostas, quis contar ao pai todas as novidades ao mesmo tempo.
     - Você vai ficar com a gente este fim de semana, não vai, papai?
     A expressão da jovem já demonstrava que ela não tinha muita esperança numa resposta afirmativa. Seu tom de voz também denunciava uma certa manha infantil, que deixou Mário encantado.
     - Vou tentar, filha. Eu quero, muito. Mas você certamente sabe o que aconteceu.
     - Eu sei, a explosão no fórum. Que coisa horrível! Você está com o caso?
     - Eu, toda a polícia local e até reforços de São Paulo. Todo mundo envolvido com prioridade nessa investigação. Como essa história repercutiu na capital?
     - Bom, papai, eu acompanhei mais pelos jornais do que qualquer outra coisa. Está tudo com destaque no noticiário nacional, não é? Um professor meu, que trabalha na Folha de São Paulo, disse que não queria estar na pele da polícia.
     - E por que, filha?
     - Segundo ele, a lista de suspeitos desse caso vai ser suficiente pra ir daqui até a Lua e voltar. O doutor Flávio era muito ativo na área criminal. E colecionou desafetos durante a carreira.
     - Eu não esperava por nada diferente, filha. Mas você se lembra da lição mais básica para qualquer investigador, não é?
     - Descarte o impossível; o que sobrar, ainda que improvável, é a verdade.
    - Sherlock Holmes. Você não esqueceu.
     - Sim, papai, mas o problema é que você vai ter uma lista bem grande de impossibilidades para eliminar, até chegar à verdade.
     Mário não respondeu. Natália estava certa, ele sabia. 
     Em casa, Natália foi recebida com festa. Os irmãos a saudaram com abraços, beijos, largos sorrisos nos lábios. A mãe deu sonoras beijocas nas bochechas e a espremeu nos braços. Todos falavam ao mesmo tempo, elogiando a beleza da moça, perguntando como estavam as coisas... uma algaravia festiva. Suely foi a única que notou que Mário estava ali. Olhou para ele com um sorriso grato.
    A família passou junta o resto da manhã. A filha mais velha parecia catalisar todas as energias daquele núcleo familiar, transformando o ambiente e renovando os humores. Era como o elo que faltava, a peça que complementava o quebra-cabeças. Mesmo os meninos, normalmente distantes, se integraram completamente àquele feliz evento doméstico. Mário não os sentiu tão distantes como normalmente acontecia. E aproveitou o momento.
     O almoço foi igualmente alegre. Uma refeição demorada, regada a um bom bate-papo, sabores e cheiros. 
     No meio da tarde, Mário estava preguiçosamente jogado no sofá lendo um jornal e mastigando uma pastilha de menta (a vontade de fumar naquele horário era sempre mais forte) quando o telefone tocou. Suely lançou a ele um olhar cheio de significado. Mário ergueu as sobrancelhas, como que respondendo, e se levantou para atender. 
     Era Júlia.
     - Descobri algumas coisas. Achei que você ia querer saber logo, então decidi não esperar até segunda. 
     - Você não está de folga? - perguntou Mário, irônico.
     - Essa é boa. Quem me ensinou que policial não deixa o cargo nem dormindo?
     - Vou até sua casa. 
     Suely lançou da cozinha outro daqueles olhares, meio decepcionada, meio irritada. Natália verbalizou o que a mãe pensava.
     - Vai trabalhar? Poxa, pai, achei que íamos ficar juntos.
     - Volto o quanto antes, filha. Prometo. 
     O inspetor deu um beijo na esposa, na filha, passou a mão pela cabeça do caçula. O filho do meio já tinha saído para aproveitar a tarde com os amigos. Adolescência. 
      O relatório de Júlia foi objetivo e sucinto.
     - São contas mesmo. Um amigo meu disse que esse padrão de números é de um banco em Zurique. Esse outro, de uma instituição financeira das Cayman. Nota que os números, pontos, traços são como uma identidade da instituição. E esses quatro algarismos aqui indicam o banco.
     "De posse dessa informação, eu cruzei alguns dados. Você tinha notado que alguns nomes se repetem no caderno e na caderneta, com números diferentes em cada um. Bem, no caderno estão os números das contas, o que me leva a deduzir - e o meu amigo financista concorda - que esses outros números aqui são as senhas.
     - Eu já imaginava. - grunhiu Mário.
     - Ou seja, chefe, nesse momento você tem acesso a milhões de dólares. Essas contas podem ser movimentadas à distância, basta conseguir os telefones das agências e os nomes dos gerentes pessoais delas. 
     Mário sentiu uma certa acidez no estômago. Tanto dinheiro nunca esteve na mão dele antes, e provavelmente nunca mais estaria. 
     - 900 milhões, para ser mais exata. É o que eu achei somando esses outros números dos extratos bancários que você encontrou, e que trazem detalhes de uma movimentação financeira intensa. Mário, você está com o livro-razão de alguma coisa grande. O que me leva a pensar: será que o juiz estava subornando os próprios réus? Veja que alguns dos nomes no caderno são bem conhecidos, de casos famosos que ele presidiu no tribunal em São Paulo, antes de vir parar aqui. 
     Mário pegou de volta os documentos todos. Colocou nos bolsos das calças e na maleta de mão que trouxe. 
     - É hora de dar conta disso ao Afanásio.
     Júlia concordou.
     - Quer um café? Faço num minuto - ofereceu a escrivã.
     Mário pensou em aceitar, mas achou melhor ir embora.
     - Natália está em casa. Quero aproveitar o máximo que conseguir esse fim de semana com ela. 
     - Ok. Fica pra outro dia. 
     Os dois se despediram com um formal toque de mãos. 

8


     Antes de ir para casa Mário quis passar pela delegacia. As ruas estavam relativamente vazias na parte alta do Jaguaribe, onde Júlia morava. Ao entrar na viatura, o inspetor notou um carro preto parado do outro lado da rua, a uns cem metros do portão da escrivã. 
     Mário deu a partida. Depois de uns momentos, olhou pelo retrovisor e notou que o carro preto também se movia. Deu uma volta na rua estreita, manobrou rapidamente e se colocou no mesmo caminho que Mário, alguns metros atrás. 
     Podia ser coincidência. Mas o inspetor deixou de acreditar em coincidências há algum tempo. Preferia sempre desconfiar quando as coisas aconteciam fora do costumeiro. Um amigo psicanalista sugeriu que ele fizesse terapia, para tentar identificar algum traço de personalidade obsessiva. Mário prometeu que faria isso algum dia, e omitiu ao colega a informação de que havia, sim, uma explicação neurológica para essa mania dele. Mas o fato é que certamente o cuidado com detalhes era uma das características mais constantes da mente do policial. Entenda-se: ele não era compulsivo; não costumava verificar várias vezes o gás do fogão, ou fechar as gavetas seguidamente, ou voltar para casa para ver se a porta estava trancada. Nada disso. Quando fazia alguma coisa, ficava certo de que aquilo estava feito e acabado. Uma vez bastava. Uma checagem, no máximo, quando a tarefa era mais complexa. Método e organização eram como respirar para ele. O problema - ou a vantagem especial daquela inteligência - é que nada lhe escapava; desde a cor diferente nos cabelos da caixa do banco onde ele tem conta, até a mudança de padrão nos objetos de uma cena de crime. De modo que, mesmo que quisesse, Mário não conseguiria ignorar o carro preto logo atrás dele. Pode ser uma perda de tempo dar atenção àquilo. Mas também pode não ser. 
     Ele resolveu brincar de gato e rato. Em vez de seguir direto para a delegacia, fez uma curva acentuada à direita, rumando para o Capivari. A avenida larga, de duas faixas, permitia imprimir mais velocidade à viatura, e foi o que ele fez. Por um instante o carro preto sumiu do retrovisor. Mas logo em seguida estava lá novamente. O parabrisa escuro não permitia visualizar quantas pessoas estavam dentro do veículo. Mas ficou evidente a intenção do motorista, de não perder Mário de vista. 
     "Não tenho paciência para esses joguinhos", pensou o detetive. Na primeira oportunidade, deu uma guinada com o volante para a direita e freou bruscamente, atropelando o meio-fio da calçada. Abriu a porta e saiu do carro, com a mão esquerda sobre o coldre do revólver embaixo do casaco e a direita erguida, sinalizando para que o motorista parasse. 

Interstício III

     O frio... o frio é como o medo. Se espalha, consome a energia da gente. Tira o ânimo, o poder de reação. Só faz deixar uma vontade de silêncio e estagnação. Aqui onde estou, dentro das minhas próprias lembranças, o tempo corre diferente, mais rápido. O eixo da história retrocede... Tempos duros no campo de concentração. Ficou ainda pior depois da morte de meu pai.  A fome, os trabalhos forçados, as humilhações e agressões foram os ingredientes da minha rotina. Até aquele dia.
     Era final de abril de 45. Vimos que o ambiente estava alterado no campo. Soldados andando de um lado para outro, sem parecer ter o que fazer. Alguns largavam seus fuzis pelo chão. Outro, um coronel do comando do campo, apareceu com os olhos vidrados balbuciando palavras ininteligíveis, sacou a pistola e deu um tiro na cabeça. 
     Fui caminhando por aquele cenário desolado. O dia estava frio, neblina cercava as torres de vigia, invadia as vielas entre os galpões sombrios. Ninguém parecia se dar conta da minha presença. Como num pesadelo em que somos apenas espectadores. 
     Tomei o rumo do alojamento onde ficava. Entrei e fui direto para o meu cantinho, onde havia um velho colchão e um pedaço de cobertor. Sentei-me ali sem saber muito bem o que fazer. De repente notei que não estava sozinho. Mais ao fundo, um patrulheiro alemão estava sentado sobre uma banqueta com a cabeça entre as mãos. Cauteloso, me aproximei. Ele me olhou. Era Günter, o encarregado da vigilância, abusador, sádico, monstruoso. Inúmeras vezes senti o peso de suas botas sobre o meu pescoço.
     Seus olhos estavam vermelhos. Ele falava de forma desconexa, como numa febre. "O führer ... o nosso líder... o mestre..." Num gesto bruto, tirou a pistola do coldre. Com as mãos tremendo, me estendeu a arma, colocando o cano no meio da testa. "Aperte o gatilho, menino... você já tem idade para ter sangue nas mãos... aperte o gatilho...". 
     - O que aconteceu? - perguntei.
     - Me mate logo de uma vez ! - Ele gritou.
     Cogitei longamente em atender ao pedido. Mas algo me ocorreu. 
     - É o que você quer? - perguntei. 
     - Sim! 
     Sem falar mais nada, larguei a arma e saí do alojamento. Tenho certeza que não atender ao pedido de Günter era a melhor vingança que eu poderia arquitetar. Aquele soldado não cumpria ordens, apenas; encontrava satisfação pessoal nas barbaridades que cometia, era um assassino frio - mas  incapaz de tirar a própria vida.
     Lembro-me da manhã em que ele usou a coronha de seu fuzil para esmagar a cabeça de um menino. Uma criatura tão frágil... apenas porque não tinha mais forças para o trabalho forçado. O monstro não quis "gastar uma bala" na sua vítima. 
     Não sei o que aconteceu a ele. Nunca mais o vi. Espero que tenha vivido o suficiente para sofrer pelo menos um pouco do que passamos naquele inferno. 
     Os meses seguintes foram como uma cascata de acontecimentos. Os aliados ocuparam Berlim, libertaram prisioneiros de inúmeros campos de trabalhos forçados, salvaram sobreviventes dos campos de extermínio. Um sopro de esperança varreu a Europa. Depois veio a divisão da Alemanha entre os vencedores... o início de um longo período de cizânia e desconfianças. 
     Fui abrigado por um grupo de voluntários que cuidavam dos órfãos da guerra. Una mulher caridosa que pretendia tentar a vida no Brasil me encontrou e decidiu tomar conta de mim. Viajamos juntos para o outro lado do Atlântico. Eva era seu nome. Ela se tornou uma mãe para mim. Tenho certeza que eu teria morrido se ela não tivesse entrado em minha vida. 
          Fomos viver numa colônia alemã em Santa Catarina. Uma das primeiras tarefas que Eva se impôs foi se adaptar o mais rapidamente possível à nova terra. Para tanto, procurou um cartório, explicou que tinha perdido os documentos durante a guerra e me declarou como seu filho legítimo. Pediu que eu fosse registrado com o nome de Flávio. Ali morria o Olav Yaakov Rosarot da minha infância. Naquele modesto cartório de Joinville, nasceu Flávio Rogendorff. 
     Lá vivi a adolescência e os primeiros anos de estudos. Tinha muito tempo a recuperar, mal sabia ler e escrever em alemão, minha língua natal. Que dirá o novo idioma da terra que me adotou, o português. Mas o ambiente, repleto de alemães fugidos da guerra, me ajudou no aprendizado das duas línguas. Eva achava que eu tinha facilidade para tudo que fosse trabalho intelectual. 
     No dia em que ela me levou até a pequena escola da vila, tive uma decepção. O professor não quis me aceitar na reduzida turma de estudantes. "Ele é muito grande pra ficar com os alunos de seis anos em fase de alfabetização. Ainda sem dominar a língua local, só vai atrasar todo mundo". disse ele em alemão perfeito, para ter certeza que eu entenderia o que falava. "Mas ele aprenderrrr depressa!", respondeu Eva em português carregado de sotaque. O homem, porém, deixou claro que aquela conversa tinha terminado. 
     Saímos dali tristes, nós dois. Eva por ter o protegido rejeitado pela escola; eu, por ver Eva triste. Mas para ser sincero não me empolgava com a ideia de ficar preso numa sala, estudando. Sentia necessidade de liberdade, depois de uma infância de prisioneiro. Para mim, qualquer ideia de compromisso ou obrigação seria uma cadeia. 
     Eva não desistiu, apesar desse contratempo inicial. Ficou sabendo que Mr. Richard, um pequeno comerciante inglês do vilarejo, dava aulas de reforço para estudantes atrasados. Eva foi até a venda do inglês com passos decididos. "Senhorrr ensinarr meu 'filho' a lerrr, escreverrrr e contarrrr em português", pediu ela com tom firme na voz. "Mas minha senhora, eu apenas complemento o que os meninos aprendem na escola", ele respondeu. "Eu pagarrr! Pode dizer o preço que eu pagarrr!", insistiu Eva, gastando quase todo o português que conhecia. "Não se trata de dinheiro, madame. Ele já passou um pouco da idade..." Eva não deixou o inglês terminar o raciocínio: "Nunca é tarde para aprenderrrrr coisas novas", rebateu. 
     Seja pela firmeza daquela senhora, seja por ter encontrado em meu olhar alguma esperança de sucesso, Mr. Richard resolveu tentar. Recusou qualquer pagamento. "Se ele for aplicado e se sair bem no primeiro mês, ensino o rapaz de graça até que ele consiga acompanhar a turma da escola. Mas vai ter que se esforçar muito mais que os outros para recuperar o tempo perdido". 
     Foram longos dias entre o abecedário e a matemática. Muito esforço para entender a dinâmica do idioma, e outro tanto para aplicar a linguagem nas tarefas de outras disciplinas. Aquilo me custava horas e horas de passeios ao sol ou vadiagens nos pomares da região... Eu sofria com isso. Mas o medo de desapontar minha tutora era maior. E desse medo, acabou nascendo um interesse genuíno pelos estudos. De alguma forma percebi que o conhecimento seria para mim uma tábua de salvação que eu deveria agarrar com unhas e dentes. A partir daí, passei a ter progressos significativos. Mr. Richard olhava para mim com satisfação incontida. Depois de algum tempo, ele garantiu que eu estava pronto para a escola regular. Eva encarou de novo o arrogante professor, que parecia pouco ansioso por receber mais um pupilo. Mas quem disse que um professor relapso seria páreo para uma mulher que lutou contra o nazismo e a tirania? Ela acabou vencendo aquele duelo e fui matriculado.
     Também aprendi rápido a cuidar das roças de milho e arroz da colônia. Estudava à tarde, trabalhava desde os primeiros minutos da manhã. Na escola o professor era severo e guardava na gaveta da mesa uma palmatória, com a qual tinha o triste hábito de castigar os alunos bagunceiros ou lentos no aprendizado. Nunca levei tal castigo. Não tanto por minha capacidade de aprender, mas pela minha submissão absoluta à disciplina, resquício do que vivenciei na guerra. O professor me olhava com expressão feroz, de cima dos óculos de aros finos e lentes redondas, procurando algum motivo para aplicar a disciplina. Não lhe dei esse gosto. A relação com os colegas foi um pouco conflituosa... eu sofria perseguições e era alvo de brincadeiras por ser o aluno mais velho da turma. Uma ou duas vezes me meti em brigas. Foi onde aprendi que o diálogo é o melhor caminho para se resolver uma diferença - principalmente se o adversário é menos inteligente - e mais forte - do que você. O pior é que quando chegava em casa com o olho roxo desses entreveros de moleques, ainda tinha que enfrentar a vara de marmelo de Eva, que não se inibia em me dar um corretivo. "Você tem que estudarrrr e não brigar como um virrra-latas! Quer ser expulso da escola?"
     E assim fui descobrindo os primeiros passos no mundo do conhecimento; odiava a matemática com todo meu coração e só conseguia decifrar o suficiente para não ser considerado um perfeito idiota. Tinha muito mais prazer com as letras. A pequena escola não tinha uma biblioteca propriamente dita. Havia uma velha caixa com alguns livros infantis de capa rasgada. Versões simplórias de obras como Os Três Mosqueteiros, O Conde de Monte Cristo e O Médico e o Monstro - que, descobri anos depois, não passavam de sombras pálidas das obras originais; mesmo assim, para um menino seduzido pela leitura, foram companheiros fieis. Os contos de fadas, esses me aborreciam. Os invariáveis finais felizes pareciam não combinar com minhas memórias, minha realidade. 
     A vida era dura, mas para mim, era como o paraíso. Aqueles dias ao ar livre, em contato com a natureza, sem precisar temer uma agressão gratuita, eram presentes que eu sequer imaginava possíveis.
     Os finais de semana eram livres. Meu maior prazer era atravessar os campos de milho em direção a uma pequena mata, que protegia uma nascente. Lá me embrenhava entre as árvores, imaginando ser um explorador numa selva desconhecida. Subia numa grande paineira e olhava meu pequeno mundo. Lá de cima ele parecia bem maior. Eu também gostava de visitar as árvores frutíferas. A variedade de sabores brasileiros foi uma das primeiras características a me seduzir neste país hospitaleiro. Jabuticabas, mangas, amoras, peras, jacas... deliciava-me à exaustão. 
     Mr. Richard continuou em minha vida. Admirava minha curiosidade e resolveu me apresentar o mundo; eu ficava fascinado com as histórias que ele contava da resistência em Londres, dos bombardeios da Luftwaffe, da coragem de seus compatriotas e do Rei da Grã -Bretanha, que em nenhum momento fraquejou. Jorge VI, contava ele, percorreu vários pontos do país e também do exterior para animar as tropas e os cidadãos. Era a reserva moral, o símbolo da confiança na vitória para o povo. Teve um papel importante, dizia Mr. Richard. "Um papel nem sempre lembrado com justiça pela história oficial", reclamava. "Lembram muito mais dos feitos do velho Churchill… quando pensam no Rei, ficam mais preocupados em ridicularizar a gagueira de Sua Majestade do que honrar-lhe os esforços". 
     Pedi a Mr. Richard que me ensinasse a língua inglesa. Ele pareceu muito satisfeito em me atender. "É uma língua riquíssima, vai ver. Bem mais articulada do que seus 'rr' furiosos e a mania de inverter os números",  brincava.   
     A relação de aprendizado entre Mr. Richard e eu transformou-se em amizade sincera sem que qualquer de nós dois forçasse essa situação. Foi uma consequência natural de nossa proximidade. Mr. Richard descobriu em mim um leitor voraz. Eu mesmo descobri, um tanto surpreso, que tinha uma curiosidade viva e uma inteligência dinâmica. Dominei o português, apesar de não conseguir disfarçar um sotaque alemão. Com a língua inglesa o processo foi um pouco mais lento, mas os resultados logo se fizeram notar. 
     O senhor britânico era um homem muito culto. Tinha uma respeitável biblioteca no sótão de sua casa. A curiosidade me mordeu como um animal faminto. Pedi a ele que me indicasse alguns livros e assim fui apresentado a clássicos mundiais, que lia no original. Nem tudo eu conseguia entender, mas percebia a beleza de Shakespeare de forma intuitiva. Paciente e orgulhoso do jovem discípulo, Mr. Richard se submetia a longas conversas comigo, em que esclarecia minhas dúvidas sobre a verdadeira natureza de Hamlet ("parece um angustiado indeciso", eu dizia), sobre a estupidez de Romeu e Julieta, a distopia de muitas tragédias. Ele comentava, rindo, "esse é seu espírito alemão se rebelando contra a sutileza inglesa, meu jovem". 
     Conheci os russos, viajei ao lado de Dom Quixote, experimentei o mundo terrível d'A República de Platão (que me pareceu em alguns pontos muito próximo do pesadelo que eu mesmo tinha vivenciado na Alemanha nazista). Depois do trabalho diário, contava os minutos para me lavar e visitar o inglês, ávido por novos momentos entre os livros. Só largava a leitura muito depois dos últimos pássaros terem silenciado seus cantos, reverenciando a noite com um silêncio cheio de vida. Graças a isso tive uma formação muito mais sofisticada do que a de meus colegas que, lá no início, estavam muito à minha frente. Recuperei o que perdi nos anos de ignorância durante a guerra. E conquistei muito mais. 
     Tudo parecia muito perfeito e, como num filme dramático de roteiro ruim, algo tinha que acontecer para manchar toda aquela tranquilidade.

     Anos depois do nosso desembarque, Eva, já com a idade avançada, faleceu numa tarde de outono. A melancolia do pôr do sol, mergulhando num horizonte vermelho, sempre ficou ligada à morte na minha cabeça depois daquilo.  Mesmo com tudo que suportei anteriormente, aquele foi sem dúvida um dos dias mais tristes de minha vida. Tinha me acostumado à proteção de Eva, sua orientação, seu amor sóbrio e sem efusividade, muito econômico nas demonstrações de afeto mas generoso na capacidade de ajudar e proteger. 
     Algo que não experimentaria de novo. 
     Apesar do consolo de meu velho e único amigo Mr. Richard, eu estava sozinho mais uma vez. 
     Dias depois do enterro, pedi a Mr. Richard que vendesse nossa pequena casa. Quando eu tivesse um endereço, avisaria a ele para que remetesse a quantia que conseguisse apurar no negócio. Entrei num ônibus e fui embora. 
     Resolvi tentar a sorte em São Paulo. Eu já tinha aprendido, àquela altura, a duras penas, o valor da Justiça. Meu destino estava traçado. 
     Passei no vestibular para a faculdade de Direito de uma das mais tradicionais escolas brasileiras,  a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco. 
     
     Durante o período na faculdade conheci duas pessoas que se tornariam centrais na minha vida. Uma delas foi Shirley, que viria a se tornar minha esposa. Outra foi Crisóstomo. Um colega brilhante, jurista nato. Também um homem frio, ousado, inteligente. E, principalmente, disposto a ir além dos limites da lei para buscar sua concepção pessoal de justiça. 
     Crisóstomo não me falava muito sobre si próprio. Contou que era de uma família quatrocentona do interior de São Paulo. O pai era dono de milhares de cabeças de gado espalhadas por inúmeras fazendas. Também tinha participação em importantes empresas. Muito rico.  Fui pesquisar pelo sobrenome dele, e descobri. Os Valadares eram donos de quase metade de Ribeirão Preto. Tinham influência política.  Seu avô foi conselheiro e homem de confiança de Getúlio Vargas. Dizem que tinha mais poder do que os ministros do "pai dos pobres". Parte desse poder foi transferido para o pai de Crisóstomo, que tinha esperança de transferi-lo pro filho. Mas apesar de todo esse legado, que se destinava às mãos de Crisóstomo por herança, ele se apresentava de forma despretensiosa, quase desleixada. Era um tipo calado, aparentemente tímido, de poucos amigos. Não sei bem por que resolveu se aproximar de mim. Seu jeito logo despertou minha curiosidade. Quando a confiança mútua se formou, me identifiquei com a solidão que ele dizia ter sentido durante toda a infância, mesmo com os pais dentro de casa. Era como se não existisse um vínculo familiar que os unisse. Eu tive meus pais arrancados de mim. Ele, de certa forma, nunca teve os pais, mesmo estando próximos fisicamente. Criou-se uma empatia entre nós. 
     Quando Crisóstomo me contava sobre a difícil experiência doméstica, não o fazia com rancor ou mágoa. Parecia um cientista observando um inseto dentro de um copo, dava a impressão de estar falando de outra pessoa, e não da própria vida. Mais de uma vez esperei ele se referir a si próprio na terceira pessoa, mas meu novo amigo nunca fez isso. Havia muita dor represada naquele coração, isso era evidente, mas a represa era uma fortaleza. Crisóstomo não se deixava quebrar. E tenho a impressão que as conversas comigo o ajudavam a suportar. Aos poucos me senti à vontade para também contar a ele sobre minhas desventuras durante a guerra. Ele ouvia atento, arregalava os olhos em alguns relatos mais trágicos, mas nunca usou as frases feitas corriqueiras para comentar o que passei. E por isso me tornei grato a ele. Me poupou o gosto amargo da indulgência e da piedade alheia, que pode ser mais intragável do que um murro ou um chute. Crisóstomo era um ótimo ouvinte. Não tentava diminuir o peso dos fatos, ignorar a gravidade das coisas. Apenas entender. Esse era seu estilo. 
     Com Shirley, a simpatia custou um pouco mais a surgir. Confesso que desde o primeiro momento em que a vi fiquei fascinado por sua beleza. A recíproca, porém, não foi verdadeira. Tenho certeza que, para ela, eu não passava de uma sombra imperceptível. Shirley era popular, cercada de amigos, cortejada pelos rapazes mais cobiçados da faculdade. Seu olhar vivo, sorriso franco e perfeito, pareciam hipnotizar os homens que passavam a circular em torno dela como mariposas rodeando uma lâmpada. Mas o que me deixava intrigado era a aparente indiferença que ela demonstrava para com toda aquela atenção. Tinha um comportamento que facilmente poderia ser chamado de antipatia. Claro que isso não desencorajava seus admiradores, pelo contrário, parecia despertar-lhes ainda mais o interesse pelo desafio da conquista. Eu não me sentia em condições de me juntar àquela miríade de acólitos da moça. Um jovem sem pai nem mãe, com fala arrastada e jeito esquisito - que chance teria?
     Até que por uma simples casualidade ficamos no mesmo grupo de trabalho da aula de direito penal. Por conta disso passávamos algumas horas por semana juntos, debatendo as tarefas propostas pelo professor. Nessas ocasiões, eu me sentia no meu território. Gostava dos debates, defendia minha ideias com energia e argumentos bem amarrados. 
     Mais de uma vez me vi do lado oposto ao de Shirley... Ela defendia a pena de morte; eu argumentava que onde essa medida existia, a violência e o crime continuavam a pleno vapor. Ela achava que mesmo crianças eram capazes de crueldades e crimes e, por isso, deveriam estar sujeitas a todo o rigor da lei. Eu achava que a solução para crianças e jovens estava em outro lugar, não na cadeia. Em algumas ocasiões ficamos os dois trocando argumentos como espadachins num duelo enquanto o resto do grupo olhava de um para outro, como meros espectadores. Aquilo para mim era um momento de consagração; uma forma indireta de conquistar a atenção daquela moça tão inteligente e carismática.  reduzir a maioridade penal. Eu achava que a solução para crianças e jovens estava em outro lugar, não na cadeia. Em algumas ocasiões ficamos os dois trocando argumentos como espadachins num duelo enquanto o resto do grupo olhava de um para outro, como meros espectadores. Aquilo para mim era um momento de consagração; uma forma indireta de conquistar a atenção daquela moça tão inteligente e carismática. 
     Por essa época dividia meu tempo entre as aulas, o estágio que tinha obtido no fórum de Santo Amaro, as reuniões do grupo de estudos e as viagens de ônibus de um destes pontos para os outros... À noite estava tão cansado que não conseguia sequer tirar a roupa antes de desmaiar na cama. Assim seguia minha rotina, sem previsão de mudança à vista. 
     Até que um dia... sim, minha vida também me reservava alguns dias surpreendentes.
     Depois de mais uma das nossas reuniões de estudos, Shirley se desvencilhou dos colegas que invariavelmente a assediavam e se aproximou de mim.
     - Você tem umas ideias bastante enraizadas, senhor Flávio.
     - Poderia dizer o mesmo de você, senhorita Shirley. 
     Fizemos um breve silêncio constrangido. 
     - Quer continuar o debate na lanchonete da esquina? - ela perguntou.
     Pensei ter entendido mal, mas engoli meu espanto e aceitei, gaguejante.
     Conversamos muito naquele dia. E no dia seguinte, depois da aula. Enchi-me de coragem e a convidei para um happy hour na sexta-feira. Para minha surpresa, ela aceitou. 
     Nosso primeiro beijo foi numa sessão de cinema; eu sugeri Luzes da Ribalta (1952), mas ela preferiu Cantando na Chuva. Aquele passou a ser meu filme preferido. Levei-a para casa e nos despedimos com outro beijo. No dia seguinte nos encontramos um pouco sem graça, sem saber muito bem como agir, mas reconhecemos uma vontade mútua de passar o máximo de tempo possível juntos. 
Semanas depois, numa reunião de amigos da faculdade, ficamos sozinhos num quarto depois de alguns drinques... Não foi muito romântico, mas para mim foi mágico. Shirley já tivera uma experiência sexual com um namorado anterior naquela época... me disse depois que eu parecia bem nervoso, mas consegui agradá-la o suficiente para continuarmos nosso relacionamento.  E o sexo, é claro, foi melhorando a cada nova oportunidade. Só muito mais tarde confessei a Shirley que ela tinha sido a primeira mulher da minha vida. Algo muito incomum num homem. Acho que ela se sentiu lisonjeada. 
     
     Shirley me confessou, quando começamos a namorar, que não gostava de Crisóstomo. Achava-o estranho. Notou que, às vezes, ele ficava parado, olhando para o vazio longos minutos, parecendo totalmente alienado. Depois, repentinamente, voltava desses mergulhos introspectivos com alguma piada sem cabimento, totalmente desvirtuada da conversa em pauta. Não dei muita atenção àquelas argumentações, porque me pareceram fruto de uma antipatia gratuita. Mas a verdade é que aquele rapaz me impressionava. Não apenas por sua capacidade intelectual, mas também por suas atitudes surpreendentes. 
      Uma noite fria de inverno, voltávamos de uma farra com alguns colegas. Eu estava ao volante, meio bêbado. Crisóstomo estava no banco do passageiro. Se também tinha bebido, não dava sinais de embriaguez. O interessante é que em nenhum momento ele tinha pedido para dirigir. "Não gosto", tinha comentado uma vez. Preferia confiar a própria vida a um jovem bêbado; uma de suas esquisitices. Mas naquele momento, embriagado e alegre, não pensei no caso. 
     Parei num semáforo. Eram duas da madrugada. "Não pare", ele me disse. "Olhe com cuidado para os lados e atravesse se nenhum outro carro estiver vindo".  Olhei para ele. Estava calmo, olhando para a frente. Eu me preparava para obedecer quando ouvi o baque de alguma coisa na minha janela. Olhei para fora e vi dois homens a pé. Um deles apontava um revólver para a minha cabeça. Apesar do meu vidro fechado, consegui entender a ordem: "quero a carteira! Rápido". Fiquei surpreendido e confuso. Me atrapalhei procurando a carteira nos bolsos das calças. O homem na moto parecia furioso. "vamu logo rapaz! Quer morrer? Passa o dinheiro logo!" Aquela pressão, somada ao álcool que atordoava meus sentidos, só me fez fficar mais confuso. "Obedece, menino! Te estouro os miolos!" Peguei a carteira mas deixei cair embaixo do banco. Sem abrir a janela, me abaixei para pegá-la. Eu ia me erguer de novo quando ouvi uma explosão e um som de vidro estilhaçado. Não conseguia ouvir mais nada. Meus ouvidos zumbiam com o ruído da explosão. Achei que tinha sido baleado, mas não sentia dor. Assustado, ergui a cabeça e olhei para fora. O homem que me ameaçava estava caído, com o rosto desfigurado. Seu parceiro procurava alguma coisa no chão - só podia ser a arma do companheiro.
     "Abaixa". A voz de Crisóstomo foi fria como um bloco de gelo. Mais assustadora do que os assaltantes. Obedeci sem nem mesmo saber o que estava fazendo.
     Outra explosão sobre minha cabeça. Olhei de novo pela janela e vi o segundo bandido, com a arma do comparsa na mão, caindo no asfalto. Virei-me para Crisóstomo. Ele empunhava uma pistola que reconheceria em qualquer lugar: era o mesmo tipo de arma que os nazistas usavam na Segunda Guerra para nos ameaçar nos campos de concentração. Uma Luger 9mm. Fique petrificado, como se tivesse voltado às garras do nazismo. Sem percebeu meu pavor, calmamente, Crisóstomo guardou a arma no bolso da jaqueta. Acho que alguns segundos se passaram, porque ele se virou para mim com olhar indagador: "você vai querer ficar aqui?" perguntou.
     O efeito do álcool passou imediatamente. Acelerei o carro e sumimos dali. Acho que a polícia nunca conseguiu descobrir o que aconteceu, ou simplesmente não deu muita atenção a dois punguistas mortos na grande metrópole. O fato é que nunca fomos incomodados por causa daquela aventura. E eu, bem... eu acabei descobrindo uma característica insuspeitada de meu amigo. Nem sabia que ele andava armado... mas a verdadeira arma era seu caráter; sua violência comedida; sua frieza. 
     Falei com ele sobre aquilo, dias depois. Tomávamos um café num boteco perto da faculdade. "Cris, aquilo não me sai da cabeça. Talvez devêssemos procurar a polícia e contar o que aconteceu. Afinal foi legítima defesa". Crisóstomo me olhou com aqueles profundos olhos negros, adornados por precoces olheiras. Como era seu costume sempre que ia dizer algo importante, ele esperou alguns momentos antes de começar a falar: 
     "Flávio, preste bastante atenção porque só vou dizer isso uma vez: nada daquilo aconteceu. Nada. Ninguém tentou nos assaltar, ninguém morreu... nós nem estávamos ali. Entendeu? Quanto antes você entender isso, melhor para você. Eu já entendi assim, no momento exato em que saímos dali e fomos para casa".
     Sua voz cavernosa e pausada aumentava o impacto do que dizia. Ele tomou um gole de café e prosseguiu:
     "Já leu 'A Arte da Guerra", Flávio? Sun Tzu? Para mim este livro é mais profundo do que 'O Príncipe'. É prático. Ensina como ganhar uma guerra antes mesmo de lutar. O caminho é cheio de armadilhas, mentiras, manipulações... mas se você fizer tudo direito, ninguém morre e a vitória vem até você como algo óbvio, inato, merecido. Finja força quando está fraco. Finja fraqueza quando está forte. Escolha o local do combate. Espione, minta, haja como um traidor sórdido. O que acontece no fim? Você vence. Entendeu? Honra, moral, ética e outras abstrações só servem para te atrapalhar. Tente limpar sua mente pra me ouvir, Flávio, por favor. Vou usar um exemplo que lhe é muito próximo e doloroso, desculpe. Vou falar da Grande Guerra. Hitler fez um monte de regras, mandou eliminar os seus irmãos judeus... criou leis e procedimentos. Uma estrutura completa, uma máquina de extermínio. E milhões de alemães simplesmente obedeceram. Seguiram as regras alegremente, ou apenas se omitiram. Isso é que permitiu a tragédia. Todos têm sangue nas mãos, não apenas o Führer. A obediência cega ao 'status quo', a obediência às regras, foi o que matou milhões de judeus e causou o terror em todo o mundo. A gente tem que questionar, tem que escolher sempre. Mesmo quando todo mundo parece pensar de outra forma. Nosso maior tesouro, meu querido amigo Flávio, é o nosso individualismo. Eu sei, eu sei, você vai dizer que individualismo é egoísmo. Está enganado, meu caro. Se você não se cuida não poderá jamais ajudar ninguém. É como o amor, primeiro tem que se amar. Depois será capaz de amar mais alguém. 
     "Existem dois tipos de pessoas no mundo: as vítimas e os algozes. Escolha o seu lado rápido, meu amigo. Só te digo uma coisa: não ando com vítimas". 
     Fiquei chocado. Um pouco constrangido e até ofendido, mas não pude negar a força atrativa que aquela visão maniqueísta exercia sobre mim. Uma visão simplista, mas que tinha o mérito de aplainar os caminhos para decisões, escolhas, atitudes. Como se o mundo fosse preto e branco. Uma visão sedutora, típica de alguém constituído de pragmatismo e frieza. 

     Frieza... gelo nas minhas veias... a enfermeira injeta algo mais em meu corpo aniquilado. Gelo nas minhas veias, frio. Delírio, angústia, medo. Se pelo menos eu conseguisse uma noite sem pesadelos...


9


     O carro preto acelerou bruscamente. O motorista tentou atropelar Mário, que pulou para a calçada e atirou contra a janela da direita. Quando o carro passou a seu lado, Mário atirou mais duas vezes. Os vidros laterais ficaram esburacados. Mal deu tempo de ver que havia alguém no banco do passageiro. Alguém de cabelos claros. O filme aplicado sobre os outros vidros não permitiu ver mais nada de relevante. O motorista acelerou ainda mais e fez os pneus cantarem numa curva à frente. Mário ainda deu alguns passos adiante, e apontou a arma novamente. Mas desistiu, o sujeito - ou sujeitos - já estavam fora de alcance. Apesar da rapidez com que tudo aconteceu, o inspetor conseguiu memorizar a placa, embora tivesse quase certeza que era clonada. De qualquer forma, valia investigar. 
     O que teria motivado seu perseguidor? Haveria ligação com o caso do juiz? Muita coincidência um fato pouco usual como aquele acontecer logo depois dele assumir a investigação do atentado. E Mário tinha deixado de acreditar em coincidências há muito tempo. 
     O mais importante era avisar Julia da situação e pedir segurança para ela. Os ocupantes do carro sabem onde ela mora e devem ter deduzido que ela estava a par de toda a investigação. Mário entrou na viatura e dirigiu até o orelhão mais próximo. Discou o número da escrivã. Um toque. Dois... "atenda logo, Julia". 
     - Julia.
     - Fui seguido saindo da sua casa. 
     - Mário? Quem estava atrás de você?
     - Não sei mas desconfio que tem ligação com o atentado no fórum. Tranque a porta e não abra pra ninguém. Vou mandar o Lima ou o Bittencourt pra sua casa. 
     - Eu sei me cuidar, chefe.
     - Não vou nem discutir isso.
     Depois de ligar para pedir que Lima fosse com urgência para a casa de Julia, Mário foi direto para a delegacia. 


Sábado, 14 de setembro de 1991, 20h30

     _ Vamos lá, inspetor. O que tem pra me relatar?
     O humor do delegado Afanásio não estava dos melhores. A seu lado, o  doutor Herculano deu um significativo resmungo, quase um rosnado.
     _... Para "nos" relatar? - corrigiu Afanásio, olhando para o delegado do G.O.E.
     - Não muito - respondeu Mário, atirando uma de suas inseparáveis pastilhas de menta na boca. Sempre que se sentia acuado, a vontade de fumar quase o sufocava. Aquelas pastilhas eram a válvula de escape há três anos, desde que decidiu largar o antigo vício. Agora, só tinha medo de ficar viciado naquelas pastilhas. 
     - Encontrei cadernos e extratos bancários nas mesas do juiz que sofreu o atentado a bomba. No Fórum e na casa dele.
     - Ah, você foi lá? - Interrompeu Herculano.
     - Sim.
     - E falou com alguém da família?
     - Não tinha ninguém lá na hora. 
     - E como conseguiu a documentação?
     Mário sentiu a pressão. Mas manteve a naturalidade e resolveu dizer o que realmente tinha acontecido.
     - Fiz uma inspeção rápida no escritório privativo do juiz. Este caderno e alguns extratos estavam guardados num fundo falso, exatamente igual ao que existia na mesa que ele usava no fórum. 
     - Você pegou documentos sem autorização? - protestou Herculano. Afanásio, acostumado aos métodos nem sempre ortodoxos do subalterno, limitou-se a olhar para o alto, com expressão de desalento: "já vi esse filme", pensou o delegado jordanense. 
     - São parte da investigação - respondeu Mário sem se abalar. 
     - Mas você pediu para alguém? Ou foi simplesmente pegando o que queria?
     - Doutor Herculano, na atual situação, o senhor gostaria de saber o que são esses cadernos e papeis, ou prefere que fiquemos discutindo a legalidade dos meus atos?
     Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Mário sustentou o olhar irritadiço do delegado do G.O.E. Sem esperar resposta, prosseguiu:
     - Esta caderneta com o pequeno cadeado, bem aí à sua frente, contém uma série de nomes e números relacionados. Os nomes não oferecem nenhuma grande dificuldade de interpretação. São de réus de processos em que o juiz Flávio foi o encarregado da sentença. Os números, depois de averiguações, revelaram-se de contas secretas em bancos no exterior. 
     Mário fez uma pausa para assimilar o efeito de suas revelações para os dois delegados. Afanásio mostrou vivo interesse. Herculano, talvez ainda regurgitando o ar desafiante daquele policialzinho do interior, não alterou sua expressão nem um milímetro. Com a mão sob o queixo, olhava para os documentos sobre a mesa à sua frente.
     - Este caderno estava no fórum. Esta caderneta vermelha - Mário pegou o objeto da mesa e exibiu aos superiores -  tem anotações parecidas com as do caderno, porém mais reveladoras. São nomes de instituições financeiras ligadas a números. A escrivã Júlia fez o cruzamento dos dados do caderno e da caderneta, e notou que as anotações do primeiro estão relacionadas às da segunda. Os extratos que têm diante da vista corroboram essa interpretação. Os depósitos registrados nesses papéis mostram um saldo de 300 milhões de dólares em diferentes bancos. O último registro é do mês passado. 
     A informação quebrou as defesas do delegado Herculano. Ele levantou os olhos da mesa e fitou o inspetor. Afanásio deixou transparecer seu espanto.
     - 300 milhões?? - balbuciou, incrédulo.
     - ...E uns quebrados... - acrescentou Mário.
     - O que o senhor está sugerindo, inspetor? inquiriu Herculano.
     - Não estou sugerindo nada. Estou narrando os fatos. Esse grupo de documentos foi encontrado em lugares de uso privativo da vítima do atentado. Na impossibilidade de interrogar o juiz, ainda em coma induzido, resta a nós descobrir se isso tem alguma coisa a ver com a explosão no fórum. De qualquer forma, tem gente interessada nesse caso. Tenho certeza que quem me perseguiu hoje entre Jaguaribe e Capivari estava atrás disso.
     - E como pode afirmar? - perguntou Herculano. 
     - Porque coincidências não existem.
     - Então sua certeza se baseia nesta sua filosofia simplista?
     - ...E na minha experiência profissional. Escute, doutor. Campos do Jordão é um lugar tranquilo. Em noventa por cento dos casos, lidamos com punguistas, brigas de casal, embriaguez ao volante e perturbação da paz. Não me lembro da última vez em que fui seguido nesta cidade. Então tentam mandar um juiz pelos ares e logo depois alguém me segue num carro preto, modelo bacana, rápido e potente. Garanto ao senhor que isso não tem nada a ver com nenhum outro caso que estou investigando.
     - O bom senso manda cautela antes desse tipo de conclusão, inspetor. 
     Mário se calou. Não adiantava discutir aquilo. 
     - Vou pedir a um perito que analise esses papéis que você nos trouxe, inspetor Mário. Para mim não está claro que isso tenha algo a ver com o atentado. Acredito que foi uma vingança, pura e simples, orquestrada por algum condenado. Doutor Afanásio - disse, virando-se para o colega de Campos do Jordão - montei uma equipe para investigar esse caso, ligada diretamente a mim. São policiais experientes, que conhecem muitos dos principais criminosos condenados pelo doutor Flávio. Eles estão passando um pente fino nos processos em São Paulo, última praça de atuação do juiz, antes de vir para cá - e também o lugar onde ele colecionou mais "inimizades". Vamos trocar informações, o seu time e o meu.
     - Nós estamos analisando alguns processos do juiz aqui em Campos do Jordão - disse Afanásio - mas não estou otimista. Como o inspetor disse, aqui a nossa rotina é bem menos violenta. De qualquer forma acho bom não deixarmos nenhuma ponta solta. 
     - Antes de terminarmos essa reunião, gostaria de pedir que me comunicassem todas as medidas que pretendem tomar neste caso. - O delegado Herculano olhou diretamente para Mário - "Antes" de serem tomadas, para que possamos discuti-las e avaliar sua conveniência.
     Mário não respondeu. O delegado Afanásio garantiu que assim seria feito. 
     Um rápido aceno de cabeça encerrou o encontro. Herculano foi até a porta, onde seu auxiliar magrelo o esperava. Antes de sair, lançou um último olhar para o inspetor, com visível mau humor. Bateu a porta ao se retirar. 
     Afanásio foi objetivo:
     - Como percebeu, inspetor, estamos sob tutela. A situação não me agrada nem um pouco. Mas diante da proeminência da vítima, não temos como escapar disso. Portanto, cabe a nós evitar transtornos indesejáveis. Acha que consegue trabalhar em equipe dessa vez? Não quero ter que ordenar isso. Espero sua colaboração voluntária.
     Mário olhou para o chefe com o mais inocente dos suspiros. 
     - Mas eu não colaboro sempre? - disse, com um sorriso discreto.
     Afanásio nem respondeu. Dispensou o subalterno.
     Antes de sair, Mário checou o fax. Havia um resultado para a placa do carro preto. Apesar das buscas na cidade, ninguém encontrou o veículo depois do ocorrido. Simplesmente desapareceu. Mas as informações impressas no papel eram bastante interessantes. Quem sabe, não seriam uma pista?

PLACAS: XE-3456
VEI. MOD.: CHEVROLET KADETT GSI 2.0
COR: PRETA
PROPRIETÁRIO: (aparecia o nome de um conhecido traficante)
VEÍCULO APREENDIDO PELA POLÍCIA CIVIL EM OPERAÇÃO ANTI-DROGAS, ENVIADO AO PÁTIO DO DENARC - SÃO PAULO.


    Aquilo era interessante. Mário foi perseguido e quase atropelado por um carro que, ao que consta, deveria estar no pátio da polícia em São Paulo. Placas clonadas? Ou será que a resposta não era tão simples assim?
     Como aquele carro foi parar em Campos do Jordão? 
     Mário dobrou o papel do fax e guardou no bolso. Ligou para Julia. Ela estava bem. Lima estava com ela.
     - Desnecessário isso, Mário.
     - Não vou discutir, Julia. Os caras estavam de plantão na frente da sua casa. Podem voltar. Fique atenta.
     Depois de desligar, Mário olhou para o relógio. Quase dez da noite. O jantar em família estava descartado. O policial olhou para o céu repleto de estrelas. Não importava o quanto a situação estivesse tensa: aquele céu montanhês sempre tinha o dom de acalmá-lo. 
     Hora de descansar um pouco com a família. Assim esperava, pelo menos. 
     Mas os planos do inspetor foram interrompidos antes mesmo dele chegar à porta da delegacia.
     - Inspetor! Espere! Telefone pro senhor. 
     - Quem é, Dias?
     - O perito encarregado da investigação do fórum. 
     Aquilo despertou seu interesse imediatamente. Mário tinha pedido ao especialista que lhe avisasse de qualquer fato relevante, antes mesmo de concluir o relatório oficial da perícia. 
     - Mário Russo.
     - Oi inspetor. Acho que tenho um fato aqui que vai te interessar. Identifiquei o explosivo usado na bíblia.
     - Fale.
     - Eu achava que era dinamite ou algum explosivo caseiro à base de amônia. Tava enganado. É RDX. Também detectei um plastificante, usado pra estabilizar o efeito do explosivo. 
     Mário ficou surpreso. Aquele material não era fácil de conseguir. É muito usado no meio militar. Estável em estocagem, o que deve ter contribuído para a escolha. 
     - Algo sobre o detonador?
     - Encontrei resíduos de espoleta elétrica. Foi acionada quando o juiz abriu a bíblia e detonou o RDX. 
     - Simples e engenhoso - comentou Mário, mais de si para si do que para o perito.
     - Você tinha razão, pelo jeito. O trabalho não me parece coisa de amador não. 
     - Se descobrir mais alguma coisa me avise. Obrigado.
     Mário desligou, pensando no quebra-cabeça que tinha em mãos. As peças aparentemente não se encaixavam. Contas secretas, uuma fortuna no exterior, um explosivo militar, um carro que deveria estar apreendido circulando pela cidade. Para onde aquilo tudo iria levá-lo?
     O explosivo também abria campo para elucubrações. O criminoso quis a máxima eficiência, por isso não se contentou com uma bomba caseira feita de fertilizante ou um explosivo de poder inferior. Ciclonita, mais conhecida como RDX. Uso militar e também em demolições. Acesso restrito. Bastante específico. 
     Mário viu que o escrivão Dias ainda estava na delegacia, com pastas e mais pastas de processos em desalinho sobre a mesa, olhos cansados. 
     - Algum indício nos casos do juiz aqui em Campos do Jordão, Dias?
     - Até agora nada que chame a atenção, inspetor. Casos pequenos, como os que estamos acostumados. O mais das vezes são denúncias por atraso de pensão alimentícia, violência doméstica e um ou outro caso de furto a residência de turistas... Ninguém nessa papelada toda parece ter o perfil de um homicida sanguinário.
     - Algum sinal do carro preto?
     - Nenhum, chefe.
     - Vá pra casa, Dias. A jornada foi longa. 
     - Boa noite inspetor.
     Tudo que Mário queria era fazer o mesmo. Dar um beijo na filha, ficar um pouco com a família. Mas não conseguiu evitar um último pensamento para Julia. A segurança dela se tornará uma obsessão para ele depois do que aconteceu.
     Sem conseguir se tranquilizar totalmente mesmo sabendo que Julia não ficaria sozinha, acabou se convencendo de que não poderia fazer muita coisa mais. E tomou o rumo de casa.
     O endereço, onde morava desde que nasceu, não era muito longe da delegacia. Ficava no mesmo bairro Abernéssia, um quarteirão acima da igreja Matriz de Santa Terezinha. O imóvel tinha sido construído numa rua sem saída, pequena e discreta. A casa foi construída pelo pai de Mário praticamente sem a ajuda de ninguém, com as próprias mãos. Nos primeiros anos não passava de uma casinha de madeira, com um único quarto, uma pequena sala, cozinha e banheiro. O terreno, espaçoso, tinha sessenta por cento da área livres, ocupados apenas por canteiros de flores, um limoeiro e um belo arbusto de azaleias. Dividindo-se a propriedade em quatro partes, a casa propriamente dita ocuparia pouco mais que o primeiro quadrado, ao leste, na parte superior do terreno. O lote se assentava em declive acentuado, como é comum em vários imóveis da montanhosa estância turística. Com a morte dos pais, Mário herdou a casa. Aos poucos, com muito esforço, foi fazendo reformas e ampliações. Construiu mais um quarto, fez uma área de serviço, trocou a madeira por blocos de concreto na parte frontal da moradia. Tudo isso era acessado por uma rampa de concreto que saía do portão e subia corajosamente os 50 metros de lado do terreno, dando acesso à parte residencial da casa. Embaixo ficava a garagem e um velho porão de terra batida. Apesar das numerosas reformas o quarto que Mário usava quando criança ficou intocado, exatamente como era. Uma espécie de monumento ao trabalho do pai.Passou a ser usado para guardar alguns álbuns antigos de fotografias, livros em caixas empoeiradas, objetos que não são mais usados mas que por algum motivo acabamos entulhando em casa.  Depois de se casar, as necessidades de ampliação do imóvel foram aumentando à medida que a família crescia. O conforto dos três filhos foi garantido a duras penas. Mas valeu o esforço.
     Atrás da casa abria-se uma extensa campina que subia num ângulo de 45 graus por mais de dois quilômetros, fechando pelo menos mais duas ruas paralelas à da família de Mário. Um muro de concreto de uns três metros de altura, encimado por cacos de vidro e pontas de ferro, separava a casa da campina ao fundo. Na parte de cima, o muro fazia limite com uma horta de um vizinho, repleta de pés de milho e pontuada de canteiros de verduras. Alguns pinheiros margeavam a rua nos últimos cem metros, coroando o cenário com uma beleza tipicamente jordanense. Um lugar agradável, que Mário sempre teve o cuidado de manter longe de sua rotina profissional. O investigador vivia em dois mundos: um deles, o lar, agradável, acolhedor, harmonioso dentro do possível, onde a violência não tinha lugar. O outro, o trabalho, em que frequentemente o universo de lares precários, pobreza, violência e maldade mostrava suas garras viscosas, cortantes como punhais. O difícil era se equilibrar sobre esses dois ambientes. A corda sempre balança perigosamente. Mas uma coisa era certa: aquela moradia era o Porto Seguro da sanidade do policial. Sem ela, tudo o que restaria em sua vida seria um mundo sombrio e perigoso.
     Mário deu duas voltas pelas ruas próximas antes de entrar na rua onde morava. Certo de que não foi seguido, estacionou na garagem. Apenas uma tênue luz de abajur aparecia pela janela da sala. Todos deviam estar deitados, talvez já dormindo. 
     Abriu a porta que ligava a varanda à sala e entrou silenciosamente. Viu Natália no sofá, com os pés sobre o estofado e um livro aberto sobre os joelhos. Lia à luz do abajur. Quando viu o pai, sua expressão se suavizou num sorriso. 
     - Oi pai. Chegou tarde.
     - Trabalho. Tudo bem?
     - Sim. 
     - Cadê o povo?
     - Rogério foi dar um giro com uns amigos. Paulinho e mamãe dormindo. 
     Mário ficou um pouco preocupado com o filho adolescente circulando pela cidade àquela hora. Ainda mais depois do que aconteceu mais cedo. Mas resignou-se... 
     - Tá sem sono?
     - Gosto de ler até tarde.
     Mais uma semelhança entre ele e a filha.
     - Qual o da vez?
     - Crime e Castigo. Relendo, na verdade. 
     Uns segundos de silêncio. 
     Natália percebeu a fisionomia apreensiva do pai. Logo deduziu que o dia tinha sido difícil.
     - Tudo bem no trabalho?
     - O de sempre, Nat. Alguns percalços, alguns desafios novos... algumas preocupações...
     - Quer falar sobre?
     - Com a filha ou a jornalista? - perguntou, zombeteiro.
     - E dá pra separar uma coisa da outra? Natália riu.
     - Não é nada demais. Coisas da profissão. Não vá dormir muito tarde.
     Mário beijou a testa da filha e se voltou para a porta do quarto onde Sueli provavelmente já ressonava pacificamente. 
     - Ninguém está acima do bem e do mal.
     - Como é, pai?
    - O Raskólnikov não entendeu nada. O fato de se considerar um super homem não lhe dá a licença pra cometer um crime. Nem Napoleão teria uma licença dessas... Ninguém está acima da lei, filha. 
     Natália olhou para o livro que tinha em mãos.
     - ... Disse o homem que aplica a lei quando os caras tentam ficar acima dela - comentou, com um sorriso malicioso na boca.
     O inspetor retribuiu o sorriso e entrou no quarto.



     - Que horas são, Mário?
     - É tarde, Su. Volte a dormir.
     Mário olhou pela janela do quarto. Viu pálidos reflexos da luz da rua, dançando em sombras de árvores balançadas por uma leve brisa. Foi como o toque de uma babá embalando um sono infantil. Mário ouviu quando o portão da rua foi aberto. Ficou apreensivo, mas logo reconheceu os passos do filho, voltando da farra com os amigos.  Respirou tranquilizado. 
     - Não consegue dormir, inspetor? - perguntou Suely, aproximando o corpo do marido. Ele notou que ela usava uma blusinha de renda e um minúsculo short, que ele adorava. Mário a beijou na boca. Afastou o shortinho com os dedos e tocou a esposa. Ela já estava úmida e quente. Ele brincou com o sexo dela. Ela suspirou e gemeu. 
     - Falei pra você dormir - disse em tom jocosamente ameaçador. - Agora, vai ter que ser castigada pela sua desobediência. 
     A esposa soltou um risinho malicioso e beijou Mário novamente, com vontade. Suas línguas brincaram por um longo tempo. Os lábios dela estavam quentes e macios. ”Eles estão na casa, Su, e se ouvirem alguma coisa?" perguntou. "Vou tentar ficar bem quietinha", respondeu Suely, sedutora. Mário afastou o short dela um pouco com os dedos e beijou o sexo da mulher. Ela se contorceu e gemeu baixinho. Mário usou os dedos de novo, para expor o clitóris e acariciá-lo com a língua. Suely gozou quase que imediatamente na boca dele. “Agora é minha vez”, ela disse baixinho, e se colocou sobre o corpo do marido, beijando seu pescoço, seu peito, descendo com a língua até o umbigo e acariciando a cabeça do pênis dele com os lábios. Depois enfiou o membro todo na boca. Estava duro, pulsante de tesão. Mário segurava a cabeça de Suely e sorvia cada gota de prazer daquela carícia. Ele nem tirou o short de Suely da primeira vez que a penetrou. Os dois se uniram debaixo dos cobertores, com uma excitação aumentada pelo medo de que os ruídos do sexo denunciassem o que estavam fazendo para os filhos. Isso aumentou o prazer. Suely se contorcia, colocava o dedo na boca para sufocar os gemidos enquanto Mário metia, primeiro com força e rapidez, depois lentamente, sentindo cada pedaço de seu sexo penetrar a carne quente da mulher. Ficaram no jogo sexual por muito tempo, gozaram até que Suely adormeceu, cansada e satisfeita. 
     Mário tentou se desconectar da realidade, mas só conseguiu dormir por alguns minutos quando os primeiros raios de luz já incidiam entre os vidros da janela. Adormeceu pensando que apesar de toda maldade de que o ser humano era capaz, ainda havia momentos que faziam tudo valer a pena. 

     O domingo seria um dia de descanso numa situação normal. Mas o caso do juiz estava exigindo o máximo de todo mundo, e Mário não podia esperar até segunda-feira para tomar algumas providências. Apesar da urgência do trabalho que tinha pela frente, porém, decidiu se impor alguns momentos agradáveis com a família. Sabia que decisões como aquela é que tinham mantido seu casamento até ali. 
     O café da manhã foi divertido. Natália, bem disposta como sempre. Suely, descansada. Rogério, com grandes olheiras de pouco sono.  Paulo, entretido tentando irritar o irmão mais velho com migalhas de pão atiradas com boa pontaria. 
     A temperatura amena, a despeito do céu absolutamente azul e do sol radiante, deixou tudo ainda mais envolvente. Sobre a mesa, uma pequena nuvem de vapor se soltava do bule de café. As torradas exalavam um perfume tentador. No rádio, um pouco de música pop. Mamonas Assassinas, para delírio de Paulo, que fingia cantar a música com a mão no peito e uma expressão aparvalhada. "Vocação pra comediante, o meu caçula". Uma benção nos dias em que a tensão da delegacia teimava em acompanhar Mário até a porta de sua casa.
     O ambiente estava tão sedutor que, por alguns minutos, Mário se esqueceu do carro preto que tinha tentado atropelá-lo na véspera. "Quem quer que estivesse dentro do carro, não esperava uma reação como a minha. Caso contrário, teria atirado de volta quando atingi o parabrisa. Mas já estou pensando no caso novamente"... Mário se condenou assim que notou o olhar sério de Suely e Natália. As duas pareciam ler seus pensamentos. 
     O detetive pegou uma casquinha de pão e, sem pensar duas vezes, a atirou contra Paulinho. O menino ficou surpreso. Abriu muito a boca e arregalou os olhos. Sua hesitação deu tempo para que Mário o atingisse mais uma vez. Mas logo o garoto se recompôs e mudou de alvo, atirando migalhas contra Mário. Em instantes, todos estavam envolvidos naquela pequena guerra. O mal estar de pouco antes havia desaparecido. Até Rogério, de mau humor, acabou participando da brincadeira.
     Mais tarde Mário ligou para um amigo lotado no Denarc da capital, e pediu que ele verificasse o Kadett preto que deveria estar no pátio mas, como ele bem sabia, não estava.
     Depois, ligou para Júlia. Ela estava bem. Lima ainda estava lá.
     - Ele passou a noite aqui. Contra minha vontade. Mandei ele embora várias vezes, mas o covarde me falou que, se era para desobedecer uma ordem sua de ficar aqui e me proteger, então era melhor eu atirar logo nele, já que era isso que você ia fazer assim que o encontrasse.
     Mário sorriu. Era bem capaz de uma atitude dessas, se alguma negligência resultasse em risco para qualquer um de seus subalternos. "Principalmente Julia", admitiu em silêncio, pensativo.
     O dia transcorreu sem novidades. Mário aproveitou o tempo livre com os filhos, até que Rogério saiu com uns amigos, Paulo foi jogar bola, e Natália se recostou no sofá, quieta e compenetrada, com o Dostoiévski na mão. 
     Quase no fim da tarde o policial de São Paulo ligou para Mário.
     - A papelada diz que o carro tá aqui no pátio, como deveria. Mas, adivinha: fui conferir e vi que não tá. 
     - Já esperava algo assim. Quem controla a entrada e saída de veículos apreendidos?
     - Quatro escrivães se revezam nesse trabalho. Mas até onde eu sei, estão limpos. 
     - Bem, ou um deles cometeu um erro, ou foi conivente com uma saída irregular de um dos carros.
     - Também pode ser que algum policial resolva contornar a burocracia, retirando um carro sem passar pelos procedimentos. Os escrivães não ficam no portão verificando o entra-e-sai físico dos carros, só cuidam da burocracia. Não teriam como flagrar algum policial pegando algum carro bacana "emprestado", pra dar um giro, impressionar alguma mulher...
     -... ou tentar matar alguém... Mário pensou em voz alta.
     - Mário, vai me dizer do que se trata?
     - Vou... mas não hoje. Devo ir logo para São Paulo. Aí te aviso, a gente marca uma cerveja e te conto tudo. Relate o extravio do carro ao delegado-chefe do Denarc, oficialmente. Vamos ver se algum dos escrivães estrila, sob pressão.
     - Combinado.
     Mário estava com o gancho do telefone a poucos centímetros do aparelho quando viu que Natália o espiava, com olhar condenatório.
     - Foi só uma ligação. Já parei de trabalhar.
     Natália sorriu. Os dois ficaram conversando sobre livros, jornalismo, faculdade, a vida na Capital... até bem tarde da noite.

10

     Segunda-feira, 15 de setembro de 1991.

     Natália pegou o ônibus das seis da manhã para a Capital. Mário a acompanhou até a rodoviária e arrancou a promessa de que ela voltaria logo para a montanha. 

     Uma suave neblina se espalhou pela paisagem enquanto o ônibus se afastava do terminal. Algumas luminárias ainda acesas davam um tom fantasmagórico às arvores e aos poucos vultos que já se movimentavam pela rua àquela hora. A névoa fracionava a luz, transformando-a, deixando-a porosa e densa, como se fosse palpável. Mário sempre gostou do efeito que a neblina causava nas coisas. Deixava tudo mergulhado num universo feérico. Aquele ambiente o ajudava a esquecer um pouco as agonias do mundo e lembrar que ainda existia beleza.
     A duzentos metros da rodoviária havia uma padaria. Mário resolveu caminhar até lá. Deixou a viatura estacionada e foi andando, passos lentos, o ruído dos sapatos sobre o concreto da calçada ecoando solitário numa via sem outros barulhos. A caminhada revigora, quase tanto quanto o sono. 
     A padaria já estava aberta. Mário entrou, pediu café com leite e pão com manteiga. Rafael, o balconista, o atendeu com um sorriso. Ele gosta de Rafael, um rapaz sempre de bom humor, não importa quão cedo comece a trabalhar. 
     -Novidades? - quis saber Mário.
     - Tudo normal, doutor - Rafael se acostumou a chamar Mário de doutor, apesar das insistentes broncas que levou por causa disso. Não houve como abandonar o hábito, e Mário acabou se resignando com o tratamento indevido e desnecessário.- Só estamos todos preocupados com o doutor Flavio. Que coisa horrível. O senhor sabe como ele está? 
     - Lutando pela vida em São Paulo.
     
     
                                                                   Interstício IV

     

     Está cada vez mais difícil separar realidade de devaneio. Ontem de hoje. 
     Os mergulhos no passado estão se tornando reexperiências, revisitações... como viver de novo. Acho isso um consolo. Melhor do que limitar minha consciência a esse quarto de hospital, os sons, cheiros ampliados por uma sinestesia doente e incômoda. Minha viagem por memórias enterradas fundo no inconsciente, é uma fuga adequada. 
     É como se eu tivesse o jovem Crisóstomo ao meu lado neste momento, ajeitando os óculos grossos, carregando os livros debaixo do braço, com aquela camisa amassada e as calças maiores que ele. 
     Naqueles dias meu sotaque alemão estava muito mais forte do que hoje em dia. Isso me rendeu alguns contratempos com gente que não conseguia separar um alemão do outro, e só enxergava nazistas em qualquer germânico - até os não alemães. Mesmo depois da guerra, mesmo eu tendo estado entre as vítimas daquele regime maldito. As piadas e agressões paravam quando eu mostrava os números tatuados no meu braço esquerdo. Sim, idiota, um alemão pode ser um judeu. Sim, idiota, um alemão pode não ser um assassino. Divertia-me ao ver os olhos constrangidos desses agressores quando se davam conta da injustiça que estavam cometendo. Eles sim, eram muito parecidos com os opressores do Reich.
     Crisóstomo, apesar da compleição física mirrada, era muito mais violento do que as pessoas imaginavam. Acho que apenas eu tinha uma pequena noção desta faceta de sua personalidade, disfarçada sobre toneladas de fleuma. E como ele sabia que, invariavelmente, levaria a pior se lutasse de igual para igual, apelava para os mais sujos truques e traições. Atacava pelas costas, usava a inteligência muito mais do que a força. Usava o poder do convencimento para destruir os inimigos, fazendo com que todas as pessoas à sua volta comprassem suas antipatias. Eu desconfiava que se isso não funcionasse Crisóstomo não hesitaria em usar da violência - sabia bem que ele era capaz disso. Ao mesmo tempo, mantinha-se na surdina, evitava a visibilidade, tentava passar despercebido. Parecia encontrar refúgio no anonimato. 
     Lembro-me de um professor que resolveu perseguir Crisóstomo. Humilhava-o em sala de aula, rejeitava seus trabalhos por mais perfeitos que estivessem, punia-o com notas medíocres. “Por que não o denuncia à reitoria?”, perguntei. “Não é assim que faço as coisas”, respondeu Crisóstomo. “Não quero criar um inimigo consciente da minha existência, que venha a me perseguir também fora do ambiente acadêmico. Isso aqui é uma piada, Flávio. A vida real está lá fora, e é ela que importa”. Passados alguns dias, o tal professor foi desligado discretamente do corpo docente. O motivo oficial foi uma aposentadoria precoce, mas corria o boato de denúncias de assédio sexual e uso de drogas. Algumas substâncias ilegais teriam sido encontradas na sala do professor, depois de uma informação anônima passada à segurança da faculdade. Nada ficou comprovado mas o professor achou melhor sair do que se submeter à exposição de uma sindicância constrangedora. 
     Crisóstomo nunca me disse se teve algo a ver com aquilo. Apenas sorriu quando perguntei. Um sorriso confirmador, na minha opinião.  
     Minha vida estava centrada no ambiente estudantil. Lá adquiria conhecimento, dividia o tempo com minha namorada também estudante, e trocava ideias com meu estranho amigo. Costumávamos nos reunir com outros alunos para jogar cartas, beber (menos Crisóstomo, que se contentava com um refrigerante ou um suco nessas reuniões. O único vício do meu estranho amigo era o cigarro, do qual não parecia interessado em se livrar) e debater os problemas do mundo, como se tivéssemos a solução para todos eles. 
     Eu, Crisóstomo, um veterano do último ano de medicina na Usp, Gustavo; Felipe, outro estudante de direito; Ricardo e Alcebiades, estudantes de jornalismo na Cásper Líbero. 
     Tínhamos nossas histórias, aptidões e talentos. Cada um se imaginava um pouco o líder do grupo. Mas olhando à distância no tempo, com a perspectiva que só o futuro nos entrega, fica evidente que o verdadeiro líder daquele bando era Crisóstomo.
     Com seu jeito calmo de ouvir os outros, como se estivesse muito interessado em tudo que lhe fosse dito, Crisóstomo conseguia identificar pequenos vacilos, incoerências, sofismas... e usava aquilo contra nós sem piedade durante os debates. Curiosamente, nas interlocuções ele agia como nas brigas: usava o que tinha à mão. E acabava nos convencendo. Não sei se naquela época ele já sabia o que ia fazer da própria vida, mas às vezes tenho a impressão que Crisóstomo já tinha o plano todo traçado, desde antes de nos conhecermos. 

     A enfermeira entrou de novo no quarto. Verifica a agulha presa ao meu braço. Isso dói, mas não consigo articular uma reclamação. Ela desliga a TV que Shirley esqueceu ligada ao sair do quarto, depois de uma breve e triste visita. Por que não deixa a TV ligada? Seria uma distração. Sim, eu posso assistir à TV, mesmo com os olhos fechados. Eu vejo tudo, sinto tudo à minha volta. Sinto, acima de tudo, o frio.




11


Ribeirão Preto, anos 1940


     A mansão dos Valadares estava repleta de gente naquela noite. Muitos nomes importantes do governo se encontravam na sala de recepção, onde uma pequena orquestra de cordas e piano entretinha a todos com música de qualidade, maculada apenas pelo burburinho das conversas e risadas. 
     Todos elegantemente vestidos: os homens de black tie, as mulheres em deslumbrantes vestidos de noite com fendas generosas nas coxas e decotes ousados, enfeitadas de joias brilhantes em gargantilhas, pulseiras, brincos e anéis. Muito brilho.
     Um dos grupos mais disputados é justamente em torno do Ministro da Fazenda. Souza Costa é político de longa carreira, desde 1930 à frente da pasta sob a batuta de Getúlio. Homem de muita perspicácia e poucos cabelos; acima do peso como manda a cartilha de um bom político; tão preso ao cargo que mais parece um regente por direito divino do que um assessor sujeito aos humores do chefe de Estado. Nessa década de poder, se fez respeitar. Os olhos vivos e penetrantes intimidam adversários e fascinam aliados. 
     À volta de Souza Costa circula uma legião de puxa-sacos. O dono da casa entre eles, talvez o mais dedicado de todos. O Comendador Valadares sabe a importância de cultivar as amizades certas. Nasceu no que se usa chamar de "berço de ouro", e nem por isso descuida das relações lucrativas ou desperdiça as oportunidades. Entre canapés com caviar e taças de champanha, vai jogando sua rede a fim de pescar o grande tubarão à sua frente. 
     - Estou honrado com sua presença, Ministro. Por um momento achei que não desfrutaria do prazer de sua companhia nesta noite festiva. 
     - Eu disse que vinha, não disse, Comendador? Costumo cumprir minhas promessas.
     - Certamente, Ministro, certamente, longe de mim desconfiar da vossa sinceridade. Está bem servido? Gostaria de alguma coisa?
     Um leve tom de enfado se desenhou no rosto do político, aborrecido com tantos rapapés. Limitou-se a levar a taça à boca e olhar em redor, como quem procura uma rota de fuga. 
     - Se depois Vossa Excelência dispuser de alguns minutos, gostaria de um breve particular. Assunto de seu interesse, tenho certeza.
     O mau humor foi crescendo nas entranhas de Souza Costa, como uma bola de esterco quente. Ele já sabia que aquilo seria inevitável. O Chefe tinha pedido: "seja gentil com o Valadares! Ele pode ser útil para nosso projeto de governo, tanto financeiramente como politicamente". E como discutir uma ordem do "Pai dos Pobres"? Por isso aceitou comparecer a esta monótona recepção nesta cidade quente e afastada do Centro do Poder no Rio de Janeiro. Ossos do ofício...
     O "particular" se deu quando já era alta madrugada, na biblioteca da Mansão.
     - Vossa Excelência certamente sabe que isso de querer transformar direitos trabalhistas em lei, que Sua Excelência o Presidente vem discutindo... bem... certamente terá um impacto muito forte para todos nós, empregadores de mão de obra. E o que será do povo trabalhador sem a gente para lhes pagar os salários, não é mesmo? Mas se vier um pacote muito pesado, e o empresariado falir, como fazer? Creio que o senhor sabe que há um risco social muito grande se o empresariado quebrar por causa de leis trabalhistas...É uma decisão que o Presidente precisa avaliar com muito cuidado.
     - Tenha certeza, Comendador...
     O Ministro esboçava uma resposta e Valadares começava a se empolgar dentro da vasta biblioteca, quando a porta se abriu. Uma figura minúscula, de cabelo desgrenhado, pijamas e um urso de pelúcia no braço apareceu.
     - Não consigo dormir, papai.
     Irritado com a interrupção do filho, Valadares pediu desculpas ao Ministro, levantou-se da confortável poltrona em que estava e quase voou em direção à porta. 
     - O que diabos você pensa que está fazendo, Crisóstomo?- Ralhou ele, agarrando firmemente o braço do filho e puxando-o para longe da biblioteca, aos sacolejos. Valadares encontrou uma garçonete e lhe entregou a criança:
     - Leva esse traste para o quarto agora mesmo! Ou entrega para a mãe! Onde está aquela bêbada agora? Provavelmente entretendo algum dos meus convidados de uma forma mais íntima. Enfim, tira esse moleque da minha frente e tranca ele no quarto. Não posso ser incomodado, estou numa reunião importante. 
     A garçonete tomou Crisóstomo pela mão. O menino sentia o braço pegando fogo depois do apertão que levou do pai. As marcas dos dedos do agressor ficaram impressas na pele roxa. Lágrimas obstruíam sua visão já prejudicada pela miopia, enquanto era conduzido escada acima de volta ao quarto. Já na cama, sob a luz da janela entreaberta, fitou longamente as sombras que se desenhavam no teto. Não compreendia por que o pai era tão distante e inalcançável. Por que não dispunha do consolo da mãe num momento de frustração como aquele? Tudo o que queria era um pouco de carinho enquanto tentava dormir. Sabia que o Comendador Valadares era um homem importante, a mãe lhe dizia isso sempre que tinha chance. Sabia que era um homem ocupado... mas por que não podia receber um pouco de afeto do pai? Está certo que desde que se entende por gente nunca lhe faltou nada material. Sempre teve as melhores roupas, os mais caros brinquedos, uma série de confortos e regalias. Muita gente para satisfazer suas vontades e aguentar suas traquinagens - os empregados da cozinha são suas vítimas favoritas. Mesmo assim Crisóstomo não consegue se livrar da sensação de vazio. E quem eram aqueles homens de roupa preta que tanto prendiam a atenção do Comendador? Sem entender a natureza das coisas, invejou-os. Eles dispunham do convívio do seu pai quase todo o tempo, horas a fio, todos os dias... em festas, conversas na biblioteca, almoços dos quais "criança não pode participar"... enquanto a ele, que era o filho, pouco ou nada sobrava do tempo paterno.
      Naquela noite quente e úmida decidiu que seria maior que todos eles. Maior que os engravatados todos, maior que o pai. E quando isso acontecesse, acabaria com todos eles de uma vez por todas. 
     Esse pensamento não trouxe consolo. E Crisóstomo passou a noite em claro, chorando baixinho e apertando o urso de pelúcia contra o peito, ouvindo os risos dos convidados no jardim até ao dia amanhecer.
     Nunca se sentiu tão sozinho.
  

   



1991

Segunda-feira, 16 de setembro,

6h45

     Mário foi o primeiro a chegar à delegacia. Não eram nem sete da manhã. Abriu a porta, foi direto à própria mesa, esperou os jornais do dia. Pouco depois o entregador deixou os diários sobre o balcão, com um curto "bom dia".
    Mário pegou os jornais. Notou que a investigação sobre o atentado ainda tinha destaque nas primeiras páginas. "Polícia acredita em represália do tráfico de drogas no caso da bíblia-bomba". De onde a imprensa tira essas coisas? Numa rápida leitura Mário descobriu. A fonte do jornalista era o doutor Herculano. Provavelmente pressionado pela mídia, de um lado, e pelo secretário de segurança pública, do outro, o policial não teve outro remédio senão entregar alguma coisa aos jornalistas, como quem joga um pedaço de carniça às hienas. Mas o filé - a verdade - continua obscuro.
     No Estadão, a matéria ddo repórter Luis Quevedo estava mais sóbria. Fazia menção, sim, à possibilidade do envolvimento dos traficantes, mas não se limitava àquela interpretação. Questionava inclusive a falta de elementos concretos que justificassem esse entendimento da polícia. "A verdade é que, em anos de magistratura, Flávio Rogendorff colecionou o ódio de uma impressionante galeria de marginais, alguns deles igualmente capazes de uma atrocidade como a cometida na até então pacata Campos do Jordão. Ladrões, assassinos, corruptos de comprovada influência em diferentes esferas do poder. Todos eles têm motivos de mágoa contra o juiz". Mário sorriu ao ler essas lúcidas considerações. 
     O jornalista também repetia o que já tinha dito a Mário, no dia seguinte ao atentado. "A verdade é que a resposta para este mistério estará bem longe das belas paisagens jordanenses. Talvez se encontre muito mais perto do fétido Tietê do que da vistosa Pedra do Baú. Foi na capital, e não na estância, que a atuação de Flávio teve mais impacto sobre a criminalidade, e motivou mais rancores". A investigação, até aquele momento, estava levando para este caminho, Mário concordou.
     Júlia chegou quando a leitura estava no fim. Lima entrou logo depois, meio amassado da noite mal dormida no sofá da escrivã.
     - Bom dia Júlia, bom dia Lima. Alguma novidade?
     - Nada, chefe, noite tranquila - disse Lima. 
     - Falei que não era preciso esse cuidado todo - comentou a moça.
     - Seguro morreu de velho. Tem gente espionando nossos passos e não estou a fim de ser surpreendido.
     - E o que vamos fazer hoje, chefe? - Júlia perguntou.
     Mário abriu a gaveta e tirou um maço de papeis. 
     - Vamos dar mais uma olhada nos números e nomes que encontrei naqueles cadernos do juiz. E vamos analisar de novo os extratos bancários, pra ver se descobrimos alguma coisa fora de lugar, ou algum nome que apareça com mais frequência... pode ser um caminho. E você, Lima, vá pra casa dormir um pouco e tomar um banho. Volte à tarde.
     - Sim, chefe. - O policial saiu esfregando os olhos.
     - Você xerocou tudo, Mário?
     - Claro que eu não ia ficar sem acesso àquelas informações, Júlia. E se os documentos se perderem no meio da burocracia do Estado?
     O telefone tocou. Era o perito encarregado do caso do juiz.
     - Aconteceu uma coisa estranha. Inédita, pra dizer a verdade, inspetor. 
     - O que foi?
     - Me ligaram de São Paulo, direto do alto comando do I.M.L., dizendo pra eu enviar imediatamente tudo que concluí da perícia do atentado: ferimentos, material usado na bomba, tudinho. Perguntei pra quem deveria enviar, e me deram o nome do chefe dos peritos, Gustavo Saldanha.
     - Bem, o caso é importante, normal eles quererem dar uma olhada - cogitou Mário.
     - Não é isso, inspetor. Eles pediram tudo! Inclusive a minha cópia para arquivo. Não queriam que ficasse nada aqui. 
     Isso era mesmo estranho. 
     - E tem mais. O próprio chefe me ligou logo em seguida querendo um relatório verbal do que tinha encontrado. Falei com ele das suas impressões, coisa de profissional, etc… e o homem agiu de forma estranha. Disse que eu devia esquecer completamente esse assunto e não ficar especulando em conversas no cafezinho. Atribuiu logo a culpa a um dos muitos traficantes que o juiz condenou na carreira.
    - Já colocou o relatório no malote? - perguntou Mário.
     - Já… mas fiz uma cópia extra e tranquei na minha gaveta, sem número de arquivo, sem identificação. Só eu sei que ela existe… bem, eu e o senhor, agora.
     - Fez bem. - disse Mário. E desligou. 
     Júlia e Mário se preparavam para começar a análise do material encontrado pelo inspetor na cena do crime quando o delegado entrou estabanado na delegacia.
     - Mário, venha à minha sala.
     A urgência no chamado indicava que algo tinha acontecido. Mário entrou e fechou a porta.
     - Mário, já estou de saco cheio do GOE e dos burocratas da Secretaria de Segurança no meu cangote. Eles estão muito preocupados com a repercussão política do atentado contra o doutor Rogendorff. Precisamos tirar essa pressão de cima da gente o quanto antes. Como está a investigação?
     - Evoluiu pouco, delegado. Mas tenho algumas pistas sobre o carro...
     - De novo essa história do carro, Mário? Não temos certeza de uma coisa ter a ver com a outra!
     - É nossa melhor aposta, uma vez que o juiz não está em condições de denunciar ninguém e o que não faltava para ele era potenciais inimigos. 
     - E o que você pretende fazer?- quis saber o delegado.
     - Vou averiguar alguns detalhes e ir atrás de quem estava atrás de mim. No fim da busca terei o culpado do atentado ao juiz.
     - Queria ter sua confiança. Espero um relatório mais conclusivo, Mário. Se apresse.
     - Sim, senhor. 
     Mário saiu da sala e voltou para a mesa, onde Júlia o esperava com olhar apreensivo.
     - Más notícias? - ela perguntou.
     - Só a esperada pressão envolvida neste caso. Vamos trabalhar. É tudo que podemos fazer a respeito.
     No meio da manhã, o policial paulistano ligou para Mário.
     - Mário, é Januário. Acabei de descobrir uma coisa. Um dos escrivães encarregados do pátio de onde saiu o carro que você está rastreando...
     - Sim...
     - Ele não apareceu pra trabalhar no plantão deste fim de semana. E hoje apareceu aqui uma licença médica de quinze dias pra ele.
     - O que haveria de estranho nisso?
     - Eu liguei pra casa dele e ninguém atendeu. Dei uma olhada no prontuário dele. O cara nunca pediu nem um dia de licença, nunca reclamou sequer de uma gripe. De repente, sai do ar por quinze dias?
     - Tudo isso é muito inconclusivo, parceiro. Pode não ser nada.
     - Só achei que você devia ficar sabendo. Achei estranho. 
     - Obrigado. - Mário fez silêncio por um segundo - Acho que vou até aí pra dar uma olhada nas coisas.
     - Pode vir. Que horas chega?
     - Início da tarde.
     - Ok. Estarei aqui na delegacia. 
     Mário desligou e foi até a sala do delegado.
     - Doutor, preciso ir a São Paulo. Tem a ver com o caso do juiz.
     - Vai me dizer o que é?
     - Apenas apurando uma pista, senhor. Se eu estiver certo, pode jogar alguma luz nessa história toda. 
     - Que pista é tão boa que justifique uma ação fora da nossa jurisdição? 
     - Melhor do que ficar aqui esperando algo acontecer. Essa minha incursão não precisa "existir oficialmente". Vai ser rápida e sossegada.
     - Com você as coisas nunca são sossegadas...- o delegado pensou um pouco e acabou decidindo-se: - Lá vai você me enrolando em suas confusões de novo, Mário. Veja se não se mete em encrenca. Pegue a zero-um - disse, referindo-se a uma das viaturas.
     - Depois te conto o que conseguir. 
     - Espero que sim - respondeu o delegado.
     A "zero-um" é uma velha viatura, com o indispensável giroflex na parte de cima, as cores preto e vermelho na lataria e os dizeres "polícia civil" nas portas. Um Passat já bastante rodado, com mais de quinze anos de uso, mas mantido em boas condições pela delegacia ao longo dos anos. É o único carro da pequena frota da polícia civil que inspira confiança para uma viagem, ainda que curta. Suficiente para permitir chegar a São Paulo em uma hora e meia. 
    Mário saiu sob o olhar curioso de Júlia. Não deu nenhuma explicação ou orientação. Verificou o nível de combustível da "zero um" e tomou o rumo de casa. Conversou rapidamente com a esposa: 
     - Vou viajar e tenho motivos pra acreditar que não é seguro deixar você aqui em casa. Vá pra casa da sua mãe em São José dos Campos e leve o Rogério e o Paulinho. 
     - Deixa eu adivinhar: não vai me contar o que tá acontecendo né? - reclamou a esposa.
     - Tem a ver com o atentado ao juiz. Gente violenta por trás disso. Por favor, arruma tudo e chama os meninos agora.
     - E eu tenho alternativa? 
     Mário esperou a esposa e os dois filhos entrarem no carro da família e sair rumo a São José dos Campos. Para Paulinho aquilo era uma grande aventura. Rogério e Suely estavam contrariados por ter que interromper os planos da semana. O inspetor os seguiu na viatura até São José dos Campos. Falou rapidamente com a sogra, que adorou ter a família reunida em torno dela. Depois seguiu viagem para São Paulo. 
     Preferiu viajar sozinho. Podia ser perigoso, se os perseguidores estivessem por São Paulo depois de terem sido notados por ele. Talvez tivessem interesse em terminar o serviço que começaram com a bomba, matando o juiz convalescente no hospital. 
     A viagem foi tranquila e rápida. Em pouco mais de uma hora Mário já margeava o rio Tietê, enfrentando aquele desagradável cheiro sempre associado à capital. Rumou direto para o Carandiru, onde fica o DEIC. Encontrou o colega e colaborador numa mesa, analisando uns documentos. Januário conheceu Mário no curso de perícia criminal. Logo os dois se deram bem. Notaram semelhanças no modo de pensar e agir. Desde então formou-se uma forte camaradagem: Mário ajudou Januário em alguns casos, e vice-versa.
     Quando Januário viu Mário, levantou-se e o cumprimentou.
     - Esse seu caso está me intrigando, Mário. Temos algo estranho aqui. Não achei normal esse repentino sumiço do Gusmão Xavier.
     - O escrivão que cuida da portaria do pátio.
     - Este mesmo - respondeu Januário. - Não é comum a forma como se deu esse afastamento. 
     - Explique. 
     - Ora, Mário, você sabe que sempre leva alguns dias até que a burocracia da licença médica se processe. Normalmente o profissional falta alguns dias, depois aparece com um atestado médico pra explicar as faltas, e só depois, se não melhorar, pega alguns dias. Nesse caso do Gusmão, a licença foi apresentada no primeiro dia em que ele faltou. Que, por acaso, é o dia seguinte ao atentado que você investiga.
     - Tudo muito rápido. 
     - Sim. E se você juntar a isso o que já te contei, que Gusmão jamais ficou doente nos anos em que trabalhamos juntos...
    - Há indícios para suposições. Vamos tentar deixar isso tudo mais concreto. Acho que devemos fazer uma visita ao Gusmão Xavier. 
     - Ele mora num pequeno prédio de apartamentos na zona leste. Felizmente a essa hora, no sentido bairro, a radial está menos congestionada. 
     O prédio tinha quatro andares e nenhum elevador. Claro que Xavier tinha que morar no quarto andar. Havia uma portaria, mas não um porteiro. Apenas o interfone. O policial apertou o botão correspondente ao apartamento do Xavier e esperou a resposta. Nada. Insistiu. Nada. Apertou o de outro andar. Uma voz feminina respondeu, mal humorada.
     _ Que é? 
     - Polícia, madame. Precisamos entrar no prédio, mas não tem ninguém na portaria.
     - O porteiro foi demitido semana passada, corte de gastos. 
     - Pode abrir o portão pra gente por favor? 
     - Como vou saber que vocês são mesmo policiais?
     - Se descer aqui, posso lhe mostrar meu distintivo.   
     - Dá pra comprar um desses no camelô por 10 cruzeiros.
    Mário perdeu a paciência.
     - Olha aqui, minha senhora. Esse é um assunto policial. Ou a senhora abre esse portão agora, ou vou denunciá-la por obstrução da justiça. Significa que a senhora deliberadamente atrapalhou o trabalho da polícia. Como vai ser?
     Silêncio de alguns segundos, seguido pela campainha ardida e o clic seco do portão sendo aberto.
     Os quatro andares de escadas foram vencidos com calma. A porta do apartamento 41 estava trancada. O policial bateu. Insistiu. Nenhuma resposta. 
     - Vamos ver se tem alguma chave na portaria... - a sugestão nem chegou a ser concluída. Mário já estava arrebentando a tranca com um vigoroso ponta-pé. 
     - A paciência nunca foi seu forte, Mário... - comentou o outro, divertido.
     Mário entrou e, imediatamente, notou um cheiro desagradável no ar. Instintivamente, levou a mão ao 38 no coldre preso ao peito. O policial o seguiu, e imitou seu gesto. 
     O apartamento parecia abandonado. Um cobertor jogado sobre o sofá. Na cozinha, alguma louça suja, de dias atrás provavelmente, encimada por moscas e baratas. 
     Mário foi até o quarto. A porta estava fechada. Ele a abriu e encontrou a origem do cheiro que o incomodava. Um corpo, já em decomposição, deitado de bruços sobre o colchão, sem camisa, de shorts, uma mancha preta espalhada embaixo da cabeça, sobre o travesseiro e o lençol. Bastou uma olhada para entender que aquela não tinha sido uma morte natural. 
     - Acho melhor você chamar seus colegas - Mário disse, levando um lenço ao nariz. 

   Natália, aos seis anos de vida:
     - Papai, o que você faz?
       Mário: 
     - Eu tento descobrir quem fez coisas erradas para que eles recebam um castigo.
       - Como quando eu desobedeço?
     - Não, filha. Não desse jeito. 


     - Por que você faz o que faz? - perguntou Júlia durante um happy hour com a turma da delegacia.
     - Porque é o que gosto de fazer - respondeu Mário.
     - Às vezes não te parece muito esforço?
    Mário olhou dentro do próprio copo, como se buscasse nas pedras de gelo ou no amarelo do uísque uma resposta convincente. Então, disse:
     - De passagem pela Frígia, Alexandre, o Grande, tomou conhecimento de um emaranhado impossível de desmanchar, que prendia a antiga carroça do rei Górdio a uma pilastra. Era chamado "nó de Górdio". Por meio milênio, muitos homens tentaram desatar o nó, inspirados por um oráculo que dizia que quem desamarrasse aquela bagunça herdaria o trono daquele país. Alexandre soube da história; estudou o nó por alguns segundos... e o destruiu a fio de espada. 
     Anos depois, Alexandre se tornou o soberano de toda a Ásia menor. 

     Investigar é desatar nós górdios; Quanto mais laços, mais trabalho; quanto mais trabalho, mais tempo; quanto mais tempo, mais necessária a persistência... ou você pode simplesmente destruir o novelo todo e dar o resultado que quiser, como fez Alexandre. Mas aí, onde estaria o prazer do desafio? 
     Sou policial pelo prazer de desatar nós... um prazer meio doentio, talvez masoquista, mas um prazer.  Eu jamais destruiria tudo com uma espada, pra encurtar o caminho...
     - Você não bate bem, Mário - disse Júlia, com um sorriso brilhante - Mas até que é interessante encontrar um policial filósofo...
     - Um brinde a isso - respondeu Mário, erguendo o copo.

Ribeirão Preto, final dos anos 1940 / início da década de 1950


     Crisóstomo está sentado numa cadeira diante dos dois caixões. Recebeu incontáveis apertos de mãos, alguns beijos rebocados de batom de matronas com muito pó-de-arroz e ruge na face, abraços de homens suarentos dentro de ternos bem cortados. 
     Está cansado demais para atinar com o que está acontecendo. Nas urnas sobre cavaletes, no meio da sala de recepção da mansão, jazem os corpos do Comendador e da esposa. Os pais de Crisóstomo. Mesmo do ponto mais baixo em que se encontra, Crisóstomo pode notar o volumoso ventre do pai brotando dentre as flores que preenchem o caixão, como uma colina arredondada. Do corpo da mãe não consegue ver nada... ela sempre foi tão zelosa da própria beleza! Agora está ali, pronta para ser entregue aos vermes. Irônico, talvez. Mas essa ironia não está ao alcance do jovenzinho sentado na cadeira, pensando na tragédia que o acometeu.
     Na véspera o casal tinha dispensado o motorista. Valadares queria dirigir o carro novo, modelo esportivo que tinha custado os olhos da cara e, segundo ele, era como voar baixo. Quis experimentar os limites do carro na rodovia estadual entre Ribeirão Preto e São Carlos. Abusou da própria perícia. Um deslize, uma derrapada, um capotamento, vários capotamentos... 
     Morte instantânea, disseram. "Não sentiram nada", dizem agora ao adolescente sentado na cadeira, a título de consolo. "Que bom", pensa Crisóstomo, "eles não sentiram nada. Quem vai sentir sou eu, de agora em diante". 
     Enterro elegante. Féretro chique, com presenças ilustres. Getúlio mesmo queria ter vindo, mas não conseguiu se desvencilhar dos compromissos de Estado no Rio de Janeiro. Mandou o Ministro da Economia - fato noticiado com pompa pela imprensa local e mesmo alguns jornais da capital.
     Debaixo de um sol forte num dia radiante, que contrasta bruscamente com o espírito sombrio de Crisóstomo, os caixões foram depositados no Mausoléu dos Valadares, no Cemitério da Saudade. Uma breve cerimônia. Logo depois todos se afastaram para voltar a suas rotinas, menos Crisóstomo. Ele ficou ali um grande tempo, tentando descobrir o que estava sentindo depois da morte daqueles dois estranhos que chamava de pai e mãe. 




     Passaram-se menos de duas semanas quando um homem magro de bigode fino veio à mansão falar com Crisóstomo. Ele se lembrava de ter visto aquele homem no enterro. 
     - Você não tem nenhum parente próximo em condições de assumir a responsabilidade por sua formação. Seu pai, precavido, me nomeou seu tutor até que atinja a maioridade. Sou responsável pelo seu bem estar e pela fortuna que recebeu de herança. Você é dono de uma considerável soma em dinheiro, além de propriedades rurais pelo interior de São Paulo. Também tem uma usina de cana-de-açúcar perto de Barretos e cotas de uma fábrica de meias de Araraquara. 
     Crisóstomo ouvia mudo, com os olhos muito abertos por trás das grossas lentes dos óculos. 
     - Não vou lhe aborrecer com detalhes, Crisóstomo, mas o fato é que você é um jovem muito rico. E eu vou cuidar para que você continue assim, até que se ache em condições de zelar sozinho pelo seu patrimônio. Alguma pergunta?
     - Como é seu nome?
     - Álvaro -  respondeu o tutor. 
     
        A Escola Metodista, fundada no final do século XIX, era um dos melhores colégios de Ribeirão Preto. Nela Crisóstomo teve contato com o latim e o francês, além das lições de Língua Portuguesa. Era um aluno relapso. Faltava frequentemente às aulas, não se dispunha a participar das atividades em classe ou fora dela. E simplesmente não conseguia encontrar qualquer utilidade para as aulas de Religião, uma vez que tinha certeza absoluta da inexistência de Deus. Não fazia as lições e parecia distraído o tempo todo, com o olhar vazio fixo na janela da grande sala de aula. Apesar disso, como que por milagre, conseguia sempre as melhores notas nos exames. Várias vezes os professores tentaram flagrá-lo colando nas provas. Mas não era isso. Ele realmente sabia as respostas. 
     Seu jeito mirrado e seus óculos fundo-de-garrafa faziam dele a vítima predileta dos valentões. Meninos de famílias igualmente afortunadas, que eram criados para se acharem superiores a qualquer outro. E o "fracote Valadares" era o alvo perfeito. Uma ou duas vezes, Crisóstomo tentou se defender. Mas os resultados foram lamentáveis. Um olho roxo, um lábio partido, hematomas e contusões. Viu que não seria produtivo encarar os briguentos no campo deles. Teria que achar um jeito de trazer o combate para o seu território: o do intelecto. 
     Um dos mais temidos brutamontes da escola era Domício, filho único de um empresário do ramo de hotéis, herdeiro de uma grande rede de pousadas espalhada por todo o país. Domício parecia encontrar um prazer sádico em humilhar Crisóstomo na frente de todos. Como era muito maior que os demais, ninguém tinha coragem de interferir.  E ele treinava seus insultos e seus sopapos no pobre Crisóstomo. A vítima não tinha a intenção de denunciar tal tratamento à direção da escola, pois imaginava que uma atitude dessas seria uma sentença de morte - além de uma humilhação, como aceitar o papel de fracote indefeso. Tinha já uma noção um tanto arraigada de orgulho próprio. 
     A solução para os problemas do frágil saco de pancadas veio  de forma muito simples, quase um cliché. 
     Domício ia mal nos estudos, poderia perder o ano se não melhorasse rapidamente. Crisóstomo se propôs a ajudá-lo. 
     - A troco de quê, moleque?
     - Que você me deixe em paz. Só isso.
     - Vamos fazer o seguinte: se eu conseguir nota suficiente para passar em latim, ninguém mais vai se meter com você.


     Depois dos exames, Crisóstomo estava lendo no pátio da escola quando um grandalhão se aproximou e jogou o livro que ele lia no chão. O garoto começou a rir. Crisóstomo não se levantou. Apenas olhou para o colega estúpido, que já erguia a mão para desferir um murro. Mas seu braço foi interceptado a meio do caminho por uma mão forte. O menino se virou, assustado, para ver quem tinha se metido no assunto dele, quando levou um poderoso soco em plena face. 
     Surpreso por aquela ajuda inesperada, Crisóstomo viu Domício observando a queda do outro estudante e, depois, olhando para ele.
     - Precisava de 6 em latim - disse Domício. - Consegui 7. 
     Depois daquele dia ninguém mais importunou Crisóstomo na escola. 



      Álvaro era um advogado experiente. Logo descobriu em Crisóstomo um interesse vivo pela justiça. O rapazola fazia perguntas difíceis sobre moral, leis, o que é correto, o que é justo e o que é apenas legal. Parecia um pequeno Sócrates sedento de conhecimentos. Achou que seria interessante transformar o rapaz em seu pupilo. Passou a ensinar a ele tudo o que sabia sobre os meandros do judiciário, a arte das chicanas, os buracos legais onde esconder os ilícitos de toda ordem. Também ensinou ao discípulo que para ser eficiente no combate aos crimes e na defesa da justiça era preciso sujar as mãos, conhecer os infratores e, se possível, mantê-los sob controle. "São fontes importantes de informação, e no mundo, informação é poder, meu caro. É um patrimônio mais valioso do que dinheiro", ddizia Álvaro  Crisóstomo ouvia e aprendia rapidamente, tanto dos livros como dos contatos que fazia com pequenos marginais, prostitutas, policiais de moral duvidosa. Descobria a linguagem das ruas, a motivação de bandidos e malandros. Começava a se sentir em condições de circular por aquele meio com muita naturalidade, como se tivesse nascido ali. Logo percebeu a verdade do que o tutor lhe falava.  "Ouça duas vezes antes de falar uma vez", dizia o mestre. "O que você ouve é seu. O que você fala pertence a quem te ouve. Seja econômico com as palavras". 
     Sim, aquilo era verdade. Por isso as reuniões do pai eram sempre a portas fechadas, com poucos convidados. As discussões importantes ficavam restritas a um grupo pequeno. Alguns integrantes evitavam até que seus nomes fossem ditos em voz alta. Queriam a proteção do anonimato, das sombras. Era nas trevas que faziam seus conchavos políticos, suas intrigas, armações e golpes. Um jeito muito eficiente de alcançar objetivos: ser invisível. Atuar nos bastidores. Controlar sem ser notado. 

     Numa manhã de domingo, Álvaro levou Crisóstomo a um bosque atrás da mansão. 
     - Você precisa aprender uma coisa.
     Crisóstomo olhou para o mestre, ansioso. 
     Álvaro abriu uma caixa de madeira envernizada com um losango amarelo na tampa e fecho de metal dourado. Parecia uma velha caixa de charutos, com pinturas douradas nas bordas - uma bela obra de arte. De dentro dela, tirou uma pistola de desenho elegante e cano fino. Era uma Parabellum Luger P08 de 9mm, um belo exemplar do que os alemães andavam usando contra os judeus na Europa. Leve, fácil de manusear, precisa, poderosa. Tinha um cheiro agradável de óleo lubrificante.
     Álvaro carregou a arma lentamente, enquanto falava com o pupilo:
     - Essa é uma forma diferente de poder. Intimida em qualquer situação, pode ferir ou matar quando necessário. Para usá-la é preciso muito autocontrole. Primeiro você tem que se dominar. Depois, dominar a arma.
     Crisóstomo colocou algumas pedras sobre um velho muro em ruínas no meio do bosque. Álvaro afastou-se 50 metros do alvo e disparou em sequência, derrubando todas as pedras. Crisóstomo ficou impressionado. 
     - Agora tente você. Segure a pistola com leveza. Coloque o dedo no gatilho com suavidade: não é preciso fazer força. Faça mira, prenda a respiração e puxe o gatilho devagar.
     Crisóstomo se assustou com o ruído do disparo e o coice da arma. Obviamente errou o alvo, e sentiu como se alguém tivesse acertado um murro no seu braço com força. 
     - Tente de novo - ordenou Álvaro.
     Foram muitos disparos, muitos erros. Até que finalmente Crisóstomo conseguiu acertar uma das pedras, mais por acidente que por mérito. 
     - Por hoje está bom. Com o tempo você pega o jeito - disse o advogado. - Mas lembre-se do que vou lhe dizer agora. Uma arma é uma medida desesperada, um recurso extremo. Se um dia você precisar usar uma dessas para resolver algum problema, significa que você falhou em tudo o mais; faltou inteligência, eloquência, habilidade, sangue frio... e por isso foi obrigado a usar a força bruta, que é o argumento dos ineptos. 
     Crisóstomo ouviu atentamente. 
  
     
     Quando chegou a hora, pareceu natural para o jovem milionário escolher a carreira de advogado. Uma homenagem ao tutor que se tornou muito mais próximo dele do que qualquer outra pessoa, muito mais presente do que o próprio pai jamais fora. Também havia uma aptidão inata por parte de Crisóstomo. Tudo se encaixava e ele se decidiu. 
     Partiu para São Paulo assim que foi aprovado no vestibular da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Na despedida do tutor, Álvaro o presenteou com a bela "caixa de charutos". Dentro dela, a pistola alemã.
     - Lembre-se do que eu lhe disse sobre usar força bruta - disse o tutor.
     - Vou me lembrar - prometeu Crisóstomo.
     


     

12


     
     São Paulo, segunda-feira, 16 de setembro de 1991, 17h45

     - Deixa eu entender - disse o oficial depois de analisar a cena do crime. - Como pode um funcionário de baixo escalão, morto em casa, numa região perigosa da capital, ter ligação com o atentado ao juiz em Campos do Jordão de que todo mundo fala o tempo todo?
     Mário sabia que não havia atalho para aquela resposta. Apenas ele fazia a ligação, apenas ele percorreu a trilha completa e, com uma boa dose de intuição, amarrou as pontas soltas. Mas nem todas. Ainda havia algumas perguntas sem resposta. Que havia uma ligação, Mário não tinha dúvida. Como chegar à mesma conclusão, pelo longo caminho da prova e da lógica, era outra história. 
     - Ainda não posso confirmar, senhor, mas tudo indica que este escrivão estava ligado ao caso de alguma forma. Não foi um simples assalto. O que valeria a pena ser roubado aqui? O que mais valeria a vida do morador? Quem se daria ao trabalho de invadir um prédio e subir quadro andares de escadas para cometer um simples assalto, quando tinha alvos muito mais interessantes no térreo ou nos andares inferiores? Está claro que o alvo era o escrivão. Está claro que não houve luta. Veja a posição do corpo: baleado na nuca, de bruços na cama. Evidentemente foi alvejado enquanto dormia. Olhe a gaveta da cômoda - Mário abriu a gaveta protegendo a mão com uma luva cirúrgica - esta é a arma do policial. Intocada. Ele nem teve tempo de pensar em usá-la. Outro fato relevante: quando cheguei a porta estava intacta - trancada. Quem matou o policial teve o capricho de trancar a porta e levar a chave. 
     - Porta que você arrebentou sem a menor cerimônia.
     Mário não respondeu. Limitou-se a continuar a análise da situação. 
     - Tem mais coisa estranha: o cara estava com uma licença médica aprovada. 
     - E o que tem isso?
     - A licença é do dia 12. No dia 11 ele tinha trabalhado em perfeitas condições de saúde. Desde então não apareceu mais na delegacia. Não sou perito, mas estudei o assunto a fundo, e afirmo que a morte dele ocorreu entre os dias 11 e 12 deste mês. Vê as larvas das moscas, sente o cheiro do cadáver? Compatível com esta data. Retornando, então, ao assunto da licença médica; como um morto consegue ser liberado do trabalho para "cuidar da saúde"? Quem assinou essa liberação tem explicações a dar. 
     - Foi o próprio chefe da DEIC, sabichão. Ele matou o próprio funcionário? Por que? E tem mais: para ele, esse era só mais um papel que aparecia na sua mesa, como dezenas de outros, todos os dias. 
     Mário se calou. Rapidamente, avaliou aquela informação. Ou o chefe de uma das delegacias mais ativas do estado estava envolvido no crime, ou a burocracia tinha deixado passar um erro grave, avalizado por ele. Não havia uma terceira alternativa.
     Os peritos reviraram o pequeno apartamento. Mário acompanhou tudo com atenção. Não encontraram nada revelador. Mário também não esperava uma digital do assassino.  
     Foi difícil explicar para o encarregado da investigação o que ele estava fazendo ali. Januário até que tentou ajudar, mas muitas dúvidas ficaram pairando na atmosfera carregada daquele cubículo. Nesses casos, como sempre fazia, Mário usou a tática de dizer toda a verdade. Não adiantava tentar esconder suas intenções, mesmo sabendo que com isso alertaria um eventual policial corrupto que estivesse envolvido no caso. E Mário tinha certeza que ele existia. Ou eles...
     Duas horas depois, na DEIC, o delegado-chefe em pessoa quis ouvir a história toda de novo, do próprio Mário. O detetive aproveitou pra analisar o homem à sua frente, enquanto lhe repetia o passo a passo da investigação do atentado contra o juiz Flávio Rogendorff. 
     O doutor Lúcio era alto e magro. Nariz pontudo, bigode farto, queixo levemente inclinado para a frente. Lábios escondidos no bigode, deviam ser finos, a julgar pela compleição da face. Sobrancelhas grossas. Olhos vivos e negros. Inquiridores. Mãos ossudas com dedos longos e ossudos. O sujeito parecia uma caricatura, ou um desenho animado. Mas qualquer impressão cômica desaparecia quando ele falava, usando de sua voz grave, cavernosa, meio rouca, para impor um respeito que seus cabelos desgrenhados se recusavam a exigir. 
     Mário tirou a caixinha de Mentex do bolso, atirou uma das pastilhas na mão e jogou na boca. Sem tirar os olhos do delegado .              
     - Vamos recapitular - disse o delegado, incansável na sua fleuma irritante. - O senhor foi atacado por alguém num carro preto em Campos do Jordão. Conseguiu anotar a placa antes da fuga do indivíduo. Checou e descobriu, com a ajuda do meu policial aqui - apontou para Januário, sentado numa cadeira ao lado da mesa do delegado - que o carro em questão consta da lista de veículos apreendidos que estão guardados no pátio desta delegacia... mais especificamente, o carro de um conhecido traficante que prendemos há alguns meses. Novamente com a ajuda do meu subalterno - o policial se mexeu na cadeira, desconfortável com aquela acareação - você decidiu vir até a capital, pra "conversar" com o Gusmão, responsável pelos registros do pátio da DEIC, e tentar entender como o carro "apreendido" estava circulando livremente pela estância. Vocês dois, então, sabendo que ele estava de licença médica, sem avisar ninguém, vão até a casa dele, arrombam a porta e descobrem o corpo do infeliz. Correto até aqui?
     - Menos num ponto, senhor.
     - Qual seria?
     - "Nós" não arrombamos. Eu arrombei, sob protestos do investigador Januário, aqui presente. 
     Um leve tremor de pálpebras indicou que toda aquela tranquilidade arrogante não era inexpugnável. Com a voz um pouco mais irritada, o delegado-chefe continuou a revisão do caso.
     - Certamente o senhor não acha isso divertido.
     - Não senhor - Mário respondeu - Só acho importante ser preciso.
     - Vamos ver até onde vai essa sua precisão. Que indícios o senhor tem de que o ataque à sua pessoa e a morte do meu escrivão têm ligação com o crime contra o juiz?
     - Por enquanto, apenas casualidades.
     - Poderia me dizer quais?
     - Como eu expliquei anteriormente, um ataque a um policial não é coisa comum em Campos do Jordão. O fato disto acontecer logo depois do atentado, e contra o policial mais proximamente envolvido na investigação da explosão, mostra que há elementos suficientes para se supor uma ligação entre os crimes. Em consequência, a morte de um homem diretamente ligado ao carro usado no ataque contra mim tem toda a aparência de mais um elo na corrente. Sei que os elos estão soltos, mas isso não quer dizer que não façam parte da mesma corrente. Tudo que temos que fazer é encontrar os outros elos.
     - Simples assim! - Exclamou o delegado.
     - Basicamente, senhor, é a melhor hipótese até o momento. 
     - E por que alguém mataria um escrivão, sabendo que toda a polícia de São Paulo iria atrás dele?
     - Não conheço o motivo, mas tem que ser muito forte.  
    - Bem, senhor Mário, já liguei para o seu superior. Ele ficou bastante surpreso com o andar dos acontecimentos... embora tenha confirmado que o senhor está aqui com o conhecimento dele. Isso o livrou de uma conversa com a corregedoria de polícia... por enquanto. Mas acho melhor o senhor voltar para sua cidade, para a sua delegacia e o seu caso, e parar de filosofar sobre coisas que estão bastante fora de sua alçada. Vou até relevar o arrombamento que cometeu, em sinal de boa vontade...
     - Justificado, senhor.
     - Como disse...?
     - Justificado. O arrombamento. Havia motivos para crer que um crime estava em andamento. Isto se confirmou com o que encontramos naquele apartamento. Infelizmente chegamos tarde para impedir...
     - Escute aqui, inspetor. Não abuse da sorte ou da minha paciência. Pegue seu rumo. Não quero mais saber de vê-lo por aqui, bisbilhotando na minha jurisdição. Pode ir agora. O senhor também, detetive Januário. Com o senhor, me entendo mais tarde. 
     Do lado de fora da DEIC, Mário se recostou no velho Passat da delegacia jordanense.
     - Podia ter sido bem pior - disse.
     - Pior? Não sei o que esse homem vai fazer comigo, mas já estou me preparando pra uma suspensão.
     - Duvido. Ele não vai querer mexer nesse vespeiro, com um cadáver sobre a cabeça. Quanto menos barulho em torno do caso agora, melhor. E barulho é o que não vai faltar por aqui...
     Estavam assim conversando quando um carro plotado com a logomarca do Estadão parou na frente do Passat. Dele desceram um homem com colete cheio de bolsos e uma câmera a tiracolo, e outro com um bloco de notas e uma caneta nas mãos. Mário reconheceu o segundo sujeito imediatamente. 
     - Doutor Mário! Que surpresa. Não esperava encontrar o inspetor jordanense por aqui, nem em um milhão de anos.
     - Como vai, senhor Quevedo?
     - Ocupado, doutor, ocupado. Ouvi dizer que um escrivão desta delegacia foi encontrado morto no próprio apartamento... em circunstâncias muito, muito curiosas.
     - Já estava de saída. Bom trabalho.
     - Ainda tem o meu cartão, doutor? Já que está aqui na capital, talvez pudéssemos tomar uma bebida mais tarde, trocar algumas impressões sobre o caso do juiz... Lembra-se que eu estive em Campos do Jordão? Continuo no fio daquela história. 
     Mário não respondeu. Virou-se para Januário:
     - Obrigado pela ajuda, Januário. Seu instinto não falhou.
     Apertaram-se as mãos e Mário entrou no Passat. Afastou-se sob o olhar curioso do repórter. Pelo retrovisor, viu Luis Quevedo entrando no prédio da DEIC com o fotógrafo do Estadão.
     - Sim - pensou o inspetor - muito barulho mesmo.
     Uma hora depois, Mário parou num bar da vila Madalena. Escolheu uma mesa e pediu um suco de laranja, sob o olhar surpreso do garçom, acostumado a servir bebidas muito mais fortes. O inspetor abriu a carteira e tirou dela o cartão do repórter. Talvez não fosse um mal negócio conversar com o sujeito, afinal. Talvez ele soubesse algo que pudesse ajudar na investigação. Pensando nisso, Mário levantou-se, foi até o telefone público na parede, perto dos banheiros do bar, e discou o número de Luis Quevedo. Depois de uma conversa de poucos minutos, ligou para Suely para avisar que provavelmente não iria para casa naquela noite. Aguentou valentemente os murmúrios e lamentos da esposa, reafirmando que o trabalho exigia aquilo. 
     Depois voltou a sentar-se, brincando com o canudo e o gelo no copo de suco. Observou as pessoas que entravam no bar, cada vez mais numerosas. "Cidade que nunca dorme" não é apenas um clichê quando se trata de São Paulo. Ali estava ele, em plena segunda-feira gorda, num bar que provavelmente iria ficar aberto até o amanhecer a despeito do dia útil, com clientes garantidos. Uma fauna interessante, que oscilava dos punks aos hippies, dos beatniks aos metaleiros - todos ladeados por um ou outro engravatado perdido na noite... Todos dispostos a alguma diversão passageira, etílica,  quando não regada a outras drogas. Onde, em Campos do Jordão, encontrar tão grande variedade humana? Talvez em julho, durante a temporada. Mas é uma variedade importada, principalmente da capital. Provavelmente muitas destas figuras que agora desfilam diante dos olhos do policial já estiveram na Montanha. Talvez já tenham até sido detidos por Mário ou seus agentes, por delitos leves como perturbação do sossego ou embriaguez. Outra diferença entre a bela cidade montanhosa e a capital: jamais um aventureiro encontraria um boteco aberto, fora da temporada, em Campos do Jordão, durante a madrugada de uma segunda-feira gorda. Pelo menos, não um boteco frequentável. 
     Quevedo levou uma hora para chegar. Entrou no bar, olhou em volta e apenas acenou quase que imperceptivelmente com a cabeça ao encontrar o inspetor. Caminhou até a mesa de Mário, desviando-se da multidão descontraída. Esbarrou numa lésbica de cabelos roxos, contornou uma mesa ocupada por dois rapazes com cara de estudantes. Aproximou-se, sentou-se.
     - Lugar interessante. Esse eu não conhecia. 
     - Nem eu - respondeu Mário.  
     Um rápido silêncio se ergueu entre os dois. Mário o quebrou.
     - O que você pode me dizer do pessoal da DEIC?
     O repórter estranhou a pergunta.
     - Seja mais específico, inspetor.
     - Muitos ratos na toca?
     Quevedo reclinou-se sobre a mesa, interessado na conversa.
     - Não mais do que em qualquer outra delegacia desta cidade. Quer saber de alguém específico?
     Mário ficou na defensiva, prudente.
     - Não, ninguém... mas você deve saber algum nome…- especulou.
     - Ah sim. Alguns. 
     - Do baixo ou do alto clero?
     - Os dois - respondeu o repórter, lacônico. 
     Mário viu que aquela conversa não estava levando para lugar nenhum. 
     - Por quê o interesse, inspetor?
     - Nada demais. Tenho um amigo ali. Queria saber com quem ele é obrigado a lidar no dia a dia.
     Quevedo fingiu aceitar a resposta e calou-se, esperando o próximo passo do policial. Era como um jogo de xadrez. Cabia a Mário o próximo movimento; e ele resolveu mexer nas peças e mudar o jogo, mudar o rumo da conversa, para retomá-lo num momento mais oportuno.
     - Vai beber alguma coisa?
     - Acho que já terminei por hoje. Sim, doutor, posso fazer um pequeno happy hour, embora seja um pouco tarde pra isso.
     O repórter acenou para o tatuado e musculoso garçom vestido com camiseta preta, bandana, avental e calças, também pretos.
     - Uma cerveja por favor. 
     - Temos Bohemia ou Bud. 
     - Bohemia, claro. Me acompanha, doutor? Não? Ok, apenas um copo, amigo.
     Quevedo foi para o ataque:
     - Não está bebendo... ainda está trabalhando, policial?
     - Um policial nunca para de trabalhar.
     - Um repórter também não, mas isso não me impede de tomar uma cerveja. 
     - Prefiro manter minha lucidez em cem por cento.
     - Entendo.
     Outro silêncio pesado. Quevedo matou a cerveja rapidamente. Pediu outra. Nesse meio tempo, falaram de amenidades. Há quanto tempo Quevedo estava na profissão, como foi parar n'O Estado de S.Paulo, e mais, na editoria de polícia. Pediram uma porção de linguiça frita com queijo e cebola. Mário pediu mais um suco de laranja. Quevedo já estava na terceira cerveja quando o assunto voltou à pauta que interessava ao inspetor.
     - Nesses seus anos de repórter policial deve ter formado uma boa agenda de fontes. Você chegou bem rápido à DEIC hoje. Nem a TV Globo, nem qualquer outro jornal tinha aparecido.
     - Sim, tenho meus contatos - respondeu o jornalista. - Infelizmente, a periodicidade da imprensa escrita neutraliza essa agilidade muitas vezes. Até a minha reportagem ser publicada e chegar às bancas amanhã, o noticiário de fim de noite da TV já vai ter apresentado o assunto. Uma equipe da TV RECORD estava estacionando em frente à DEIC quando eu saía de lá, mais cedo. 
     - Por quê você continua na imprensa escrita? Não ganharia mais na TV? Não daria mais... como vocês chamam? "Furos"? 
     - Acho que não é a minha praia, inspetor. Meu negócio é escrever reportagens mais detalhadas, metódicas, profundas. Não se tem muito espaço para profundidade na TV. Quanto aos furos, quando a mídia informatizada se propagar - e isso vai acontecer, já está começando - quem vai ter que correr atrás do prejuízo vai ser a mídia eletrônica. Mesmo o rádio vai comer poeira. Aí, jornais como o Estadão vão ampliar ainda mais seus serviços de notícias por e-mail, para um cadastro cada vez maior de leitores/clientes, e para publicar as notícias com uma agilidade livre das rotativas, da demora da impressão no papel. Os computadores vão se popularizar cada vez mais, vão virar eletrodomésticos. Já se fala numa rede, que integrará todos os computadores do mundo - a internet. Um espaço novo para divulgação de informações.
     O assunto evidentemente empolgava Quevedo, que falava sob o efeito de um legítimo entusiasmo profissional, misturado com as três cervejas consumidas. Já eram quatro a essa altura, para ser exato. Mário lembrou-se da filha, estudante de jornalismo, certamente debatendo assuntos como aquele com professores e colegas. Sentiu-se sinceramente interessado. Mas era preciso retomar o fio da meada. 
     - Notícias como a do escrivão assassinado... sondou Mário.
     - Sim, ou do juiz "explodido" - rebateu Quevedo.
     - O que você escreveu sobre o caso de hoje? Me informe em primeira mão.
     - E perder a venda de um exemplar em banca? Nem pensar - brincou o repórter. Mário sorriu e esperou.
     - Conversei com o delegado-chefe. Conversei com minhas fontes. Sondei os policiais de plantão na delegacia. O Gusmão tinha lá suas confusões. Parece que estava endividado, enrolado com agiotas. Mas todos que ouvi afirmaram categoricamente que o cara era um policial direito. Não se metia com drogas, não se enrolava em corrupção. E agiotas, sabemos, não são doidos de cobrar dívidas derramando sangue de policiais. Então, essa pista é fria como o iceberg que afundou o Titanic. O que me intriga é a ficha aparentemente limpa do escrivão. Gente assim não morre assassinada dentro de casa, numa evidente execução. Pelo menos, não com muita frequência. 
     - Você pode ter deixado escapulir alguma coisa, algum crime, algum passado sujo...
     - Minhas fontes são bastante confiáveis, inspetor. E bem informadas. Se houvesse alguma coisa nessa linha, eu ficaria sabendo ou pelo menos suspeitando. Não é o caso.
     - Continue.
     - O que me deixou com a pulga atrás da orelha foi a conversa com o delegado Lúcio. Normalmente ele omite informação, sequer me recebe. Dessa vez, me chamou na sala dele, abriu o boletim de ocorrência, respondeu todas as minhas perguntas - com evasivas e informações duvidosas - mas o mais importante nesse caso não são as respostas, e sim a atitude.
     - Muito solícito...
     - Um gentleman com "a imprensa" aqui. Totalmente anormal. Isso fez o meu sinal amarelo acender. 
     - O que você sabe de Lúcio? Ele se encaixa nos incorruptíveis?
     - Não posso afirmar tanto, mas tampouco fiquei sabendo de qualquer sujeira dele. Até hoje nunca me caiu no colo qualquer deslize desse policial. É outro que parece ter uma ficha invejável. 
     - Nada de propina, envolvimento com bandidos, nada...?
     - Puro como um anjo, ou pelo menos é o que parece.
     Mário ficou intrigado. 
     - Você falou em informações "não confiáveis"... o que quis dizer?
     - Bem, para começar, ele omitiu a sua participação no caso do escrivão morto.
     Mário tomou o golpe. Não esperava por essa.
     - E quem disse...
     - Ora, doutor, já lhe disse que tenho fontes muito boas. 
     Mário resolveu não negar o que já estava claro.
     - ... e o que mais?
     - Um assalto. O doutor Lúcio me disse que "a polícia trabalhava seriamente com a hipótese de assalto". Essa é boa. Não se sustenta de pé. Vi no boletim de ocorrência onde Gusmão morava, quatro andares de escadas num prédio velho e humilde da zona leste. O documento não falava em nada que tivesse sido levado, ou estivesse faltando na casa... nem mesmo a arma do escrivão foi roubada. E, mais uma vez, minhas fontes descartaram essa teoria.
     Isso era importante. Podia ser uma simples tentativa de despiste, para tirar um pouco da força da história. Ou a mentira do delegado-chefe podia ter uma motivação diferente. 
     - Agora vai me contar?
     - Contar o que? - Mário se surpreendeu de novo.
     - O que você estava fazendo lá no apartamento, quando o corpo foi descoberto.
     Mário se calou. Pensou um pouco, depois disse:
     - Tenho uma proposta. Não vou te contar nada agora. Mas quando o caso estiver fechado, passo tudo em primeira mão para você - com a condição de meu nome não aparecer na notícia. 
     - Só me responda uma coisa - pediu o repórter.
     - Se eu puder...
     - A morte do Gusmão tem algo a ver com o atentado ao juiz lá na sua terrinha gelada? - Quevedo perguntou do meio de um sorriso maroto.
     - Digamos que há essa possibilidade - Mário admitiu. - Que me diz, vamos.... como vocês da imprensa dizem? "Trocar figurinhas"?
     - Está bem informado sobre jargões jornalísticos, inspetor.
     - Tenho minhas fontes - respondeu Mário.



13

     - Ainda não acredito que você saiu pra tomar uma cerveja com o Luis Quevedo e não me chamou pra ir junto - Natália parecia realmente contrariada.
     - Foi tudo muito de última hora, filha. Além do mais, eu nem sabia que você admirava tanto ele.
     - O quê? Esse cara é um dos últimos dinossauros do jornalismo. O livro dele, "Jornalismo policial", está na lista dos meus professores como leitura obrigatória. O Quevedo é foda! 
     Mário ergueu os olhos; não estava acostumado àquele linguajar na boca da filha.
     - Desculpe o "foda". Mas é verdade.
     - Desculpe ter ligado tão tarde. Tem certeza que suas colegas de república não se importam se eu passar a noite aqui?
     - Claro que não, pai. A Rose só vai aparecer de manhã. Plantão no hospital. E a Mari já tá dormindo faz tempo. Só eu mesmo que sou insone, nem tinha ido pra cama ainda quando o senhor ligou. Não esperava te rever de novo tão cedo. Mas adorei a surpresa - disse, aninhando-se no colo do pai.
     - Então sua conversa com o Quevedo foi profissional?
     - Foi. E é só isso que eu vou te contar.
     - Foi sobre o caso do juiz?
     - Mário ficou orgulhoso pelo faro da filha, mas fingiu uma certa irritação.
     - Não vou te contar mais nada - nada!
     - No trabalho jornalístico, alguns "sem comentários" são apenas confirmações - disse a estudante, entre risinhos irônicos.
    Mário não respondeu. Apenas acariciou os cabelos de Natalia e se preparou para descansar um pouco no colchão inflável que tinha acabado de encher. 
     - Queria te oferecer uma cama decente, mas sabe como é república né...
     - Acho que me lembro da minha época de estudante, sim.


     São Paulo, terça-feira, 17 de setembro de 1991

     Mário acordou muito cedo, com o corpo tenso da noite passada num colchão estranho. Virou-se de costas, olhou o teto por alguns minutos, e pensou no que fazer. Era preciso decidir logo, e avisar o chefe dos próximos passos que tomaria. Uma coisa era certa: não voltaria para Campos do Jordão, como esperava o delegado Lúcio.
     Levantou-se. Foi ao banheiro, e jogou uma água gelada na cara. Olhou-se no espelho: aparência cansada. Voltou para a sala e consultou o relógio: seis e meia. Àquela hora, Júlia ainda estaria em casa, mas já acordada. 
     Mário resolveu ligar para ela.
     - Por favor, avise o delegado que eu não devo voltar hoje. E que depois faço contato.
     - O que está acontecendo, Mário? Ontem ele recebeu uma ligação daí de São Paulo, e ficou de péssimo humor. Saiu da sala chutando o vento…
     - Peça pra ele não "matar a mensageira"... Quando eu próprio souber o que está havendo, te conto. E a ele também, é claro. 
     - E como ele faz pra te encontrar?
     - Não faz. Eu ligo pra ele.
     Mário desligou antes que Júlia tivesse chance de protestar. 
     Voltou para o colchão, dobrou o lençol e o cobertor recém-usados; foi até a cozinha e ligou a cafeteira. 
     Enquanto observava a fumaça saindo da caneca fervente, começou a clarear as ideias, recapitulando o que sabia até aquele momento. O caso tinha avançado pouco, mas era uma investigação perigosa - não havia dúvida. Necessário tomar muito cuidado. 
     "Acho que vou visitar o doutor Flávio no hospital. Lá talvez alguma ideia me ocorra". Com este pensamento, Mário pegou o paletó e saiu do apartamento com a chave reserva que a filha lhe emprestou. 


     

Interstício V

     Que dia é hoje? Há quanto tempo estou neste quarto de hospital? Faz tempo que Shirley saiu daqui? Alcebíades estava com ela. Fazia algum tempo que não o via. Conseguiu espaço em sua apertada agenda de empresário das comunicações para visitar este velho amigo."Amigo"... será que ainda podemos usar esta palavra para definir nossa relação? Não seria mais adequado "sócios"? Ou "comparsas"? Sim... o velho Alce é meu companheiro naquele antigo contrato de venda ao diabo, que escrevemos e assinamos com nosso sangue.
     As coisas tomaram uma velocidade vertiginosa naquele agosto de 54. Getúlio Vargas tinha acabado de se matar. Alguns parentes distantes de Crisóstomo ainda dependiam da pouca influência que tinham no governo; vinham se ressentindo da crise política que afetava o país.  Aquele golpe foi duro. A incerteza se espalhou pelo Brasil como fogo em palheiro. Ninguém sabia o rumo que Café Filho daria ao país - mas sabia-se que os aliados do presidente morto não teriam espaço em qualquer nova composição desenhada pelo vice, que àquela altura somava com os adversários de Getúlio. 
     O crime da rua Tonelero, que resultou na morte do major Rubens Vaz, da FAB, e feriu o jornalista Carlos Lacerda, tinha sido a gota d'água num balde cheio de agonia e denúncias. Sim, o "pai dos pobres" tinha amargado seu calvário particular antes de tomar aquela extremada atitude.
     Por causa de sua morte, muitos antigos detratores e rivais se tornaram, da noite para o dia, comovidos defensores da memória do presidente. Aquela hipocrisia enojava Crisóstomo. "Não sustentam sentados o que falam de pé, esses abutres", comentava referindo-se à classe política então em evidência. "Não existe o 'bom combate' nesse ambiente pestilento, Flávio. Temos que encontrar nosso próprio campo de batalha pra consertar esse país. E não pode ser no meio desses hipócritas". 
     Nas rodadas seguintes de carteado do nosso "grupo dos seis", o debate político ocupou o pano de fundo. As ideias "revolucionárias" de Crisóstomo eram o prato principal. Alce e Ricardo estavam entre os maiores entusiastas. Ouviam embevecidos. Ricardo, principalmente, levava muito a sério tudo que saída da boca de Crisóstomo. Concordava em silêncio, balançando a cabeça. De vez em quando, exprimia suas opiniões, sempre em tom de voz exaltado, com paixão: "só tem um caminho pra mudar as coisas: é o caminho das armas". Se Crisóstomo concordava, não dava sinais. Ele falava de uma revolução mais ideológica e, de certa forma, mais profunda do que a pregada pelo estudante de jornalismo. Claro que, como ficou comprovado anos mais tarde, isso não implicava em aversão à violência ou opção pelo pacifismo. Crisóstomo me parecia um pensador mais voltado para Churchill do que para Gandhi. Tinha lá suas argumentações aparentemente ingênuas, de "mundo perfeito" e igualdade entre os homens... mas não excluía as armas como caminho para chegar lá. Já para o Ricardo, as armas pareciam ser um fim em si mesmas. O negócio, para o futuro jornalista, era lutar. Contra quem, pouco importava. Crisóstomo parecia ter um foco mais definido. Mas naquela época não abria totalmente seus objetivos com a gente. 
     Passados alguns anos, terminei o curso de direito com louvor. Crisóstomo tinha abandonado a escola no semestre anterior, quase na reta final do curso. Misteriosamente, decidiu largar tudo e voltar para Ribeirão Preto, onde os negócios da família pareciam exigir sua atenção imediata. Pelo menos esse foi o argumento apresentado por ele. 
     Casei-me com Shirley. Em nenhum momento nossas convicções religiosas díspares pesaram na balança do meu afeto. Eu tinha certeza que ela era a mulher da minha vida, desde que começamos a namorar, anos antes. O judaísmo nunca foi um alicerce na minha vida, a bem da verdade. E Shirley, embora batizada, também não podia ser definida como uma católica praticante. De forma que a religião não nos trazia grandes motivos para confrontos. A minha amizade com Crisóstomo, que continuou firme mesmo depois da partida dele, essa sim, era causa de alguns debates acalorados. 
     Não podíamos nos casar na igreja pela minha condição de "não-batizado". Me propus a receber o sacramento, caso Shirley fizesse questão da cerimônia. Prática, ela pensou na grande influência da Igreja Católica no Brasil; considerou as decisões dos futuros filhos que teríamos a respeito das opções religiosas que fariam; e resolveu que seria melhor tomarmos as providências necessárias para que eles pudessem ser batizados e, quando tivessem idade suficiente, escolher se queriam continuar sob a luz da Igreja Católica ou não. Por causa disso, batizei-me e nos casamos de acordo com as regras católicas. 
     Advoguei por pouco tempo. Fiz concurso para promotor, depois para juiz. Assumi uma das varas criminais na capital. Uma vida produtiva e honrada. 
     

     A enfermeira checa pela milésima vez a agulha enfiada no meu braço. Uma dor cortante e fria, ampliada pela pele hipersensível, se espalha pelo meu corpo. 




14

Terça-feira, 17 de setembro de 1991 - recepção do hospital


     Mário decidiu que deveria passar incógnito naquela visita ao juiz - até porque ele ainda não estava em condições de receber ninguém, inconsciente. O inspetor não teria como justificar uma visita, e tal pedido provavelmente seria recusado imediatamente. Posicionou-se na recepção, esperando. Quando as atendentes se ocuparam de outros visitantes, verificando dados ou anotando informações sobre os pacientes, ele aproveitou para se dirigir aos elevadores. Passou diante de dois homens armados - policiais civis designados para a segurança do juiz. Achou melhor seguir pelas escadas. Subiu um andar e só então chamou o elevador. Por sorte, um deles não demorou a abrir as portas. Mário entrou e apertou o botão do sétimo andar, onde ficavam as UTIs. "Segurança relapsa", pensou enquanto subia. 
     O corredor estava deserto. Numa porta à esquerda Mário leu "almoxarifado". Experimentou a maçaneta. A porta estava aberta. Entrou ali e verificou o pequeno lugar. Encontrou um macacão e um boné de faxineiro. Vestiu-os. Pegou um esfregão e um balde com rodinhas, abriu a porta e saiu novamente para o corredor. 
     Enquanto simulava uma limpeza no chão, Mário ia observando as salas. Havia uma sala de espera com dois sofás e uma mesa de centro. Sobre ela, alguns copos plásticos vazios, com restos de café. Umas revistas jogadas. Migalhas de pão e biscoitos. Sinais claros de que o lugar era ocupado por gente que ficava ali muito tempo - seguranças, com certeza. Mas onde estavam eles agora? Mal sinal deixar o andar do juiz desguarnecido daquela maneira. 
     Até o fim do corredor outras oito portas eram ocupadas por pacientes e aparelhos de UTI. No fim do corredor, uma porta corta-fogo dava acesso à saída de emergência. "Bom saber disso, pode ser necessária", pensou o detetive. 
     Uma enfermeira saiu do elevador carregando uma bandeja com alguns frascos. Não devotou qualquer atenção ao faxineiro. Entrou numa das salas e lá ficou por alguns minutos, verificando os aparelhos. Depois foi embora por onde entrou. 
     Mário verificou quem eram os ocupantes das salas. Encontrou o juiz Flávio na de número 2, perto da sala de espera. O paciente estava entubado e ligado a uma infinidade de cateteres. Uma cena triste. 
     Uma hora se passou e o investigador já pensava em ir embora quando, de repente, ouviu atrás de si a porta do elevador se abrindo. Imediatamente começou a esfregar o chão, puxando o boné de faxineiro para esconder os olhos. 
     Dois homens. Não são médicos, a julgar pelos sapatões militares que calçam. Mário ergueu um pouco mais a vista e notou que os dois estavam vestidos com ternos pretos um pouco surrados. Um deles lhe chamou mais a atenção. Onde ele já tinha visto aquele rosto? O queixo pontudo, o pescoço magro com a glote saltada… os cabelos claros. Aqueles cabelos claros! Como num flashback, Mário se viu novamente atirando contra um carro preto que passava por ele em alta velocidade. O passageiro. Era a mesma pessoa que agora estava à sua frente, acompanhado de outro sujeito. Mário baixou a cabeça e fingiu continuar o trabalho. Os dois homens pararam. Pareciam surpresos com a presença de alguém no corredor. Mário aguçou os ouvidos para tentar entender o que cochichavam:
     - Não era para estar vazio aqui? - perguntou o outro homem desconhecido.
     - Cale a boca e vamos embora.
     O de cabelos claros se virou para o elevador, sem perda de tempo. Os dois apertaram o botão e esperaram. Enquanto isso, observavam aquele faxineiro, com olhar feroz.
     _ Não era pra ter faxina aqui a essa hora.
     - Cale a boca, já mandei. O loiro olhou para o faxineiro, curioso e irritado. 
     Ficou evidente para Mário que eles queriam o lugar absolutamente vazio àquela hora… mas para quê? 
     O elevador chegou. Mário tomou uma decisão rápida: agarrou o esfregão e o balde e entrou no elevador junto com os dois homens. 
     _ Bom dia - disse ele, tomando o cuidado de manter a cabeça baixa, para evitar um improvável reconhecimento pelo homem loiro que o perseguiu em Campos do Jordão. Aproveitou-se disso para verificar que os dois sujeitos estavam armados. Pelo cabo preso ao coldre de peito ele identificou as armas, mal escondidas dentro dos paletós:  9mm. Uso restrito.
     A descida de sete andares foi tensa e interminável. Os dois homens se olhavam em silêncio e desconcertados. Mário permaneceu em silêncio, simulando examinar os botões do próprio uniforme. "Essa campana rendeu mais que eu esperava, e mais rápido que eu pensava". Agora o desafio era dar um jeito de seguir os dois, onde quer que fossem. "Como esses caras conheciam tanto a rotina do hospital, para saber a hora em que o andar das U.T.I.s estaria  deserto?" Uma pergunta que sem dúvida merecia uma resposta. 
    A dupla saiu do elevador, atravessou rapidamente a recepção do hospital e tomou o rumo do estacionamento. Mário esperou eles passarem pela porta e retirou o boné. Ficou observando a direção que tomaram e colocou-se atrás de uma ambulância que parava. Quando o carro dos dois homens passou, anotou mentalmente a placa. Rapidamente, dirigiu-se para seu próprio carro enquanto se desvencilhava do macacão de faxineiro. Ainda conseguiu alcançar o veículo quando ele tomava a rua. 
     Mário manteve-se afastado, sempre com pelo menos um carro entre ele e os dois homens, torcendo para que eles não fossem tão perspicazes quanto ele próprio.
     O caminho foi longo e lento, ditado pelo ritmo do trânsito caótico da capital. Mas, ainda longe do destino, Mário já imaginava para onde estava indo.
     Não se enganou. Logo se viu diante do prédio largo e concretado da DEIC. 
    O carro dos sujeitos parou numa das vagas. Eles desceram e entraram. Mário ficou no carro por alguns minutos, esperando. Depois foi embora. Quando fez a consulta da placa do carro dos homens, verificou uma estranha coincidência: era um veículo apreendido, de um conhecido traficante. Não constava retirada do pátio da polícia. O cérebro de Mário começou a funcionar velozmente. Como os dois sujeitos conseguiram passar pelos policiais no hospital e subir armados tão facilmente até o andar onde estava o juiz? Fizeram como ele, simplesmente evitando os elevadores da recepção? Ou seriam conhecidos dos policiais, talvez mancomunados em alguma tarefa extra-oficial? Como conseguem carros que deveriam estar apreendidos? O desenho que se formava na cabeça do inspetor não era nada bonito. Talvez o atentado tivesse alguma ligação com o comando da polícia civil no Estado.



     Quando tinha 10 anos Mário ouviu pela primeira vez a palavra que jamais esqueceria: "savantismo". A síndrome do sábio. Um nome estranho para batizar um mal  que acomete principalmente pessoas com graves deficiências cognitivas. O fenômeno foi descrito pela primeira vez na literatura médica ainda no final do século XVIII; mas nenhum cientista desde então conseguiu comprovar o que causa essa curiosa disfunção.
     A forma como o savantismo veio a fazer parte da vida de Mário é bastante comum. O menino ia mal na escola. Não havia aula de reforço que o ajudasse. Era descrito pelos professores como um aluno relapso, desconcentrado, pouco sociável e, por vezes, irritadiço. Desconfiaram da possibilidade de autismo em nível leve e avisaram os pais. O pai de Mário era jornalista. A mãe, dona de casa. Não tinham nenhuma informação sobre o autismo. Ficaram preocupados e resolveram procurar um psiquiatra. Foi este profissional que diagnosticou o verdadeiro problema. 
     Logo de início descartou autismo. Havia algumas características semelhantes, mas não com a profundidade necessária para fechar o diagnóstico. Tampouco encontrou sinais de retardo mental. Nada mais distante da verdade. O psiquiatra notou logo o interesse de Mário pelas figuras que mantinha no consultório penduradas nas paredes. Eram coloridas gravuras do Japão feudal, com samurais em armaduras ricas em detalhes, gueixas em quimonos estampados e coloridos. Aquilo parecia fascinar o menino. Resolveu então fazer alguns testes.  Pediu para o paciente observar uma sucessão de formas geométricas e cores diferentes, numa sequência de 10 gravuras. Eram quadrados, triângulos, círculos; amarelos, vermelhos, azuis. Mostrou cada uma por menos de dois segundos. Depois misturou as fichas e pediu a Mário que repetisse a sequência em que tinham sido exibidas, tanto quanto se lembrasse.
     Não houve uma falha sequer. 
     O terapeuta notou que a matéria em que o jovenzinho ia melhor na escola era Geografia e, por extensão, História. Investigou o motivo disso: apresentou ao paciente um mapa detalhado da Europa. Pediu que ele olhasse por um único minuto. Sabia que aquela região do Globo ainda não tinha sido apresentada ao garoto na escola. Era uma das primeiras vezes que ele se defrontava com a imagem do lado de lá do Atlântico. Todos os países estavam nomeados. Passados sessenta segundos, o analista escondeu o mapa e ofereceu outras atividades: um cubo matemático, imagens do teste de Rorscharch, figuras de paisagens e formas geométricas. Uma hora se passou. Antes de encerrar a sessão, o psicoterapeuta apresentou outro mapa para o paciente. Era idêntico ao primeiro, exceto pelo fato de que neste não estavam escritos os nomes dos países. O analista pediu que Mário identificasse todos os países. Ele conseguiu. Não apenas os grandes ou mais destacados, mas todos os pequenos territórios que formavam a poderosa União Soviética. Sem errar nenhum. Rapidamente e sem hesitação.
     Na sessão seguinte o terapeuta tentou o exercício de novo, dessa vez com um atlas do corpo humano. O método foi um pouco diferente. A criança observou a imagem por apenas 15 segundos com todos os órgãos identificados. Depois, distrações. No fim da seção, outro atlas com os nomes dos órgãos ocultos. Mário identificou todos corretamente e, não satisfeito, ainda nomeou algumas da principais artérias do corpo. 
     Certo dia, o psiquiatra notou que Mário desenhava algo na sala de espera antes da sessão começar. Aproximou-se e pediu para ver. Ficou impressionado e não conseguiu fechar a boca. O menino tinha reproduzido uma das gravuras da sala do terapeuta: um samurai numa armadura cheia de desenhos de dragões e lobos. Cada fecho de metal, cada braçadeira, as perneiras de couro, estava tudo ali. Incrédulo, o psiquiatra comparou o desenho com a gravura dentro de sua sala. As proporções no trabalho de Mário não eram tão perfeitas, mas nenhum detalhe tinha ficado de fora. “Você copiou isso de algum lugar, Mário”, perguntou. O menino sacudiu a cabeça negativamente. “De onde tirou tantos detalhes?”, insistiu. “Eu lembro deles”, Mário respondeu simplesmente. 
      A conclusão veio em seguida. O terapeuta comunicou os pais sobre a estranha habilidade do garoto. Mário tinha um Q.I. apenas razoável, nada que se pudesse comparar à genialidade ou mesmo à inteligência acima da média. Mas era capaz de algo muito raro: não se sabe exatamente por quê, algumas mentes têm o poder de registrar informações ou imagens com perfeição, instantaneamente. Dá-se o nome popular de "memória fotográfica". Também conhecida como memória eidética.  Embora Mário não apresentasse sinais clássicos de retardo ou autismo, havia uma certa propensão à desconcentração, uma dificuldade em assimilar mais de uma informação ao mesmo tempo. Esta característica, porém, não impedia que o menino  armazenasse imagens com perfeição milimétrica. O mesmo resultado não se verificava em textos ou números. Mas era marcantemente presente na identificação de feições, formatos, tamanhos, cores. Tudo registrado e guardado em algum lugar do cérebro, pronto para ser sacado em situações aleatórias e incontroláveis. De fato, Mário já demonstrava capacidade de lembrar os nomes de pessoas que havia encontrado por alguns minutos apenas, mesmo muito tempo depois de se separarem. Registrava rostos só de observá-los por um segundo num álbum de fotografias. Junto à memória visual vinha todo um registro do contexto em que aquela pessoa havia sido vista pela primeira vez. 
     Os pais prefeririam um filho com Q.I. acima de 130, o que se usava considerar um gênio na época. Não viam muita utilidade para aquele poder de recordar imagens. A mãe achou que um dom daqueles poderia se tornar uma maldição, nunca esquecer cenas aalegres e bonitas,mas, por conseguinte, também se lembrar para sempre de imagens terríveis de sofrimento e angústia. O pai foi mais pragmático ao pensar no caso: “só se ele for trabalhar no jornalismo ou na polícia, pra ajudar a identificar entrevistados ou suspeitos", disse, amargo. 
     Mas o menino entendeu que aquilo devia ser bom. Se não fosse, caberia a ele fazer com que se tornasse uma dádiva, e não um castigo. Esforçou-se ainda mais nos estudos. Treinou a memória fotográfica, tentando expandi-la para outros campos, como textos e música. Começou a pintar, seduzido pela beleza das cores e nuanças que pareciam infinitas. Com o tempo se tornou capaz de memorizar toda uma cena só de olhá-la uma vez. Quando assistia a um filme, recordava detalhes que ninguém mais percebia. Virou o terror dos continuístas do cinema, por encontrar falhas mínimas em caracterizações de época ou sequências de cenas. Notava instantaneamente, por exemplo, quando um objeto pequeno e secundário como um copo ou uma caneta aparecia numa cena e não estava mais lá na sequência. 
     Com as lições da escola o processo de melhora foi mais sofrido. Exigiu metodologia da parte do aluno. Mas outra característica do jovenzinho começou a se destacar: a teimosia. Acabou suprindo a falta de brilho da própria inteligência com esforço e método. Aprendeu a organizar as ideias e informações, como se tivesse um fichário no cérebro. O resultado logo se mostrou nas notas escolares que subiram a olhos vistos. Nesse trabalho de autoconhecimento e aperfeiçoamento, o terapeuta teve um papel importante. Ajudava Mário a entender a própria condição, indicava caminhos, sugeria leituras. Mário conseguia ler mesmo no meio de uma manifestação pública. E quando lia, era um desafio tirá-lo do que estava fazendo e conquistar-lhe a atenção.
     Mário foi considerado distraído e desligado durante toda a juventude e começo da idade adulta. Ele mesmo acreditava nisso, até que o psiquiatra o ajudou a encontrar a verdade: tinha uma atenção dirigida, focada. Era capaz de se concentrar no jeito como alguém segurava um copo numa boate cheia de gente e barulho. 
     Quando ele se decidiu pela polícia, como que confirmando a profecia do pai, isso se mostrou uma ferramenta importante. Ajudou o detetive a identificar inconsistências em cenas de assassinatos, suspeitos de crimes, vítimas, pessoas que de uma forma ou de outra cruzavam seu caminho - como o homem loiro que tinha tentado matá-lo em Campos do Jordão, e que o inspetor só tinha visto de relance dentro do carro em movimento, por menos de um segundo.
      Esse foco mental se traduzia também no modo como olhava para as pessoas. Era como se fosse entrar na mente delas e tudo o mais deixasse de existir em redor. Essa foi uma característica muito útil na ocasião em que ele conquistou a atenção da bela moça que depois se tornou sua esposa. Ela tinha ido à delegacia dar parte de um furto. Mário não tirava os olhos dela, com expressão que misturava encantamento e seriedade. “Você está ouvindo o que estou falando”? reclamou a jovem, achando que o policial estava aproveitando a situação para admirá-la apenas. Ficou mais tranquila quando Mário repetiu tudo que ela havia contado, cada detalhe pequeno, sem consultar nenhuma anotação. O furto nunca foi resolvido, mas a ligação entre os dois estava criada. “Quando você me olha eu me sinto o centro do Universo”, disse Suely logo que começaram a namorar. Ela não poderia imaginar àquela época que Mário olhava do mesmo jeito para suspeitos ou testemunhas de crimes, ou qualquer pessoa que lhe chamasse a atenção por qualquer motivo - ele simplesmente não podia evitar. Claro que se Suely soubesse disso aquela característica perderia muito do charme. Mas quando ela descobriu que era assim, já estavam casados e com a primeira filha a caminho. 
     O modo como Mário se movimentava também parecia traduzir a forma como seu cérebro processava informações. Era um andar inconstante, como se a cada passo ele pudesse mudar de direção. Não era lento, mas não poderia ser chamado de ligeiro. Os braços estendidos ao longo do corpo se moviam com vigor e, por vezes, as mãos se erguiam um pouco, como se ele quisesse pegar uma ideia solta no ar à sua frente. Era como se estivesse pensando em qualquer coisa, menos no que tinha diante do nariz. Um cego se movendo por instinto. Mais de um marginal interpretou erroneamente aqueles sinais corporais como fraqueza, indecisão ou mesmo covardia. Pagaram pelo erro.  
     Os horizontes se expandiram, mas o ponto forte da memória especial de Mário sempre foi a informação visual.  Uma espécie de compensação pela dificuldade que o policial trazia desde os tempos de criança, para assimilar a variedade de informações que chegavam aos seus sentidos ao mesmo tempo. Ele podia não notar o que via imediatamente, mas acabava arquivando aquilo na memória. Um arquivo que era acessado inesperadamente, ativado por algum “gatilho” interior que ele não conseguia controlar.  
      
    

Interstício VI

Foi mais ou menos na época do nascimento de Miriam que Crisóstomo marcou uma noite de jogatina com os antigos colegas. Depois da terceira rodada de pôquer e uísque ele revelou o objetivo do encontro.  "Tenho um plano". E começou a falar. 
     Minha surpresa crescia `a medida que a exposição de meu colega se desenrolava, como um pergaminho bem guardado que de repente revela seus segredos. Não acreditava que ele estava realmente convicto a fazer o que dizia. Olhava para os outros em redor da mesa e tentava identificar seus pensamentos. Todos pareciam tão surpresos quanto eu. Ricardo misturava a surpresa em sua expressão com um brilho de sincero entusiasmo pelo que estava sendo dito. Alcebíades acenava afirmativamente de vez em quando, segurando o queixo com as mãos. Os outros permaneciam quietos, olhos muito abertos, ouvindo atentamente. 
     Crisóstomo falou de sua ideia de criar uma força particular, uma milícia, com recursos próprios e recrutando gente inconformada como ele. A missão seria continuar o que a justiça convencional deixava pela metade. Levantar informações sobre os verdadeiros criminosos - os mais perigosos na opinião dele - os corruptos que saqueavam o país. Localizar suas fontes de financiamento, suas estruturas, e atacar onde mais dói: no bolso. 
     Crisóstomo disse já ter recrutado os homens necessários para fazer o trabalho "de campo": assaltos a lojas, bancos, seguradoras que na verdade serviam apenas de "lavanderias" para o dinheiro sujo das propinas que se espalhavam em contratos do governo em todas as esferas. Os alvos tinham sido definidos graças à pesquisa de Ricardo e Alcebíades com suas fontes na imprensa. Alcebíades era herdeiro de um importante grupo de comunicação e acabou descobrindo por dentro como funcionavam as negociatas da república. Empreiteiras, oligarquias políticas, clãs dominantes do setor de transportes… a sujeira era sistêmica. Todos participavam de alguma forma. 
     Além das fontes de Ricardos e Alce, Crisóstomo também disse ter usado métodos “pouco ortodoxos” para coagir algumas pessoas com acesso a informações secretas. Pessoas em colocações estratégicas em órgãos de investigação dentro do governo federal e da polícia. 
     Mas como enfrentar inimigos tão poderosos sem se destruir? Seria suicídio!
     Não para Crisóstomo. 
     O grupo não teria um padrão de ataque. Não teria um estatuto, um código, nem mesmo um nome. Atacaria rapidamente e se esconderia imediatamente. Cada célula funcionaria de forma independente e aleatória, sem prestar contas a nenhum centro de comando. Tudo que receberiam seria um número secreto de uma conta, onde deveriam depositar o fruto dos saques, sem saber de onde partiam as instruções, nem quem receberia o dinheiro. O único interesse dos milicianos seria o próprio lucro - um objetivo fácil de controlar, sem perguntas ou maiores aprofundamentos sobre o que estavam fazendo. Seriam soldados fieis enquanto recebessem o que lhes cabia. Para sustentar essa estrutura volátil, o dinheiro dos próprios inimigos seria repartido entre os integrantes do esquema. “Vamos jogar um tipo de ladrão contra outro, mais perigoso: o de colarinho branco. E vamos ficar com o espólio da destruição dos dois grupos”, calculou. “As nossas vítimas não vão reclamar para as autoridades, porque não terão como explicar a origem do que roubamos”. 
     Todos resolveram participar, mas eu relutei. Me assustava a ideia de uma organização tão anárquica, como uma confraria ou uma irmandade sem estatuto. Minha mente jurídica se revoltava contra aquela falta absoluta de regras. Mas Crisóstomo acabou me convencendo. "O país vai ser outro quando terminarmos… não haverá mais crianças morrendo de fome por causa de desvio de recursos da merenda para pagar propina de corruptos… ninguém mais ficará sem remédios por causa de roubos na saúde pública. Vamos mudar esse país por dentro… e sem nunca receber um agradecimento por isso, já que vamos agir no mais completo anonimato". 
     Acabei aderindo. Difícil resistir ao poder de sedução que emanava  daquela mente criativa. No dia seguinte, Crisóstomo me chamou para uma conversa particular. Fez uma proposta: gostaria que eu cuidasse dos fundos da organização. Surpreendido, eu quis saber o por quê daquela escolha:
     - Eu só conheço uma pessoa que liga menos para dinheiro do que eu mesmo - ele respondeu. 
     Eu sorri.
     - Então, aceita o encargo? - perguntou ele, ajeitando os óculos. 


São Paulo, 1978
     Um velho depósito perto do Terminal Tietê

     O grupo chegou em dois furgões negros. Um deles parou na esquina fechando a rua. O outro avançou rapidamente até a porta blindada de um armazém, supostamente abandonado.
     Dois homens desceram armados. Um terceiro foi diretamente até a porta blindada e colocou um explosivo junto ao trinco. A explosão incandescente sacudiu a rua. Os dois homens armados entraram, seguidos pelo que detonou a porta. O furgão que vigiava a esquina se dirigiu para o armazém e dele saíram mais três homens, com grandes mochilas vazias. Dentro do prédio os assaltantes ignoraram velhas caixas de madeira e armários de metal. Foram para os fundos. Usaram outra carga explosiva para tombar uma grande estante de metal, cheia de latas de tinta. Embaixo da estante, encontraram um alçapão trancado. O pé-de-cabra que tinham nas mãos foi usado rapidamente para arrebentar o cadeado. Dois homens desceram a curta escadaria de madeira e começaram a transferir grossos pacotes de dinheiro para as mochilas que trouxeram. Os motoristas que ficaram nos furgões invadiram o armazém e esperaram os veículos serem carregados com diversas mochilas repletas de notas graúdas. Segundos depois os dois furgões saíram do prédio, antes da polícia chegar. 
     Mais tarde, os ladrões comemoravam o que para eles parecia quase impossível. Jamais descobririam um golpe como aquele.
     - Me conta de novo como ficou sabendo disso, Odair.
     - Te disse! Um contato super confiável, que me passa dicas há anos, me deu uma chave de uma caixa de correios, na agência da Luz. Disse que dentro dela tinha uma dica de um serviço. Fui até lá e encontrei um pacote com tudo preparadinho. Explicava que tinha uma fortuna em dinheiro sujo nesse armazém; explicou exatamente onde encontrar a grana. E informava que eu podia ficar com tudo, menos Um milhão de cruzeiros que terei que depositar, em quantias menores, durante seis meses, numa conta de um banco que tava anotada no pacote. 
     - Que louco isso. E quem é o contratante?
     -Não faço a menor ideia. A caixa de correio, eu investiguei, tava alugada no nome de um tal Orlando Brás. Só que tem um problema: esse tal de Orlando Brás morreu em 68.
     - Quem será o dono do armazém que a gente invadiu?
     - O dono é um empresário do ramo de construção civil, que tem vários contratos com manutenção de estradas e obras públicas do governo federal. Genro de um deputado estadual influente. Cara, ninguém me tira da cabeça que essa grana toda vem de alguma propina cabeluda! Se bobear, o dono do armazém não vai nem poder dizer pra polícia o que foi roubado!
     O comparsa de Odair pensou um pouco:
     - E se a gente ficar com tudo? Pra quê depositar essa grana toda pra um desconhecido?
     - Já pensei nisso. Mas veja, 1 milhão é 10% do que a gente faturou hoje. Sem dar um tiro, tudo muito limpo, serviço bem planejado. Quem quer que tenha elaborado tudo isso, é alguém que merece respeito. Alguém perigoso. Vamos fazer tudo como foi combinado e quem sabe ele não nos passa outros desses contratinhos misteriosos?
     - E se a gente der um aperto no contato que te passou a chave?
     - Pensei nisso também... ele apareceu morto no rio Tietê, na marginal. Tiro na cabeça.
     Silêncio.
     - Vamos fazer o que a carta manda - decidiu o comparsa.  
     Quando o último pagamento foi feito, meses depois, Odair foi pegar o jornal na porta de casa e encontrou um envelope pardo, igual ao que tinha encontrado na caixa de correios. Era mais um plano de ataque. 
     "Caramba, agora nem usaram intermediário", pensou, enquanto levava o envelope pra dentro de casa. 



Brasília, 1980
Conselho de Combate à Lavagem de Dinheiro, Ministério da Fazenda


     O diretor abriu a pasta que tinha diante de si, sobre a bela mesa de mogno com  tampo de vidro. Ia começar a estudar os documentos quando a secretária entrou na sala. Ele não ficou indiferente à visão daquela fêmea. Vestido vermelho colado ao corpo, uma fenda provocante deixando ver a coxa direita, decote generoso. A mulher se debruçou sensualmente sobre a mesa do chefe e lhe estendeu um envelope em papel pardo, fechado com cola. “Acabou de chegar pela expedição, chefinho”, disse a moça com voz manhosa. Os cabelos castanhos ondulados caíram sobre os ombros bem feitos. Os olhos de um leve tom esverdeado sorriram junto com os lábios grossos. “Obrigado querida”, respondeu o diretor, aproveitando para acariciar os dedos da mulher enquanto pegava o envelope. Ficou observando as ancas da funcionária que saía da sala. “Definitivamente, trabalho com gente de qualidade”, pensou maliciosamente. Ajeitou o pênis que reagiu instintivamente ao andar da secretária: tem vontade própria, o danado. Só depois que a porta se fechou ele deu atenção ao envelope. 
     Não havia remetente. Apenas uma etiqueta, dessas que se compra em qualquer papelaria, com o nome do destinatário em máquina de escrever : Anselmo Varriz, diretor de inteligência, CCLD. Anselmo pegou um estilete na gaveta e abriu o alto do envelope. Enfiou a mão e retirou o conteúdo. 
     Começou a ficar vermelho, depois pálido. Os olhos foram espremidos pelas sobrancelhas que se fecharam numa expressão incrédula; na sequência se arregalaram numa máscara de espanto. A boca semiaberta tremulou, incrédula. Anselmo custou a atinar com o que tinha diante de si. 
     Eram várias fotos. Dez para ser exato. Preto-e-branco. Bom enquadramento, havia que se admitir… o fotógrafo conseguiu um flagrante perfeito. Nas imagens Anselmo aparecia em diferentes posições durante o sexo com a funcionária que havia acabado de sair de sua sala. Reconheceu imediatamente as fotografias como um registro minucioso de algum “horário do almoço” que passaram juntos, talvez semana passada, talvez um pouco mais antigo. 
     As mãos de Anselmo começaram a suar. Os dedos trêmulos deixaram algumas das fotos caírem no chão. Ele se abaixou nervosamente para pegar e bateu a cabeça na mesa. Soltou um palavrão. Olhou, olhou mais uma vez… Tinha sido pego com a boca na botija. Largou as fotos sobre a mesa, olhou para os lados como que buscando um consolo para o próprio desespero. Acariciou a aliança no anelar esquerdo… Como tinha se deixado levar para aquela armadilha? Jacinta certamente estava mancomunada com o fotógrafo, aquela vagabunda. Traidora. De que outra forma o homem poderia ter feito fotos tão perfeitas? Só com a ajuda dela. 
     Anselmo olhou de novo para o envelope. Inspecionou o interior à procura de alguma pista do remetente. Acabou achando uma folha de papel sulfite com letras recortadas de revistas e jornais, coladas formando uma única palavra: “Colabore”. Não havia dúvida. Seria chantageado. Não poderia permitir que aquelas imagens chegassem às mãos da esposa… pior, do sogro, o padrinho político que conseguiu aquela colocação de destaque para ele no Conselho. Mas o que quer o chantagista? Nenhuma palavra sobre isso.

     No dia seguinte Jacinta entrou de novo no escritório, blusa branca de cetim com alguns botões abertos deixando entrever detalhes de um belo par de seios… saia preta acima dos joelhos, colada no corpo como ela - e ele - gostam. “Outro envelope, chefinho”, disse a secretária, aparentando a mais cristalina das inocências. “Saia e feche a porta”, respondeu bruscamente o diretor, desconfiado da amante. 
     O envelope era igual ao outro. Mesmo material, mesma etiqueta preenchida com a mesma máquina de escrever. Dessa vez Anselmo começou a suar frio antes mesmo de abrir o envelope. 
     Dentro dele outra mensagem escrita com letras recortadas e coladas. “Arquivo 36. Deixe uma cópia na lixeira verde da praça em frente ao conselho, às 7 da noite. Não fale com ninguém ou as fotos vão para sua esposa”. 
     A dor de estômago fez com que Anselmo se levantasse bruscamente e fosse até a janela, arfante. Afrouxou o nó da gravata, abriu o colarinho, olhando para a praça em frente ao escritório. “Arquivo 36”. 


     Às sete em ponto Anselmo passou pela lixeira na praça, que ficava bem em frente à entrada do prédio do CCLD. Olhou para os lados, desconfiado. Ninguém por perto. Tirou da maleta um pacote embrulhado em papel encerado e jogou dentro da lixeira. Depois afastou-se rapidamente pensando no tipo de informação que o chantagista desejava: não pediu dinheiro, nem arquivamento de alguma investigação financeira. Só aquele arquivo. Aproximadamente 300 folhas de papel com nomes, números de contas e relatórios de rastreamento de mais de 50 suspeitos de lavagem de dinheiro. Gente de destaque no Governo e fora dele, corruptos e corruptores. Informações que, na grande maioria, foram parar em gavetas empoeiradas do Conselho, por comprometerem gente poderosa demais. “Não convém mexer com isso, mas é bom ter a informação”, dizia o superior de Anselmo. Informação é poder. 
     Anselmo voltou para casa. Beijou a esposa, brincou com os filhos, jantou normalmente. Mas não conseguia parar de pensar nas consequências que aquele vazamento teria para a República. “E agora, o que vou fazer com aquela puta da Jacinta?”, matutou, durante a sobremesa. 


Diadema, 1981

     - Encontrei isso na gaveta do morto, Nepomuceno. 
     O investigador se voltou para o assistente que trazia um papel na mão. Era uma carta escrita com letras recortadas de revistas e jornais. “Ok, agora estou num filme policial ruim”, pensou. Mudou de ideia quando leu o conteúdo do bilhete. Poucas palavras e números indicando provavelmente um acontecimento. As palavras diziam onde, formavam um endereço; os números mostravam quando. Uma ordem. Era o que significava aquela carta. 
     Se estivesse interpretando corretamente, aquele papel trazia instruções sobre o crime ocorrido semanas antes, de que a vítima, estirada no chão da sala com a cabeça estourada, era suspeita. Um assalto a um escritório de contabilidade, notório por manter clientes um tanto “questionáveis” do ponto de vista ético. Naquele crime não levaram dinheiro, só documentos e livros-caixa. Isso chamou a atenção da polícia. E havia um complicador: alguns clientes do escritório eram investigados por corrupção, e outros eram bem relacionados com as autoridades.
    No bilhete lia-se o nome do escritório, o horário em que o assalto tinha sido cometido e uma frase aparentemente fora de contexto: “arquivos e documentos contábeis”, lia-se claramente. Agora, o provável autor do assalto, que tinha cumprido à risca o que estava determinado na estranha carta, jazia ali no chão, manchando o carpete de vermelho. Uma queima de arquivo? 
     Desde que entrara para a polícia 15 anos antes Nepomuceno tinha visto muitas cenas como aquela. Mas nunca encontrara uma evidência tão estranha. Ele sempre se dedicou aos detalhes, descobriu cedo a importância de coisas que a maioria costumava ignorar. Essa característica foi decisiva quando escolheu a carreira e também quando começou a se destacar como bom investigador. Aprendeu que as pessoas mentiam o tempo todo, mas as evidências sempre diziam a verdade. Um fio de cabelo, uma mancha de sangue, um pedaço de tecido - ajudavam a reconstituir um crime. 
     - Parece que temos alguma coisa aqui - disse Nepomuceno, guardando a carta num envelope de perícia e lacrando-o antes de colocá-lo no bolso do paletó. 
     Era uma pista que não despertava muito entusiasmo. Nepomuceno desconfiava que não encontraria nenhuma digital na folha de papel. As letras vinham de publicações ordinárias, a cola certamente seria facilmente encontrada em qualquer papelaria… seria preciso um milagre para que aquele documento o levasse ao mentor do assalto no escritório.  Alguém que poderia ser também o assassino do suspeito, ou o mandante do assassinato.  Enquanto isso, a pressão por resultados só crescia. Os clientes do escritório que tinham amigos influentes exigiam providências, muito preocupados com os registros contábeis que desapareceram. Alguns daqueles documentos já tinham vazado para a imprensa dando margem para reportagens investigativas sobre lavagem de dinheiro. A fonte desses vazamentos seria um forte suspeito. Mas não foi possível até então identificá-la. Não apenas por causa do irritante costume dos jornalistas de não revelarem suas fontes. Mas porque, pelo menos um deles, devidamente convencido com a promessa de informações exclusivas no futuro, disse que não sabiam quem era a fonte. Recebiam telefonemas anônimos, avisando para buscar pastas em armários de terminais de ônibus ou aeroportos. Pastas que continham os valiosos segredos dos clientes do escritório. 
     Nepomuceno pensou no caso. Parecia um beco sem saída. Mas ele acredita em outra coisa, além da veracidade das evidências numa investigação: que o tempo era aliado da verdade. E algumas vezes, tudo que precisava ser feito era esperar.  


São Paulo, 1982
Estacionamento de uma agência de viagens
Imediações do Aeroporto de Congonhas


     O doleiro saiu da agência  de turismo sozinho. Eram 10 e meia da noite. Distraído, pegou a chave do carro no bolso e foi até onde tinha estacionado, olhando para o chaveiro na mão. Quando estava ao lado do carro, ouviu uma voz rouca, quase um sussurro.
     - É um assalto. Fica quieto e faz o que eu mando.
     Assustado, o doleiro ergueu os braços… “abaixa esses braços otário, quer dar bandeira?”. Foi retirando o relógio de ouro maciço do pulso… “não quero esse lixo. Abre o porta-malas”. “O… porta… malas?” gaguejou o doleiro. “Ficou surdo de repente, imbecil? Abre logo essa merda!”. “Mas… não tem nada de valor ali dentro”. “Cê vai querer brincar com a minha ‘quadrada’, animal?” respondeu o bandido apontando uma Glock para o meio dos olhos da vítima. Sem alternativa, relutante e trêmulo, o doleiro abriu o porta-malas. Dentro dele havia uma mala de viagem preta com rodinhas e alça retrátil, ordinária, comum, sem características distintivas. “Tira a mala daí e coloca no chão”. O doleiro obedeceu. “Agora vai andando até o fundo do estacionamento sem olhar pra trás. Só se vira depois de contar até 1000”. O doleiro, relutante, ainda tentou argumentar: “mas pra quê você quer a minha roupa suj…” não terminou a pergunta porque levou uma coronhada na testa que imediatamente provocou um vermelhão. Aquilo viraria um belo galo antes da noite acabar. Dolorido e apavorado, o doleiro resolveu obedecer. Quando terminou a contagem, o ladrão e a mala tinham desaparecido. “Aimeudeusdocéu, os dólares do senador! Tô fodido meudeus!”. E começou a chorar como uma criança de quem roubaram o pirulito. 


     Já no esconderijo, na Zona Leste, o ladrão pegou uma garrafa de 51 e abriu a mala. O parceiro, que fumava um cigarro de maconha, arregalou os olhos! “Caralho, Valdemar! Quantos dólar!”. Valdemar também se espantou. Nunca tinha visto tanto dinheiro gringo junto. “É tudo teu, Dema! Botou moral agora!”. “Tudo meu não, Cidão. 10 purça vai pro cara que deu a dica do serviço”. “Quem é ele?”. “Não faço a menor ideia. Recebi a dica por carta, deixaram embaixo da porta do meu barraco. E quem mandou  escreveu que se eu fizé tudo certinho vai ter mais trampo.  Só deixou claro que se eu num depositá 10% numa conta que passou o número, posso encomendá meu ‘paletó de madeira’”. “E tu acredita na ameaça?” “Vou arriscar não, Cidão! Posso ganhá uma bolada se jogá direito aqui”. Cidão balançou a cabeça concordando e pegou a garrafa de 51 para um longo gole, sem tirar os olhos das notas verdes brotando de dentro da mala como folhas sacudidas pelo vento. 


     



Santos, 1987
Escritório da administração portuária

     4 da madrugada. A zona portuária está com o movimento de sempre na área de conteineres, mas as ruas do setor administrativo já se encontram desertas desde a meia-noite. A única movimentação é dos seguranças dos escritórios. Um deles é rendido com o cano de um revólver encostado na nuca, sem chance de reação. O outro tenta sacar a arma mas é desestimulado com uma coronhada no rosto. Os dois são obrigados a abrir o escritório e levados para dentro. Os bandidos - um grupo de quatro - ignoram categoricamente o cofre do escritório. Pedem para serem levados ao almoxarifado. Lá, encontram o que procuravam. Duas caixas de arquivo morto. Numa delas, dinheiro vivo. Na outra, documentos. Pegam o que querem, prendem os seguranças no almoxarifado e vão para fora, onde um carro com motorista os espera.
     - Pé na tábua, Ronaldo! - diz um dos ladrões.
     Ronaldo descobre naquela noite que gosta da adrenalina que acompanha um ato criminoso. E já pensa numa carreira de assaltos paralela à profissão de vendedor de carros. 
     No dia seguinte o gerente do escritório relata o ocorrido a um policial militar, que se apresentou como encarregado de acompanhar a investigação do assalto como observador. 
     - Eles sabiam o que queriam e onde encontrar - diz o gerente.
     - Sem dúvida - responde o Coronel, preocupado: seu amigo em Brasília, um político de poucos votos mas enorme influência, não receberia a propina combinada para defender interesses de agentes portuários na Câmara dos Deputados.  Mas isso nnão erao mais grave; cedo ou tarde a negociata sairia.  O que mais alarmou o coronel foi o roubo dos documentos - seu nome constava em vários papeis, intermediando empréstimos, transferências de dinheiro, propostas de reformas em regulamentos portuários.
     - Vou precisar de uma nota preta pra abafar esse caso - previu o policial militar.


Belo Horizonte, 1988
Palácio da Liberdade

     - Como diabos a TV Metrópole teve acesso àquelas contas? Como descobriu? -  o Secretário de Governo esbravejava e sacolejava os punhos fechados. Perdigotos escapavam de sua boca rígida de ódio e frustração. A um canto da sala, o assessor parecia encolher cada vez mais, reduzido a um pedaço de si mesmo. 
     - Não faço ideia, senhor! Mas vou descobrir. Já botei o pessoal na rua.
     - Botou o pessoal na rua? Botou o pessoal na rua, jumento? Por que não impediu que isso acontecesse? Você viu a reportagem? Detalhes do esquema todinho! Tudo entregue para o Ministério Público! Vai dar merda, seu animal! Vai dar impeachment do Governador, já posso pressentir!
     - Talvez a gente consiga evitar…
     - Isso não podia acontecer… Todo o esquema por água abaixo… Maldito Alcebíades! Como ele teve acesso a tantos detalhes? - O secretário se apoiou na mesa e levou a mão ao peito. - O meu remédio, Adamastor. Tô passando mal.
     - Imediatamente, senhor! - o secretário saiu apressado da sala, mas perdeu a urgência logo que transpôs a porta. “Que morra com a boca cheia de formigas”, pensou, enquanto andava lentamente rumo ao armário de remédios na copa.






15

Terça-feira, 17 de setembro de 1991 - proximidades da DEIC

     Mário procurou um telefone público e ligou para Julia. 
     - Ainda bem que me telefonou. Tenho novidades.
     - Descobriu alguma ligação do caso com o comando da Polícia Civil? - quis saber Mário.
     - Pra dizer a verdade, não… de onde tirou isso? 
     - Deixa pra lá. Pode dizer. 
     - Rastreei as contas que você encontrou na casa do doutor Flávio. Encontrei uma transferência atípica, valor muito alto. A conta estava em nome de um tal Ronaldo Miranda. Acontece que esse cara é conhecido como vendedor de carros aí em São Paulo, mas na verdade o emprego é uma fachada. Ronaldo tem contatos na bandidagem, é um tipo de ladrão de aluguel, convocado quando os "serviços" exigem alguém com sangue frio e propensão para a violência - alguém que não se importe de estourar alguns miolos se a coisa ficar feia. Um guarda-costas do crime.
     - E o que o dinheiro supostamente de um juiz fazia na conta de um assassino? 
     - Figurava como compra de carros. Mas é fachada. A grana deve ter financiado algum ato ilícito, avaliou Julia.
     - Obrigado pela ajuda. Você está bem? Ninguém mais apareceu por aí? - quis saber Mário.
     - Ninguém. Vou dispensar o Lima.
     - Sem chance, resmungou o inspetor.
     -Mário!
     - Boa noite, Julia. E desligou antes de ouvir os protestos da bela colega.
     Mário ligou para a esposa antes de ir para o jornal onde Quevedo trabalhava. Ligou para ele de um orelhão perto da redação e o convidou para um bate-papo. 
     Reuniram-se numa padaria longe dali, para evitar suspeitas. 
     - O que sabe sobre um vendedor de carros que trabalha na Barra Funda, nome Ronaldo Miranda, supostamente envolvido com assaltos a mão armada?
     - Posso dar uma olhada por aí. Tem ligação com o caso do juiz?
     - Não sei ainda.
     - Por que não usa os recursos da polícia para levantar a ficha do cara?
     - Não quero chamar a atenção.
     - Deixa comigo. E não esquece da exclusiva no fim dessa investigação.
     - Promessa é dívida. 
    Os dois se despediram com um aperto de mão.



Barueri, final dos anos 1980


     - É hora de trocar nossa bucha de canhão, Felipe - disse Crisóstomo no segundo andar do pequeno prédio de tijolo baiano, na periferia. Tragou lentamente a fumaça do cigarro, olhando para o ex-colega de faculdade, agora chefe de investigadores da DEIC. Felipe sentiu um calafrio, incomodado com um cigarro aceso tão perto dos explosivos estocados no andar de baixo. Mas não disse nada. 
     - Faça denúncias anônimas contra todas as quadrilhas e marginais que já fizeram mais de cinco “serviços” para nossa operação. Todos que foram contratados pelas nossas cartas anônimas. Não quero que eles comecem a falar demais pelas ruas, ou resolvam investigar de onde vêm as “encomendas” de serviços que recebem. Ao mesmo tempo recrute outros “operacionais” para renovar nossas “milícias anárquicas”. Mesmo método de recrutamento. 
     Crisóstomo gostava daqueles termos que criara para nomear o método de operação que desenvolveu. Milícias anárquicas: grupos criminosos que nem sequer sabem que formam um grupo sob um mesmo comando e acham que agem aleatoriamente. 
     -Vai ser feito, Crisóstomo. 
     O policial desceu as escadas, aliviado por se afastar daquele prédio perigoso. “Que lugar ele escolhe pra essas reuniões!”, pensou enquanto entrava no carro. 
     Nas semanas seguintes, um ladrão da Zona Leste chamado Valdemar morreria num confronto com policiais que atendiam uma denúncia anônima contra ele. Uma quadrilha que atuava em roubos à mão armada seria desmantelada com prisões inesperadas. Mas, por conta própria, Felipe resolveu manter um dos operacionais. Ronaldo era muito hábil em organizar equipes para assaltos. Conseguia todos os recursos necessários, sempre financiado pelo dinheiro administrado pelo juiz Flávio Rogendorff através de contas secretas. Tudo muito organizado. Ronaldo também era um homem que não tinha pudores em usar da violência quando necessário. Bom executor. Sem consultar Crisóstomo, Felipe decidiu que era hora de Ronaldo se aproximar mais do núcleo da operação. “Vou colocar o inspetor Lúcio como contato direto dele. Acho que isso vai render bons resultados”. Ficou um pouco preocupado por não dividir essa decisão com Crisóstomo mas, que diabo, era ele que coordenava toda a parte operacional do esquema. “Está decidido”, concluiu.


Juizado Especial Criminal, São Paulo, 1985

     Poucas vezes o juiz Flavio Rogendorff se deparou com um caso tão mal apresentado pela promotoria. Também não se lembrava de algum outro réu tão merecedor de condenação. Era servidor da Saúde do Estado, acusado de desvio de dinheiro. Mandava verbas destinadas a compra de remédios diretamente para contas de laranjas. O Ministério Público tinha acatado a denúncia e aberto o processo, mas não conseguiu avançar nas investigações. “Quem dá calote não passa recibo”.  
     A crise de consciência o torturou durante vários dias. Shirley percebeu que aquele caso o amargurava mais que os outros. “O que te incomoda tanto?”, ela perguntou. “Quando um caso é perdido por falta de provas, vá lá. Mas quando um bandido fica solto por incompetência da acusação, eu não aguento”, exclamou, rabugento. O processo era claro, mas estava ancorado em indícios e “ouvir dizer”. Dia após dia, uma a uma, as denúncias feitas pela imprensa ao longo de vários meses era transformada em pó pelos defensores do réu. O final já se desenhava no horizonte. Mas naquele caso, Flávio contava com um último recurso.
     Desde que formou sua parceria com Crisóstomo conseguiu condenações, acelerou alvarás, ordenou buscas… Tudo a partir de informações que o colega conseguia com sua rede informal de dados. Mas todas as atitudes que tomou como juiz sempre ficaram dentro dos limites éticos do cargo. Neste caso das fraudes na Saúde, porém, diante da inépcia da acusação, ele vislumbrava a possibilidade de vender um pouco mais da própria alma ao diabo: interferir diretamente, orientando o trabalho da promotoria. Nos tempos de estudante, sempre travou os mais ferrenhos debates quando o assunto resvalava para a isenção do juiz. Não devia interferir. Apenas garantir que a lei fosse cumprida e os direitos civis, respeitados. Mas como um juiz poderia garantir a imparcialidade de um julgamento quando o poder econômico desequilibrava a balança? Como ficar neutro quando os criminosos conseguiam as melhores defesas, em detrimento das vítimas mal representadas? Isso era defender a lei, sem dúvida, mas não a justiça. 
     Depois de várias noites mal dormidas, convencido de que libertaria um culpado se não agisse, Flávio resolveu conversar com Crisóstomo. Afinal a revelação do golpe tinha sido trabalho dele e do “grupo”de que fazem parte. Faltando menos de um mês para o veredito, pediu a ele que obtivesse mais provas, se possível até uma testemunha; e que repassasse o material todo para o promotor do caso, de forma anônima - como costumava fazer quando recrutava seus agentes para cometer assaltos contra os corruptos. Crisóstomo foi informado dos detalhes do processo. “Então o material que Ricardo e Alcebíades plantaram na imprensa não foi suficiente pra sustentar uma condenação”, comentou entre dentes. “Me deu pouco tempo pra agir, Flávio. Devia ter pedido isso antes”, reclamou. “Mas vamos ver o que conseguimos levantar”. 
     Chegou o último dia do julgamento.
     O juiz olha para o advogado de defesa e o réu, ambos com ar confiante em seus ternos bem cortados. Do outro lado, o promotor, com grossas olheiras denunciando cansaço e a roupa meio empoeirada - provavelmente de tanto rabiscar os trâmites da investigação no quadro negro que mantinha na sua sala, no MP. 
     Começaram as oitivas de testemunhas - quase todas da defesa. Ninguém parecia muito disposto a brigar com o réu que, mesmo afastado do cargo para “não interferir nas investigações”, continuava poderoso na Secretaria de Saúde - e interferia, sim. Só que de fora. Os dois únicos depoentes da acusação não demonstraram muita energia em suas respostas. Confundiram-se com a inquirição aracnídea do advogado de defesa, como moscas numa teia. A situação parecia irreversível, quando um contínuo do tribunal cochichou algo ao ouvido do promotor e deixou um pacote pardo em suas mãos. O promotor abriu o pacote e começou a analisar os documentos enquanto o julgamento corria. Flavio observava do alto da tribuna. Notou o brilho que pareceu dar vida nova às feições do promotor, que imediatamente pediu um adiamento. Flávio fingiu enfado, chamou os representantes das duas partes para perto e ouviu os argumentos de ambos. O promotor afirmava ter tomado conhecimento de fatos novos e documentos que exigiam um exame mais delicado. O advogado de defesa protestou. Flávio manteve sua pequena farsa pessoal, simulou uma certa dúvida e muita irritação, mas por fim autorizou o adiamento. Dois dias, não mais.
     Dois dias em que ele acompanhou tanto quanto possível o andamento do trabalho do promotor. Ousou ainda mais. Fez ligações de um telefone público, com um lenço em volta do bocal do telefone, sussurrando para alterar a voz ao máximo, e passou orientações diretas de como amarrar a acusação. “Reúna os documentos que mostram o caminho do dinheiro. Foque em coisas concretas, não fique deslumbrado com discursos sobre ‘sofrimento de vítimas’ ou ‘olhos da história que nos miram do futuro’. Isso é besteira, se enveredar por aí os advogados de defesa te comem vivo no tribunal. Use as armas que recebeu com objetividade”. “Quem está falando?”, quis saber o promotor. “Um cidadão preocupado”, respondeu Flávio, e desligou na véspera da audiência final. 
     Foi o suficiente para o promotor sugar o máximo das provas que recebeu do remetente misterioso e desconhecido, naquele pacote pardo. Eram notas de compras que haviam desaparecido da contabilidade da Secretaria de Saúde, recibos de depósitos, números de contas de laranjas - e até bilhetes manuscritos com a letra do servidor acusado, dando instruções de como lavar as quantias apuradas nos desvios. O promotor refez praticamente toda a acusação, agora muito mais seguro. Todo o clima no tribunal mudou completamente. 
     Flávio condenou o réu a prisão e ressarcimento dos valores desviados. Foi para casa aquele dia especialmente satisfeito, certo de que valia a pena fazer parte de um esquema que conseguia reunir provas como aquelas que Crisóstomo fez chegar ao promotor - com um pouco de teatralidade, é verdade, mas quem pode culpá-lo?
     O importante é que a Justiça foi feita. 

     


São Paulo, 1988


     Paraisópolis é a maior favela de São Paulo. Tem mais de 100 mil habitantes. Tem bancos, comércio pungente, até uma moeda própria. Tem também um “estado paralelo” bem aparelhado e poderoso, que mantém a população sob controle a poder de intimidação. Neste lugar de casebres paupérrimos e ruas imundas, a lei reconhecida e aceita é a do mais forte. 
     Uma casa de alvenaria. Pequena, mas com um porão. Para chegar a ele é preciso acessar uma escada a partir da sala. Um homem de terno preto, óculos escuros e sapatos lustrosos faz esse pequeno trajeto. Encontra dois sujeitos no fim da escada lá embaixo, vestidos com camisetas furadas, bermudas velhas, chinelos gastos, jogando cartas sobre uma pequena mesa de madeira onde descansam duas .40. Os dois olham com sorrisos desdentados para o homem que se aproxima. Os sorrisos se desmancham assim que reconhecem o visitante. Uma expressão de respeito temeroso domina os olhares dos favelados.
     - Ele está acordado? - quis saber o homem de terno.
     - Está - responde o que está à direita da mesa. - Tem como dormir não,  dispois du castigu qui a gente apricô neli.
     - Abra a porta - ordena o de terno.
     O outro favelado, à esquerda, tira uma chave do bolso da bermuda rasgada e abre a fechadura de ferro. Afasta a grossa porta de madeira e abre espaço para a entrada do homem de terno.
     No meio de uma sala vazia, de paredes frias de cimento e sem janelas, está uma cadeira de madeira. Amarrado a ela com os braços para trás, um homem com o rosto deformado por hematomas e chagas sanguinolentas. O dorso nu revela mais manchas de ferimentos infligidos em longas sessões de  tortura com porretes, soco inglês e um taco de baseball. Os dois homens do lado de fora se revezavam nas surras. Quando um se cansava o outro assumia, sem descanso para a vítima. Os ossos da face estão quebrados. O nariz é uma massa escura de sangue. Duas costelas estão partidas. Um dos joelhos foi fraturado com um golpe do taco de baseball. O homem tão violentamente castigado tentava falar “o que vocês querem? eu digo o que vocês quiserem saber!”, mas os dois agressores não queriam saber nada. Tinham recebido apenas a ordem de destruir o máximo possível do corpo do refém, sem matá-lo. Por duas vezes o homem amarrado à cadeira teve que ser reanimado com água gelada na cara. 
     O homem de terno se aproximou e ergueu o rosto do outro, para examiná-lo um pouco. Não gosta das longas sessões de interrogatório que faziam tanto sucesso no regime militar. Nunca gostou. Sempre achou mais produtivo quebrar o vigor do interrogado primeiro, e só depois perguntar o que quer saber - apenas uma vez. Considerava este o melhor método para conseguir informação. 
     - Você sabe quem eu sou? 
    A expressão de medo nos olhos vermelhos de sangue não deixou dúvidas de que a vítima sabia sim.
     - Como você e seus companheiros conseguiram?
    - Eu não… sabia de quem era… não sabia …o que estávamos… roubando…
     - Mas foram direitinho para o centro da questão. Pegaram o que havia de mais valioso. Deixaram dinheiro, joias, eletrodomésticos para trás. Sabiam o que queriam…
     - Era… encomenda…
    - Quem encomendou o serviço? 
    - Não sei… não sei… o homem surrado começou a soluçar. - Foi… carta… sem remetente… - cuspiu sangue e um dente arrancado. 
    - E seus colegas? Onde encontro eles?
     O torturado passou nomes e endereços, um por um. 
     - Obrigado. 
     O homem de terno soltou a cabeça da vítima, que caiu sobre o peito, exausta.
     - Acredito em você. 
     Na saída da sala, já se dirigindo para os primeiros degraus que levavam à sala e à rua em frente à casa, o homem de terno recolocou os óculos escuros e fez um pequeno gesto com a cabeça para os dois favelados. Teria problemas para explicar ao chefe que não tinha conseguido identificar a “origem do problema”, de onde teriam saído informações tão precisas a ponto de orientar um assalto em que tudo que foi furtado foram documentos comprometedores de uma grande propina envolvendo a concorrência para pavimentação de mais de 500 km de estradas, trevos e passarelas. Fonte de recursos para muitos anos.  Duvidava que os colegas do assaltante torturado soubessem algo mais do que ele. Aquele roubo jogaria areia em toda a negociata. Muito arriscado manter o esquema com um vazamento daqueles.  “Ele não vai gostar disso”, pensou, já temendo a crise de mau humor do chefe. 
     O homem de terno já estava na porta da rua quando ouviu o tiro vindo do porão.







16


Quarta-feira, 18 de setembro de 1991.

     Quevedo foi rápido no retorno para o inspetor.
     - Esse cara é barra pesada. A principal atividade dele é servir de motorista e atirador em assaltos a bancos. Também há rumores de que aceita outros tipos de serviços a ganho, todos ilegais. Todos violentos. Chantagem, extorsão, sequestro, tortura. Também descobri que ele é bem próximo de um colega, o Ricardo Lemes. Ricardo costumava ser bom jornalista, mas entrou em franca decadência por beber demais, se envolveu numas furadas, andou inventando notícias falsas pra vender como "frila". Acabou caindo em desgraça. Ronaldo costumava ser fonte dele, dizem a boca pequena pelo submundo.
     - E esse Ricardo? - interessou-se Mario.
     - Nada de mais, além do que te disse. Não vejo ele há algum tempo já. Mas comentaram que outro dia ele foi visto no maior bate-boca com o Alcebíades Mourão.
     - O dono da TV Metrópole? 
     - Esse mesmo. "Você me deve!Sabe que me deve!", ele gritava. O engraçado é que os dois nunca trabalharam juntos. Pelo menos não formalmente. 
     - Alcebíades Mourão… pensou Mário. Lembrou-se de uma foto em que o empresário das comunicações aparecia apertando a mão do delegado-chefe da DEIC, Lúcio Rinaldi. 
     Aquilo podia não significar coisa alguma, mas Mário achou importante arquivar a informação e a imagem na memória.

     Para o que faria a seguir era necessário o máximo de discrição. O inspetor deixou a “zero-um” no pátio da DEIC, num canto afastado, e alugou um carro pequeno e potente. Já imaginava as broncas do chefe quando apresentasse a nota daquela despesa, mas não havia outro jeito. Era preciso passar tão despercebido quanto possível, e não cogitava pedir um veículo descaracterizado para a polícia - não depois do que aconteceu a Gusmão. Constatou, tristemente, que não sabia em quem confiar entre os colegas policiais da capital.
    Mário contratou o aluguel, pagou seguro completo e seguiu na direção indicada por Júlia e Quevedo: a loja de carros onde Ronaldo supostamente levava uma vida de honesto vendedor.  Resolveu não perder tempo com dissimulações.  Foi direto ao assunto.
     - Quer comprar um carro? perguntou Ronaldo.
     - Na verdade quero uma informação. 
     - Se eu puder ajudar…
     - Certeza que sim. Você vendeu uns carros há alguns meses pro juiz Flávio Rogendorff?
     Ronaldo ficou levemente pálido e desfez o sorriso cínico que marcava sua boca. 
     - Não me lembro de todos os meus clientes.
     - Ah, mas desse é difícil esquecer. Gastou 300 mil com você. Sabe, aquele juiz que tentaram matar em Campos do Jordão…
     - Do que se trata essa conversa, senhor…?
     - Mário. Russo. Inspetor de polícia. Mário apreciou o medo que se formou na face do outro.
     - O que o senhor quer saber exatamente?
     - Pra quê era aquele dinheiro todo? Não foi por carros vendidos, foi? Algum serviço por fora?
     - Não estou gostando do seu tom, detetive…
     - Inspetor, se me permite. Odeio erros de nomenclatura.
     - Pois, seu Mário… não sei como te ajudar. E se me dá licença, tenho clientes. Ronaldo disse isso e foi para o fundo da loja. Entrou no escritório e ficou observando, até o momento em que Mário saiu da loja. Imediatamente, ligou para um número que tinha anotado numa caderneta, trancada na gaveta da mesa.
     - Apareceu um sujeito aqui, fazendo perguntas sobre o doutor Flávio. Não sei quanto o cara sabia, mas está desconfiado. Sim, se ele aparecer de novo te aviso. Certo. Até.
     Ronaldo estava tão entretido com a ligação que não percebeu que Mário estava em pé, diante dele, observando com olhar divertido. Foi um choque. Ficou irritado e frustrado por aquela invasão.
     - Mas que diabo, achei que tinha visto você saindo!
     - Resolvi voltar, e pelo visto fiz bem. Para quem ligou, Ronaldo? Pro teu chefe? Pro cara que encomendou o atentado?
     - Você ficou louco. Saia daqui, antes que… 
     - Antes que o quê? Que você chame a polícia? Eu sou a polícia, camarada. E tenho certeza que você deve.
     Acossado e desesperado Ronaldo enfiou a mão na gaveta da mesa, mas num movimento rápido Mário fechou bruscamente a gaveta com a mão do bandido dentro. Ronaldo urrou de dor e tentou acertar Mário com a mão livre, mas foi desestimulado no intento com uma violenta cotovelada no nariz. 
     Enquanto o sangue escorria, Mário sacou o revólver e abriu um pouco a gaveta para que Ronaldo tirasse a mão.- Devagar - ordenou. Dentro da gaveta encontrou uma pistola 9mm. Retirou o pente e a bala da culatra com movimentos rápidos e jogou a arma no cesto de lixo do escritório; apontou o revólver para a cabeça de Ronaldo, que tentava conter o sangramento do nariz com a mão amassada pela gaveta.
     Um funcionário da revendedora de veículos se aproximou da porta do escritório atraído pelo barulho. Afastou-se assim que Mário gritou "polícia!". Sozinhos, Mário fechou a porta e trancou com a chave. Sentou-se tranquilamente na cadeira, de frente para Ronaldo.
     - Vamos conversar claramente agora, senhor Ronaldo.
     - Vai se ferrar!
     - Não, obrigado. Para quem você telefonou?
     Ronaldo ficou calado.
     - A quem interessava saber dessa minha visitinha para você?
     Mais silêncio.
     - Vou ser bem claro, Ronaldo. Saindo daqui vou espalhar que você deu com a língua nos dentes sobre os últimos assaltos a banco aqui na capital. Notícia ruim corre entre a bandidagem, você sabe.
     - Acha que tenho medo disso? Falar qualquer coisa seria muito “bior", disse Ronaldo com a mão no nariz.
     - Você que sabe. Sua chance de cooperar terminou agora. 
     Sem desviar o olhar de Ronaldo, Mário saiu do escritório e da revenda. Deu uma volta no quarteirão e parou o carro na esquina, com as luzes apagadas. Foi a um orelhão próximo e ligou para Januário.
     - Tá a fim de uma campana, parceiro?
     - Opa, sempre! respondeu o policial, já acostumado com os métodos pouco ortodoxos do colega jordanense. 
     Meia hora depois, Januário estava no carro de Mário e os dois observavam a revenda de veículos. Ronaldo saiu da loja com um lenço cobrindo o nariz, entrou num carro no estacionamento e arrancou rua acima. Mário ligou o carro e o seguiu, a uma distância segura, tomando cuidado para não ser notado.
     Rodaram por mais de uma hora. Chegaram a uma área de condomínios de luxo no Morumbi. Ronaldo parou na frente de um grande portão de ferro fundido, esperou alguns segundos e entrou quando as grades se abriram. Mário estacionou a cem metros da entrada. 
     - Quem será que mora aqui? quis saber. 
     - Você não vai acreditar, disse Januário. É o Lúcio Rinaldi.
     - Caramba, sempre acabo esbarrando nessa merda de delegacia. É coincidência demais pro meu gosto, pensou em voz alta o inspetor, enquanto pegava uma pastilha de menta da caixinha que sempre levava no bolso.

17
     
Quinta-feira, 19 de setembro, 1 da manhã, Morumbi.

     Ronaldo ficou mais de duas horas dentro do condomínio. Quando saiu já era madrugada. Os dois policiais estavam atentos no carro. 
     - Vamos seguir o sujeito? perguntou Januário.
     Mário pensou um pouco:
     - Acho melhor esperarmos aqui mais alguns minutos. 
     Não precisaram esperar muito. Logo Januário reconheceu o carro de Lúcio saindo pelo portão de ferro e seguindo na direção oposta à tomada por Ronaldo. Mário ligou o motor e seguiu o delegado-chefe da DEIC.

Interstício VII

     Meu sangue gela a cada visita da enfermeira. Sei que sua presença é sinônimo de dor, desconforto. Fuçando nos cateteres, verificando as agulhas, o fluxo do soro misturado a medicamento… Sinto tudo com cores mais vivas neste estado catatônico. Enxergo tudo que ocorre à minha volta, percebo cada toque em meu corpo, cada exame. Tudo se tornou um grande tormento. As memórias de como me meti nessa confusão são uma fuga. Lembro de tudo, em detalhes, como se estivesse revivendo cada passo novamente. 
     Sinto também o calor do quarto. Será noite ou dia? Não consigo saber. 

     Depois que fizemos o pacto com Crisóstomo as coisas começaram a ocorrer rapidamente. O regime militar era um campo vasto para corrupção. Sem um judiciário independente e forte que pudesse limitar os arbítrios da ditadura, as falcatruas proliferaram como bactérias em cultura. 
     Nós conseguíamos informações privilegiadas. Desconfio que parte das milícias que atuavam na nossa rede era formada por militares da ativa, alguns até de alta patente. Minavam o regime por dentro, inconformados com a corrupção - ou apenas interessados nos lucros advindos de seus saques. 
     Comboios clandestinos que levavam armas do exército para traficantes eram abordados pelos nossos mercenários no ponto exato, no momento exato. Praticamente sem mortes os carregamentos eram desviados para depósitos secretos. Os soldados surpreendidos mal tinham tempo de reagir, sob as miras das automáticas. 
     Essas armas garantiam um estoque quase ilimitado para as operações das milícias. Uma parte era revendida no mercado negro e ajudava a financiar o esquema. O restante era usado nos próprios ataques em alvos sensíveis das quadrilhas que saqueavam o país. Casas de crédito e bancos usados para lavar dinheiro de propinas começaram a ser assaltados por homens armados, bem treinados e encapuzados. Os assaltantes nunca repetiam o método. Num crime, usavam máscaras; no outro, capuzes ou meias cobrindo o rosto; num assalto, agiam em grupo de três; num outro, eram cinco ou mais. Cada equipe só trabalhava junta uma única vez, o que dificultava a identificação pelas autoridades. Era impressionante o número de mercenários que trabalhavam para nós, sem ao menos desconfiar de onde vinham as informações e as ordens escritas em letras cortadas de revistas e coladas sobre o papel. Mesmo pequenas lojas acima de qualquer suspeita, mas que identificávamos como "lavanderias", não escapavam do nosso braço armado. Os ataques eram rápidos e precisos. Impossível prever onde ocorreriam. E o mais importante: não pareciam guardar qualquer conexão entre si. Cada golpe era planejado de forma a evitar suspeitas de alguma articulação mais complexa. Os intervalos entre cada assalto garantiam o disfarce. 
     Começamos também a invadir casas de políticos e empresários. Invariavelmente encontrávamos "colchões recheados" nesses lugares. Nenhum desses assaltos foi registrado na polícia. O que diriam? Que perderam milhares de cruzeiros novos cuja origem jamais poderiam confessar? Alguns reclamaram com os sócios corruptos nos altos escalões da ditadura, mas pouco conseguiram além de palavras de solidariedade. Eu particularmente, como jurista destituído de qualquer poder num regime de exceção, me divertia mais que todos com aquilo. Era como uma vingança pessoal contra a falta de liberdade.
     Dessa forma nossa sociedade ganhava uma consistente independência financeira, ao mesmo tempo que incomodava os corruptos. Mas como atacar a corrupção propriamente dita? Para Crisóstomo, tudo o que fazíamos eram cócegas no dragão. O papel de Ricardo e Alcebíades era dar mais repercussão ao que estava acontecendo com o país. Discretamente, eles criaram uma rede de divulgação dos atos criminosos da ditadura. Não podiam ir além da panfletagem. Seria arriscado usar algum meio de comunicação mais formal. Mas os panfletos tinham uma boa tiragem e todos os opositores do governo se tornavam disseminadores dos papeis pelas ruas das grandes cidades. Enquanto isso, Alcebíades se preparava para assumir o comando do grupo de comunicação da família, perfeitamente alinhado aos militares, subserviente e "patriótico". Acima de qualquer suspeita. O tipo de notícias que esses panfletos divulgavam era diferente da propaganda ideológica comunista anti-ditadura que também circulava na época. Estes mostravam os abusos contra as liberdades individuais: torturas, prisões arbitrárias, execuções ilegais. Nosso foco eram os poderosos enredados nos bastidores da economia, que sorviam dinheiro como sanguessugas em pele quente. O efeito disso era mais psicológico do que prático. Sabíamos que os denunciados se irritavam, e até temiam alguma consequência por seus atos… mas nada acontecia além disso. 
     Com o fim do regime militar em 1985, a esperança de mudanças tomou conta das ruas. Tancredo Neves foi eleito indiretamente, mas não chegou a tomar posse, morrendo de infecção generalizada em 21 de abril daquele ano. José Sarney assumiu o poder. Na prática, grupos enraizados no submundo do poder continuaram atuantes. Permaneceram cuidadosos por algum tempo, mas não desapareceram. Logo Crisóstomo percebeu que o "inimigo" não eram os militares, mas os que se alimentavam da corrupção. Pouca coisa tinha mudado nesse campo. O dinheiro era outro, o Cruzado criado pelo presidente; mas ele também escoava pelos dutos da roubalheira, como seu antecessor, o desvalorizado cruzeiro. E muitas propinas eram fechadas em dólar para evitar perdas aos "apostadores do grande cassino nacional". O fim da ditadura, porém deu a Ricardo e Alcebíades mais poder de influência, divulgando negociatas e crimes que eram cuidadosamente revelados por Crisóstomo, a partir de fontes que não conhecíamos. 
     Novos governos se seguiram, novas medidas econômicas, como o confisco da poupança no início do governo Collor… mas uma constante era a corrupção. Mesmo o "Caçador de Marajás" jamais fez nada de mais firme para cortar as amarras que prendiam o Poder ao hábito promíscuo da negociata. Os esquemas, capitaneados pelo "primeiro amigo" PC Farias, encontraram terra fértil nas mais elevadas esferas de poder. 
     A essa altura Alcebíades já era o chefe da TV Metrópole, respeitado empresário de Comunicações. Ricardo recebia algumas mesadas de Crisóstomo, no início, mas logo se mostrou pouco importante para o nosso intento. Bebia demais, era um ponto fraco no nosso grupo… foi mantido por perto para garantirmos seu silêncio. Mas acabou se tornando uma pedra no sapato de Crisóstomo. Tenho a impressão que só não "desapareceu" porque Alcebíades resolveu responder pessoalmente pelo colega jornalista. 
     Eu de minha parte construí uma sólida fama de juiz honesto e imparcial, incansável combatente contra o crime organizado e o narcotráfico. Presidi júris que levaram alguns dos maiores bandidos do país para trás das grades, com penas de muitos anos. De certa forma meu trabalho oficial complementava minhas ações no grupo de Crisóstomo, pois alguns de seus alvos acabaram na minha jurisdição, enfraquecidos por denúncias que Alcebíades plantava na imprensa, sem recursos depois de alguns ataques das nossas milícias bem informadas. Tudo parecia muito bem. Começávamos a ver alguns frutos do que tínhamos plantado tanto tempo atrás. 
     Nessa relação secreta que se construiu entre nós, creio que posso afirmar que fui o que mais se aproximou de ser um amigo para Crisóstomo. Ele parecia se sentir bem em desabafar alguns de seus segredos comigo. E eu, paciente, ouvia, movido por uma curiosidade genuína. 
     Nessa época um incidente causou uma grave atitude no grupo de Crisóstomo. Um policial começou a desconfiar da existência de uma "polícia paralela", anônima e escondida. Não se sabe como, conseguiu identificar uma das milícias que trabalhavam para nós como a autora de dois assassinatos. O policial sabia que os alvos desses crimes eram bandidos categóricos, embora impunes. Ele encontrou cartas idênticas nos endereços dos dois crimes aparentemente sem ligação entre si, e  acabou falando sobre a suspeita de que havia algum vínculo entre os casos. Falou com a pessoa errada. Lúcio agiu logo depois de saber das suspeitas do delegado.  
     Aquilo era uma real ameaça à organização. Crisóstomo nos comunicou que "tomaria uma medida drástica" pelo bem das operações. Eu quis saber que medida seria aquela. "Melhor não saber", ele disse. Insisti, mas ele se limitou a ficar calado.
     Dias depois o delegado foi morto. Tentativa de assalto foi a história plantada na mídia. Gustavo, nosso colega na organização e agora legista-chefe da Secretaria de Segurança Pública em São Paulo, fez pessoalmente o exame necroscópico - e enterrou qualquer suspeita que pudesse haver sobre as circunstâncias da morte. 
     Mas eu sabia o que tinha acontecido de verdade. Confrontei Crisóstomo. Discutimos longamente. Naquele dia vi que tínhamos uma divergência intransponível. Depois de anos de parceria numa empreitada até então bem-sucedida,  meu velho amigo tinha transposto uma linha que eu não podia tolerar. 
     Era o fim.
     Avisei Crisóstomo disso pessoalmente, num lugar horrível em Barueri que ele costumava usar para reuniões importantes, um depósito particular de munição (dizia que não confiava em telefones nem em locais públicos e por isso me levou àquele lugar sombrio). Entreguei a ele todas as documentações financeiras do nosso planejamento, mas tomei o cuidado de guardar comigo os números das contas e as últimas movimentações de dinheiro que fizemos, com trilhas que pudessem levar aos beneficiários dos depósitos em caso de necessidade - claro que não avisei sobre essa minha providência. Minha intenção era ter como me defender caso houvesse alguma perseguição por parte de Crisóstomo.
     Ele tentou longamente me demover da ideia. “Seja razoável, Crisóstomo. Estamos no meio do caminho de algo grandioso”. Mas eu já estava decidido.

     Eu devia ter agido de forma correta, procurado as autoridades e denunciado toda a operação de Crisóstomo. Mas fui covarde. Não quis enterrar minha reputação, não quis me expor ao risco de ir para a cadeia. Achei mais simples fugir e tentar pensar que aquilo tudo foi apenas um sonho ruim que acabou mal. 
     Na mesma semana, me candidatei a uma vaga  fora da capital. Comuniquei Shirley da minha decisão. Ela relutou um pouco mas acabou entendendo que era para o nosso bem. O argumento decisivo foi quando eu disse que teria mais tempo para a família numa cidade menor. Na verdade, tudo o que eu queria era me afastar de Crisóstomo e do grupo, o máximo que pudesse.  Estava disposto a esquecê-los e esperava que fizessem o mesmo com relação a mim.
     Em Campos do Jordão achei ter encontrado a paz que precisava para recomeçar.  Isso parecia realmente possível.
     Até a explosão.




São Paulo, junho de 1991


     O delegado Nepomuceno estava a caminho da aposentadoria depois de uma profícua carreira na Polícia Civil. Pai de cinco filhos, prestes a se tornar avô com a chegada do bebê da filha mais velha, não confessava, mas estava cansado daquela vida. Achava que tinha cumprido seu papel. Seu maior orgulho era ter mantido a cabeça erguida e os bolsos vazios durante todos aqueles anos. Nunca aceitou uma propina. Nunca se entregou às malhas da corrupção que atravessavam todo o sistema de segurança pública do Estado. Talvez por conta disso não conseguiu avançar muito na carreira, mas tudo bem. Continuou fazendo o que mais gostava, o que o levou a entrar para a academia de polícia: investigar. 
     A rotina nos últimos anos tinha se mantido imperturbável. Trabalho por mais de 10 horas de segunda a sábado. Folgas no domingo, normalmente ocupadas com tardes de futebol com os amigos, ou pescarias ocasionais em Barra Bonita. “O Tietê todo devia ser desse jeito”, pensava invariavelmente durante esses passeios. Nepomuceno, ou Nepo como os amigos o chamavam, levava uma vida prosaica, em nada parecida com o calor e a agitação dos primeiros anos de carreira quando era investigador da Narcóticos e aprendeu a ver os sinais das ruas. Sabia que alguém estava com droga ou arma só de observar o jeito da pessoa andar. Habilidade que usou mais de uma vez para evitar confrontos perigosos e fazer prisões “limpas”, com o mínimo de violência. Nesses últimos anos, porém, o cargo de delegado da Homicídios e o peso da idade foi afastando o policial da sujeira. Ainda comparecia a cenas de crimes, mas apenas para orientar a equipe e se certificar de que nenhum novato incauto estragasse todo o caso com alguma “ideia mirabolante”. Sobrou mais tempo para a família, o que o ajudou a resgatar um casamento desgastado e uma relação complicada com os filhos mais velhos. A caçula era o grande consolo, a certeza de que ele não era um perfeito fracasso como pai. Lucilla, 10 anos, o adorava com todo o coração. Para ser justo, o pai que ela conheceu era diferente do pai que Nepo foi para os outros filhos, principalmente Luciana, a mais velha. Só nos últimos dois anos eles se reaproximaram, ainda com algumas ressalvas, mas uma reaproximação, de qualquer forma. 
     A essa altura da vida pouca coisa ainda despertava o instinto policial de Nepo. Os casos se tornaram uma monótona repetição de motivações, métodos, cenas e indícios. O pior pecado para um investigador é achar que já viu de tudo. E ele tinha que se cuidar para não cair em tentação, diariamente. 
     Mas aquele caso era diferente. Ou melhor, aqueles casos. Dois crimes aparentemente desconexos. Pontos diferentes da cidade, suspeitos diferentes, motivações dissonantes.  Mas havia uma semelhança. Um detalhe. Algo que poderia passar despercebido facilmente, mas que incomodava a intuição de caçador de Nepo. 
    Dois bilhetes. Duas ordens. Curtas, escritas com letras recortadas de revistas e jornais, coladas sobre o mesmo tipo de papel ordinário. Quase 30 km separam os locais em que as duas cartas foram encontradas. Os destinatários, assassinados. Na Brasilândia, Cartola, um ladrãozinho vagabundo que servia de informante para a polícia local. Em uma gaveta do pequeno apartamento em que o corpo foi encontrado a perícia localizou a carta escrita daquela forma extravagante, com uma orientação sucinta: “quinta-feira, 4 da tarde, Vai Fácil Turismo”. Nepo se lembrava do que tinha acontecido naquele endereço, naquela data e horário. Um assalto. Um carro que chegava naquele exato momento indicado no bilhete, tinha sido abordado por homens armados, que fugiram levando o veículo e mais nada.
     Nepo puxou o outro bilhete que guardava na gaveta. Idêntico ao primeiro, mas com instruções diferentes. Tinha sido encontrado no escritório de Edgar Vasconcelos, perto do aeroporto de Guarulhos. Curiosamente Edgar teve a garganta cortada no dia seguinte ao indicado no bilhete. Um policial federal amigo de Nepo havia informado que o endereço era monitorado como ponto de tráfico de animais silvestres. A investigação federal indicava que ele estava envolvido com propina para fazer vista grossa ao contrabando biológico sediado no aeroporto. Nepo leu de novos as palavras;  “Armazém 15, Aeroporto de Guarulhos. Sexta-feira, sete e meia”. Naquele mesmo dia, um político influente havia sido preso por tráfico de animais silvestres… tinha sido uma armadilha montada com a ajuda de Edgar, que estava em conversações com a Polícia Federal e o Ministério Público para ter a pena abrandada em troca de delações que faria. 
     Duas cartas idênticas em duas situações violentas. Nepo foi até o arquivo de aço que mantém na sala e abriu uma gaveta. Numa pasta suspensa encontrou o que procurava: outras quatro cartas, todas escritas no mesmo sistema bizarro de letras coladas. Todas encontradas com marginais, alguns mortos, outros presos depois de denúncias anônimas. Nepo reuniu aquelas cartas ao longo de uns 10 anos nas ruas. Olhou de novo para a estranha colagem de letras impressas em diferentes jornais e revistas, escolhidos aleatoriamente. Achou que algumas das letras eram do Estadão… outras da revista Veja… mas de que adiantava esse tipo de informação? Não levaria ao autor da mensagem. Na época da investigação ela acabou esquecida, como um beco sem saída. E assim foi com todas as outras. Nepo gostava de quebra-cabeças, mas não se conformava quando as peças não se encaixavam. 
     Apenas um dos que receberam a estranha correspondência concordou em falar com o delegado sobre a origem daquilo. “É uma encomenda de serviço”, disse. Chegou ao delator depois que um antigo parceiro de crimes fez contato, dizendo que havia gente precisando de “mão de obra” pra alguns assaltos. Depois daquele primeiro contrato, o parceiro desapareceu misteriosamente, mas as contratações continuaram sempre por cartas anônimas. Nepo quis saber mais, mas o criminoso não durou muito. Foi morto na cela logo depois de preso. As investigações sobre os bilhetes não avançaram. Mas a semente da curiosidade tinha sido plantada na alma do investigador, mais ainda quando dois novos bilhetes foram encontrados na mesma semana em duas cenas de assassinato. Gente sem nenhuma ligação entre si, envolvida em atividades das mais diversas no mundo do crime, recebendo cartas peculiares com instruções para “serviços”… Coincidência? Nepo estava há tempo demais na polícia para ainda acreditar em coincidências. Aquilo acendeu a velha curiosidade sobre as mensagens, que estava apenas adormecida, e acordou como um leão faminto.
     
     Resolveu compartilhar suas impressões com o chefe da DEIC, Lúcio  Rinaldi. 

     Dois dias depois da conversa com Lúcio Rinaldi Nepo continuava intrigado. Estava decepcionado com a reação do colega. Sabia que Lúcio era um policial inteligente e imaginativo. Por isso mesmo esperava outra atitude quando falou das cartas. Lúcio ficou em silêncio, depois disse simplesmente que aquilo era um beco sem saída. Não tinha como levar a alguma coisa. O que estava imaginando? Uma conspiração subterrânea jogando assassinos contra assassinos? Manipulando criminosos como marionetes presas a cordões? Quem teria tamanha habilidade? 
     Nepo estava envolvido nestes pensamentos quando parou o carro num semáforo no caminho de volta para casa. Instintivamente, como sempre fazia, olhou pelo retrovisor no teto do carro e também nas laterais das duas portas. Pelo retrovisor esquerdo notou a aproximação rápida de uma moto com duas pessoas. Podia não ser nada. Podia ser um assalto. Sem ter plena consciência do que fazia, ele pegou a arma que mantinha embaixo da perna esquerda sempre que dirigia. A moto parou ao lado dele. Nepo observou os dois de soslaio: escondidos por capacetes, olhavam para a frente. Pareciam não notar a presença dele ali. A tensão diminuiu um pouco. O semáforo era dos demorados, cruzamento de várias ruas perto da Avenida Bandeirantes. Os segundos se tornavam mais e mais longos. Os dedos de Nepo acariciaram a semiautomática debaixo da perna. 
     O semáforo abriu. Nepo soltou a arma para engatar a primeira. Quando olhou de novo para os homens na moto a seu lado não teve tempo de fazer mais nada. Recebeu um tiro certeiro na testa, entre os olhos, à queima-roupa. O disparo estilhaçou a janela antes de atingir o alvo. Então a moto se afastou rapidamente. O motorista do carro logo atrás de Nepo saiu para ver o que tinha acontecido. Outros motoristas mais atrás começaram a buzinar. O trânsito, já confuso e lento em situações normais, tornou-se um inferno em poucos segundos. Pareceu demorar uma vida inteira para a polícia chegar.  
     Nepo não teve tempo de concluir a investigação sobre as suspeitas de ligação entre os “crimes das cartas”, como passou a chamá-los - uma rede criminosa oculta, com braços espalhados por toda parte. Não teve tempo para reconstruir os laços familiares enfraquecidos, não teve tempo para transformar a escolha de iscas de pesca em sua única preocupação diária. 

      
    A família não conseguia acreditar naquela tragédia. Tantos anos enfrentando criminosos dos mais perigosos, para morrer numa simples tentativa de assalto num semáforo. No velório, uma criança se recusava a sair de perto do caixão. A pequena Lucilla não conseguia estancar as lágrimas. Primeiro veio um choro convulso, escandaloso, incontido. Depois, a mágoa doída acompanhada de um gemido baixo e constante. Finalmente, apenas lágrimas que parecia que iam durar por toda a eternidade.     
     Grande parte da polícia civil compareceu à cerimônia, que teve lugar na capela do cemitério da Consolação. Rapidamente ela ficou lotada. Muitos policiais ficaram do lado de fora enfrentando a garoa e a neblina que envolvia os túmulos antigos. Entre eles um detetive loiro que chegou numa moto e ficou com o capacete embaixo do braço, mantendo a expressão fria de um bloco de concreto. Um homem que teve o cinismo de comparecer ao enterro. Cínico sim, mas não tanto quanto Lúcio Rinaldi, que não apenas compareceu como apresentou condolências à viúva e aos filhos de Nepo, parecendo estar entre os mais compungidos com o que aconteceu.
     Uma última homenagem entre escorpiões peçonhentos. Era menos do que merecia o dedicado policial dentro do caixão.  



18


Quinta-feira, 19 de setembro, duas da manhã

     - Acho que estamos em Barueri - disse Januário depois de muito rodarem atrás de Lúcio.
     - Estou completamente perdido - respondeu Mário.
     - Come isto. Deve estar com fome. 
     Januário estendeu um sanduíche embrulhado em papel laminado.
     - Você pensou em tudo, hein, colega?
     - Quando você falou em campana logo imaginei longas esperas ou viagens como esta, respondeu o investigador.
     Mário aceitou o embrulho. Estava com fome depois de tantas horas envolvido naquela louca colcha de retalhos em que tinha se tornado o caso Flavio Rogendorff. Januário também tinha trazido uma garrafa térmica com café preto. O líquido reanimou o inspetor  e ajudou a clarear as ideias. Ele estava cada vez mais convicto de que a cúpula da polícia civil tinha alguma coisa a ver com o atentado, e isso o deixava perplexo.
     Mário esperava que o delegado-chefe os conduzisse ao condomínio de luxo de Alphaville, onde certamente se encontraria com o responsável pelo atentado ao juiz. Mas sua previsão não se confirmou. O carro do delegado enveredou por ruas estreitas e mal sinalizadas, ladeadas por prédios baixos com portas de aço no térreo, fechadas àquela hora. Alguns não passavam de esqueletos de tijolos baianos e cimento, ocupados certamente por famílias carentes. Gatos de luz se multiplicavam pelos postes de energia, formando emaranhados de dar inveja a qualquer nó górdio. Em alguns pontos as calçadas exibiam lixeiras transbordantes, sujeira pelo chão, bueiros entupidos. O mal cheiro invadia o carro. 
     De repente Lucio dirigiu por uma viela à esquerda. Mário reduziu a velocidade e esperou um pouco antes de embicar pelo mesmo caminho. O carro do delegado-chefe já se distanciava numa ladeira íngreme, asfaltada e estreita. Mário parou o carro e apagou os faróis. Ficou apenas observando, até que o carro à frente parou, quase no alto da ladeira, em frente a um dos monótonos prédios de tijolo baiano, sem pintura, com janelas grandes. Estava a uns 100 metros de onde Mário tinha parado. Mesmo na escuridão, o inspetor notou quando Lúcio saiu do carro e entrou no prédio. 
     - Vamos a pé, declarou Mário.
     Os olhos do inspetor perscrutaram os prédios vizinhos, à procura de vigias. Havia um pequeno boteco aberto quase ao lado do prédio onde Lúcio tinha entrado. Os dois policiais procuraram andar com naturalidade, como quem se dirigia para o bar. Chegando nele, Mário sentiu-se confiante o bastante para pedir uma cachaça no balcão. Pegou o copo e voltou para a calçada, como quem apenas matava o tempo. Aproveitou para espreitar mais uma vez todos os movimentos da rua. Não notou ninguém por perto. Voltou para dentro do boteco e deixou o copo no balcão junto com o dinheiro pela bebida. 
     - Eu vou entrar. Você fica aqui de olho no que acontece na rua - disse para Januário.
     - Muito arriscado, Mário. E se tiver barulho? Como você vai justificar sua presença aqui?
     - Estou mais interessado na justificativa do doutor Lúcio… Mário estava decidido. E quando ele se decidia não havia quem o demovesse de uma ideia.
     Mário venceu rapidamente os cinco metros que separavam o bar do prédio. Experimentou a maçaneta de uma velha porta de madeira. Ficou satisfeito ao notar que ela não estava trancada. Evitou qualquer ruído ao abrir a porta e entrou rapidamente, com o revólver na mão, fechando a porta atrás de si. 
     À sua frente havia um estreito e curto corredor com uma porta à direita e uma escada no fim. Mário tentou abrir a porta. Também não estava trancada. O pequeno quarto estava em completa escuridão. Mário tirou uma pequena lanterna do bolso e iluminou o cômodo. Encontrou estantes repletas de caixas de munição. No chão, caixas de explosivos e bananas de dinamite. Um pequeno paiol com material suficiente para detonar um prédio de dez andares, Mário calculou mentalmente. 
     Encostou a porta e apagou a lanterna. Às escuras, começou a subir os degraus de cimento da estreita escada. Eles terminavam num pequeno corredor que, por sua vez, acabava no que parecia ser uma sacada que dava para os fundos do prédio. Mário avançou cuidadosamente, e notou três portas de cada lado do corredor. Encostou o ouvido na primeira porta à esquerda; não ouviu nada. Tentou do outro lado, com o mesmo resultado. Também não parecia haver ninguém nas salas do meio do corredor. Só na última porta à esquerda ele ouviu vozes. Reconheceu uma delas como sendo do delegado-chefe. A outra era completamente estranha para ele. Mário olhou pelo buraco da fechadura; viu diante de Lúcio uma figura baixa e mirrada, totalmente de preto, com o rosto escondido pelas sombras. A personagem acendeu um fósforo e o aproximou de um cigarro que tinha na boca, permitindo a Mário não mais do que um lampejo de sua aparência. Notou que o estranho usava óculos, mas logo o fósforo se apagou e não foi possível identificar qualquer outro sinal característico. Mas a memória fotográfica é uma habilidade engraçada: imediatamente Mário lembrou-se de ter visto aquele mesmo vulto antes, em Campos do Jordão, no dia do atentado, numa rua atrás do Fórum, observando tudo como se fosse apenas mais um curioso. O detetive encostou o ouvido no buraco da fechadura. Como os dois homens não pareciam preocupados em serem ouvidos, falavam num tom de voz que permitiu ao investigador escutar a conversa.
     - Ele está perto demais da gente - era a voz de Lucio.
     - Vamos lidar com o problema como fizemos com o miliciano preso e o policial bisbilhoteiro. E com o Flavio - Mário não reconheceu a voz que respondeu. O timbre lhe pareceu impessoal, frio como uma lápide. 
     - Isso tá fugindo de controle, Crisóstomo. Não era para matar policiais inocentes, muito menos um juiz. 
     - Prefere ir preso, ou pior, ser caçado pelos nossos inimigos e aparecer morto numa esquina qualquer, numa simulação de latrocínio? Não se engane, Lúcio. Nossos inimigos matariam um policial de alto escalão sem pensar duas vezes. É guerra. E na guerra vale tudo.
     - Como a gente chegou nesse ponto? Quando a gente começou…
     - Quando a gente começou a sua ambição falou mais alto, Lúcio. Não lembro de você ter reclamado quando eu mexi uns pauzinhos pra você ser nomeado delegado-chefe, a despeito do seu passado de "infrações". Também não reclamou quando limpei a sua ficha, e não achou nada demais cooptar alguns policiais dispostos a ganhar uma grana a mais, para cuidar das investigações dos assaltos e sequestros que nossos milicianos praticavam. Tudo muito limpo.
     - Não sobrou nada limpo nessa história! - protestou Lúcio.
     Fez-se silêncio por alguns segundos. Mário olhou pelo buraco da fechadura e percebeu um vulto, vestido de preto, de pequena estatura, se aproximando de Lúcio. 
     - Vou ter problemas com você também, Lúcio?
     Mário conseguia sentir a tensão enchendo o ar de eletricidade na pequena sala. Quase podia ouvir os dentes de Lúcio estalando de medo. O delegado-chefe do DEIC respondeu com voz trêmula:
     - Não… eu sei o que precisa ser feito. Vou agir.
     - Ótimo. E espero não ter que me reunir de novo com você pessoalmente. É uma exposição desnecessária. Resolva seus problemas sem me envolver.
     - Se você aceitasse falar por telefone…
     - Não estou há mais de 20 anos ileso e ativo dando bandeira em ligações que podem ser grampeadas, Lúcio. Não seja burro. E agora esta conversa acabou.
     Lúcio se dirigiu para a porta seguido pelo tal "Crisóstomo", que jogou a bituca de cigarro no chão. Por um momento Mário hesitou em sair dali; queria ver o rosto do homenzinho de voz gelada. Mas o bom senso imperou; ele correu para a sacada no fim do corredor, escondendo-se atrás da janela.  Esperou os dois homens descerem os degraus e foi até a sala onde se deu aquela sinistra reunião. Observou que não havia nenhum móvel naquele cômodo e a única janela tinha os vidros pintados de preto, como para ocultar alguma coisa dos olhos externos. O lugar tinha uma atmosfera irreal, mítica, como um purgatório ou um pequeno inferno. Essa impressão era aumentada pelo calor sufocante. Mário ligou a lanterna e procurou algo no chão. Quando encontrou, tirou do bolso um dos sacos de evidências que sempre carregava consigo e recolheu, com cuidado, a bituca de cigarro deixada pelo homem misterioso. Depois disso se dirigiu para as escadas mas interrompeu o trajeto ao ouvir um barulho alto de madeira quebrando, e notar que alguém estava subindo. Encostou-se na parede e sacou o revólver. Quase disparou antes de reconhecer o vulto de Januário. 
     - Vamos embora daqui - disse Mário.
     Desceram a ladeira a passo acelerado. Não olharam para trás nenhuma vez. Entraram no carro e saíram de ré, voltando à rua principal. Quando se afastaram o suficiente, Januário respirou. 
     - Quando vi o Lúcio saindo do prédio com outro homem esperei um pouco. Como você não descia, arrebentei a porta e entrei, já esperando o pior. O que aconteceu lá dentro? - quis saber o policial.
     - Parece que o delegado-chefe Lúcio Rinaldi tem alguns esqueletos no armário, afinal - Mário pegou mais uma pastilha de menta, tentando espantar a acidez que começava a queimar seu estômago. Seus dedos tocaram de leve o saco de provas que guardara no bolso.

19

Sexta-feira, 19 / 20 de setembro de 1991

     Mário Russo não quis voltar para o apartamento da filha, ciente de que poderia levar perigo a ela. Ciente de que estava ele mesmo em grande perigo. Depois de deixar Januário em casa fez uma ligação do primeiro orelhão que encontrou. Falou pouco e rápido, com firmeza. Depois rodou sem destino por algumas horas. Escolheu uma pequena pensão perto do centro histórico e pagou  adiantado  pela diária. O minúsculo quarto cheirava a naftalina e água sanitária. Os lençóis pareciam limpos, mas tinham manchas amareladas que a máquina de lavar não conseguiu remover. Janela pequena que dava para uma parede de tijolos - que diferença das belas vistas de Campos do Jordão. Além da cama, um espelho sobre uma escrivaninha minúscula e uma cadeira de madeira. Banheiro no fim do corredor. O policial inspecionou tudo, tomando o cuidado de escolher uma rota para sair rápido dali se fosse necessário. Escada de incêndio.  Tirou o paletó e deitou-se completamente vestido, sequer tirou os sapatos. Preso ao peito, o coldre com o revólver de estimação. Mário pegou o revólver e ficou com ele na mão, olhando para o teto do quarto. Apesar de esgotado, não conseguiu descansar. Cérebro em febre. Pensamentos atravessados. Flávio Rogendorff, Lúcio, o misterioso Crisóstomo, atentado a bomba, morte de Gusmão executado na própria cama, perseguição em Campos do Jordão, Júlia em perigo. Nas alucinações que povoaram sua semiconsciência, Mário estava de volta à colina que se abria atrás da casa de sua família em Campos do Jordão. Andava calmamente, sentindo o vento frio que cortava o ar, tocando de leve as touceiras de capim-gordura com os dedos estendidos da mão esquerda. Diante dele a bela visão dos morros cobertos de árvores e mais ao fundo o céu de um azul perfeito, imaculado, o mais puro que já se viu. Sua casa. Um lugar seguro. Mas não naquele momento. Sentia-se acuado e perseguido e não conseguia concatenar o sono.
     Quando saiu do transe, o dia inteiro já tinha transcorrido e a noite caía lentamente sobre os prédios do centro histórico. Saiu do quarto sem ter conseguido um minuto de descanso no sono entrecortado de visões. Pegou o carro e foi até o restaurante próximo. Ficou pouco tempo ali, o suficiente para uma refeição frugal de salada e ovos. Enquanto comia tentava afinar os sentidos e manter-se alerta. Pensava nas informações juntadas até então. Começavam a formar um desenho nada bonito. Uma hidra de muitas cabeças, um enxame enfurecido atacando por todos os lados. 
     Pagou a conta e saiu do restaurante. Entrou no carro de novo e tomou o rumo do hospital Sírio-Libanês. Não demorou muito para perceber que havia alguém no encalço dele. Como o encontraram tão rápido? Rastrearam seu cartão de crédito, certamente. Localizaram o pagamento pelo aluguel do carro e botaram o sistema da delegacia de trânsito para caçar a placa. Ou forma informados de sua breve estadia no hotel. Isso pouco importava agora, o vital era se livrar do perigo.  A saída foi enveredar numa rua à esquerda; teve a confirmação de que era perseguido quando viu os faróis do carro preto logo atrás, fazendo o mesmo caminho. 
     Mário pensou rápido. Não tinha paciência para ficar parado enquanto a arapuca se armava em torno dele. Reduziu a marcha e acelerou repentinamente. O outro carro fez o mesmo. Mário tomou o rumo do Vale do Anhangabaú. As ruas estavam movimentadas ainda àquela hora da noite. Rush. Muita gente saindo do trabalho, trânsito lento. Com destreza, o inspetor usou o tráfego a seu favor. Entrou na contramão numa rua secundária e avançou perigosamente por alguns metros, até encontrar uma saída à direita. Os perseguidores foram no encalço dele, agora despreocupados em disfarçar sua presença. Mário acelerou ainda mais. O outro carro se aproximava. Não conseguiu ver os ocupantes do veículo pelo retrovisor, ofuscado pelos faróis. Mas conseguiu identificar o modelo do carro: uma caminhonete alta e potente com cabine estendida e pneus largos. Sabia que seu carro não tinha motor suficiente para despistar quem estava atrás dele. Teria que se valer do trânsito da cidade e do emaranhando de ruas do bairro. A caminhonete se aproximava como um monstro faminto, faróis altos ofuscando a visão pelo retrovisor, motor rugindo. Pelas calçadas o inspetor notava de soslaio uma ou outra expressão assustada em pedestres surpreendidos. Nenhuma viatura de polícia por perto. Aquela situação não poderia se manter por muito tempo. Mário usou o freio de mão para derrapar e convergir à direita numa avenida de mão dupla. A caminhonete passou do ponto da curva e perdeu alguns segundos freando e dando ré para acessar a via. Mário conseguiu ouvir as buzinas de motoristas que seguiam logo atrás da caminhonete, irritados com a manobra irregular. A pequena vantagem conseguida não serviu para muita coisa, Mário não tinha tempo de pensar em alguma alternativa. Tentou rever na memória o mapa da região, mas não encontrou qualquer rota de fuga eficiente. Então decidiu partir para um enfrentamento mais direto. Ele parou bruscamente, sem aviso, os pneus deixando marcas no asfalto e um guincho agudo cortando o ar; o veículo dos perseguidores bateu na traseira do carro dele. O inspetor abriu a porta e correu para a calçada oposta com o revólver na mão. Viu com o canto do olho dois homens saindo do carro preto e indo atrás dele. Entrou numa lanchonete suja e pequena e foi direto para os fundos. Abriu a porta de serviço e saiu para um pequeno pátio malcheiroso, com latas de lixo transbordantes e um gato vira-lata num canto, lambendo as patas. Beco sem saída. Nenhuma porta, nenhuma viela. Os perseguidores abriram a porta de serviço bruscamente e se viram num pátio malcheiroso como latas de lixo e um gato vira-lata. Nenhuma porta nenhuma viela. Olharam em volta. Nenhum sinal do policial que foram orientados a matar. Confusos, imaginaram que ele tivesse conseguido se esconder dentro da lanchonete. Já se preparavam para voltar para lá quando um deles notou a lata de lixo encostada na parede. Chamou a atenção do comparsa e os dois olharam para cima a tempo de ver um sapato e uma perna se esconderem atrás de uma pequena sacada de madeira. Um dos perseguidores subiu na lata de lixo, agarrou-se à sacada e puxou o próprio corpo para cima, usando toda a força dos braços. Enquanto isso o outro entrava pela porta de serviço à procura da escada interna que levaria ao segundo andar. 

     Segundos antes Mário tinha forçado a janela da sacada. Preparava-se para entrar quando notou que um dos perseguidores subia atrás dele. Esperou até que a cabeça do homem se erguesse acima da sacada, e chutou com toda a força. A bota com sola reforçada fez um barulho surdo, como uma pedra grande caindo num monte de areia, quando acertou o adversário em plena face. O homem ainda tentou se agarrar, mas um segundo chute tirou qualquer possibilidade disso acontecer. Mário se voltou novamente para a janela enquanto ouvia o barulho do corpo caindo sobre a lata de lixo no pátio. Empunhou o revólver e ficou esperando que a porta fosse aberta pelo segundo perseguidor.  Em poucos instantes que pareceram eternos olhou em volta e notou que estava no que deveria ser o depósito da lanchonete. Sacos de farinha, mantimentos, latas de extrato de tomate. Ouviu um barulho no trinco. Deitou-se no chão, de bruços, escondido entre sacos de cebolas e potes de pêssegos em conserva. Fez pontaria e aguardou. A porta se abriu, o homem atirou sobre a cabeça de Mário. Ele reagiu imediatamente. Foram dois tiros. Um deles atingiu o agressor em pleno peito. O outro pareceu se alojar no braço enquanto o estranho caía para trás como um tronco de árvore. Mário levantou-se ainda apontando para o corpo caído. Chutou a pistola no chão para longe. Atento a qualquer movimento na escada, verificou a respiração do baleado. Nada. Mexeu nos bolsos do morto e logo encontrou o que procurava. Uma carteira de couro com o emblema da polícia civil. Olhou o nome. Anderson Galhardo. Investigador. DEIC. Nenhuma surpresa. Mário voltou até a sacada e olhou para baixo. O outro homem parecia desacordado, com o corpo estatelado sobre o chão sujo e uma lata de lixo sob a perna direita. Cuidadosamente, Mário voltou até a porta e abriu uma pequena fresta. Observou o estreito corredor da lanchonete lá embaixo e esperou por um minuto para se certificar de que nenhum outro perseguidor apareceria. Viu apenas os olhos assustados dos garçons e de um ou outro cliente, curiosos com a confusão. Mário desceu e foi ao balcão. “Chame a polícia, diga que dois homens invadiram seu restaurante perseguindo o inspetor Mario Russo”. Escreveu o próprio nome num guardanapo. “Mário Russo, entendeu? Ligue agora mesmo”. Mário saiu do restaurante e viu os dois carros batidos no meio da rua, como tinha deixado minutos antes. O carro que tinha alugado estava amassado na traseira e com o farol aceso. “Ainda bem que fiz o seguro completo”, pensou pateticamente. Olhou para o relógio de pulso: meia-noite. Saiu calçada acima, cabeça baixa, passos rápidos. Até que desapareceu nas sombras da noite paulistana.

Sexta-feira,20 de setembro de 1991, uma da manhã. 

     O homem loiro e seu comparsa entraram no hospital e foram até o balcão da recepção, como se quisessem informações sobre algum paciente. Notaram que o local comumente usado pelos policiais encarregados da segurança do juiz estava vazio. Olharam-se confiantes. Certamente aquilo tinha sido um acerto dos "contratantes", para facilitar o "trabalho" deles naquela noite. Na recepção quase vazia ninguém pareceu notar a presença dos dois. Eles usaram o conhecimento adquirido quando eestudaram longamente a planta do hospital e também as câmeras de vigilância; conseguiram evitar serem filmados de frente, e esconderam eficientemente os rostos enquanto seguiam para o elevador. Dentro dele, permaneceram o tempo todo olhando para baixo para evitar serem reconhecidos depois, quando aqueles vídeos fossem usados para tentar identificar os invasores. A subida até o sétimo andar não sofreu nenhuma interrupção àquela hora da madrugada. A porta se abriu e o corredor da ala de UTIs se mostrou pouco iluminado diante deles. Olharam para os lados, verificando se nenhuma testemunha inoportuna atrapalharia seus planos. Caminharam com firmeza rumo ao quarto de número dois. O homem loiro tirou do bolso uma seringa com um líquido transparente, enquanto seu parceiro sacava uma automática com silenciador, olhando nervosamente em volta. Os dois entram no quarto. O homem loiro se aproxima da bolsa de soro enquanto o outro fica perto da porta. O loiro retira a proteção da agulha e pega a mangueira que leva o soro até o paciente. Aproxima a agulha para injetar o líquido da seringa, quando é bruscamente interrompido por uma voz:
     - Não se mexa!
     O homem loiro olha para a porta e vê seu companheiro com as mãos na cabeça, sob a mira do fuzil de um policial com uniforme do G.O.E. Outro policial aponta diretamente para ele. O loiro ainda olha mais uma vez para a seringa que tem nas mãos, tentado a continuar o que estava fazendo.
     - Larga isso ou eu atiro! - diz o policial, num tom que não deixa espaço para argumentação. 
     Depois de um segundo que parece eterno, o loiro solta a seringa e levanta as mãos. É desarmado rapidamente pelo policial. 
Nesse momento, dois homens entram na sala. Um deles é o próprio comandante do G.O.E, delegado Herculano. Ele abaixou-se e pegou a seringa do chão. 
     - Aposto que uma perícia vai mostrar que tem veneno aqui dentro - disse Herculano, virando-se para o outro homem logo atrás dele.
     - Certeza absoluta, doutor Herculano - respondeu Mário Russo. 
     De fato, exames posteriores mostraram que a seringa continha digoxina. Para todos os efeitos a causa da morte seria um ataque do coração perfeitamente explicável diante das condições do paciente. Um assassinato no melhor estilo Agatha Christie. 
     O homem loiro parecia não acreditar no que estava acontecendo.


     Horas mais tarde os dois homens presos foram identificados como policiais da DEIC, sob o comando direto do delegado Lúcio Rinaldi. Não demorou muito para envolverem o superior naquela conspiração de assassinato. O plano era injetar uma dose letal de um veneno específico, que desapareceria do organismo do juiz Flavio Rogendorff logo depois da morte, deixando sinais de um simples ataque cardíaco. Também confirmaram envolvimento na explosão no fórum de Campos do Jordão. Confessaram ter usado o RDX como explosivo e deram detalhes que batiam perfeitamente com o inquérito conduzido em Campos do Jordão: espoleta elétrica, Bíblia como disfarce para a bomba, um plastificante especial para dar estabilidade ao RDX. O explosivo foi encontrado junto com munição e armamentos num endereço indicado pelos bandidos - por acaso, o mesmo prédio onde Mário tinha assistido à estranha conversa entre Lúcio e o misterioso Crisóstomo, no dia anterior. Só a motivação do crime não foi revelada pelos dois, pois não sabiam qual era. Mário acreditou neles. "Paus-mandados, só obedecem", pensou.
     Antes do dia amanhecer, o delegado Lúcio foi preso e, no rastro dele, todo um grupo de policiais da DEIC, que ele entregou como participantes de atividades ilegais e fraudes em investigações. Quem deu o furo foi o jornalista Luis Quevedo, munido de informações detalhadas passadas por “uma fonte secreta”:

"CHEFE DA DEIC É PRESO SUSPEITO DE ENVOLVIMENTO EM ATENTADO CONTRA JUIZ"
"Delegado Lúcio Rinaldi foi o mandante do crime, diz comandante do G.O.E" 
- Por Luis Quevedo - da Redação

     Na reportagem de duas páginas, o principal entrevistado era o delegado Herculano, chefe da investigação. Mas diversas informações extra-oficiais davam outro tom à reportagem, sugerindo que o mentor do atentado seria alguém ainda não identificado, e que "haveria ainda muita sujeira debaixo do tapete da DEIC".


 Foram semanas agitadas no meio policial. Acuado, Lúcio acabou revelando mais detalhes da rede criminosa instituída dentro da DEIC - o braço policial da organização sem nome que enfrentava os corruptos sem respeitar os limites da lei. Entre os denunciados aparecia Anderson Galhardo, morto num pé-sujo da capital, e Benedito Calixto, encontrado no mesmo local com afundamento da face e uma perna quebrada. “É perigoso se meter com você, não é, inspetor Mário Russo?” - brincou o comandante do G.O.E. quando soube como aquilo aconteceu aos dois. A confirmação de que os dois policiais tinham envolvimento com vários atos ilícitos, e que teriam praticado homicídios a mando de Lúcio, encurtou o processo aberto pela corregedoria, que investigava as circunstâncias em que eles se confrontaram com Mário. O depoimento do dono do restaurante também ajudou a esclarecer tudo: “um homem entrou correndo. Logo outros dois entraram com armas nas mãos. Me abaixei atrás do balcão, ouvi barulho lá fora, tiros no andar de cima”, disse. Ele reconheceu Mário Russo como o primeiro homem a entrar no restaurante, e como a pessoa que pediu a ele para chamar a polícia depois do tiroteio. 

     "POLICIAIS DA DEIC FRAUDAVAM INVESTIGAÇÕES E COMETIAM ASSASSINATOS", dizia a manchete.

     Seguiram-se outras reportagens com revelações avassaladoras. O dono da TV Metrópole seria investigado por suposta ligação com uma organização criminosa, que não tinha nome nem estatuto, mas usava os meios de comunicação para incriminar seus alvos e encobrir seus crimes. "Não sei do que estão falando", dizia Alcebíades, enquanto posava para fotos em eventos sociais. Da mesma forma Gustavo, o médico-legista chefe do Estado, foi afastado do cargo enquanto transcorriam as investigações sobre fraudes em autópsias e laudos. Ronaldo foi preso na revenda de automóveis onde "trabalhava" quando não estava participando de algum assalto. 
     Essa prisão abriu uma nova fase da operação policial deflagrada desde o atentado contra o juiz. Ronaldo entregou nomes de comparsas que agiram com ele em assaltos e sequestros que tinham como objetivo minar as finanças de corruptos notórios da República. E acabou revelando o sistema de contrato, em que nunca havia contato direto com o "empregador"; tudo se resolvia por telefone ou intermediários, e o produto dos crimes era depositado em contas numeradas - depois de retirada a gorda comissão dos assaltantes. 

     "MILÍCIAS COMETEM CRIMES POR CONTRATO NA CAPITAL", publicou Luis Quevedo no Estadão.

     - Acho que cumpriu sua parte do acordo, senhor Russo - disse Quevedo, satisfeito com as informações privilegiadas que o policial lhe passou por vários dias.
     - Mas pega a caneta, Quevedo, porque tenho mais "informações  extra-oficiais" pra te passar - respondeu Mário. 
     - Lembra do escrivão assassinado dentro do próprio apartamento, no mês passado, na zona leste? Gusmão Sampaio, que trabalhava no pátio de veículos apreendidos da polícia? Então. Ronaldo confessou o crime.
     Quevedo começou a anotar.
     - Ronaldo disse que recebeu a ordem do próprio delegado Lúcio Rinaldi. Gusmão estava envolvido no planejamento do atentado contra o juiz. Ele forneceu o carro dirigido por Ronaldo e usado pelos bandidos que prepararam a bomba e postaram o livro para o Fórum de Campos do Jordão. O loiro que prendemos tentando envenenar Flavio no hospital é especialista em explosivos. Foi ele quem fez a pequena obra de arte de esconder a bomba numa Bíblia. Pois bem, o carro usado nesse trabalho estava sob a guarda do Gusmão, no pátio da polícia. Gusmão descobriu como o carro seria usado, e os planos para matar o juiz Flávio. Ficou amedrontado, afinal matar um juiz não é uma bobagem qualquer. Foi diretamente a Lúcio dizer que não queria mais tomar parte nas operações ilegais que constantemente liberavam carros apreendidos para a prática de diversos crimes do misterioso grupo ao qual Lúcio fazia parte. Na hora da conversa, Lúcio fingiu encarar o receio do subalterno com naturalidade. Mas depois avisou Ronaldo de que era necessário "queimar um arquivo-vivo". Ronaldo foi até o apartamento de Gusmão. Não teve dificuldade para entrar no prédio sem porteiro. Subiu ao quarto andar, abriu a porta o mais silenciosamente que conseguiu e matou Gusmão a sangue frio enquanto ele dormia deitado de bruços na cama. Depois saiu do apartamento e teve o capricho de trancar a porta com a chave da própria vítima. Enquanto isso, para justificar o sumiço do escrivão, o delegado Lúcio assinou uma ordem de licença médica em nome de Gusmão. Isso atrasaria, como de fato atrasou, o encontro do cadáver. Apreendi uma pistola na revenda onde Ronaldo trabalhava. Ela está na balística e pode ter sido a arma usada para matar Gusmão. 
     Quevedo guardou a caderneta de anotações no bolso quando Mário terminou.
     - Já tenho a manchete pra edição de amanhã.
     - Espero que não se intimide com as ameaças que certamente virão, senhor Quevedo - respondeu Mário, enquanto apertava a mão do jornalista. E estendeu para ele um livro que Quevedo tinha escrito no ano anterior, sobre jornalismo investigativo.
     - Se importa de autografar? Para Natália, por favor. 

20

     Herculano estava muito feliz com o resultado da limpeza que fez na polícia. Também lhe agradava o fato de Mário não querer os louros por ter descoberto o esquema desde o início.
     Mas Mário sabia que a cabeça de toda aquela engrenagem criminosa continuava à solta. Por conta disso, e a contragosto do chefe em Campos do Jordão, permaneceu na capital. Ele ainda procurava um meio de chegar ao centro do círculo.
     "Crisóstomo".
     Não houve como arrancar qualquer palavra de Lúcio a respeito da misteriosa figura.
     O ex-chefe da DEIC foi interrogado horas a fio por uma junta de policiais, da qual eventualmente Mário Russo fazia parte. Foram centenas de perguntas, mas apenas uma, feita pelo policial jordanense, tirou a tranquilidade de Lúcio:
     - Quem é Crisóstomo? 
     Os olhos do ex-delegado ficaram vidrados de pavor, pareciam querer saltar das órbitas. Ele negou insistentemente conhecer alguém com aquele nome. Mas as mãos trêmulas e a voz subitamente insegura contradiziam aquela mentira.
     - Vou lhe contar uma história - disse Mário. - Era uma vez um policial de alto escalão e um sujeito magro e pequeno, com voz fria e óculos, que se encontraram no meio da madrugada num casarão cheio de explosivos em Barueri. O sujeito anônimo fumou e jogou a bituca de cigarro no chão - descuido quase infantil para alguém tão zeloso em permanecer incógnito. Ele não esperava que aquela bituca fosse parar na sala de perícias da Secretaria de Segurança Pública. Nem que um exame de D.N.A. identificasse a saliva no cigarro como pertencente a Crisóstomo Valadares, herdeiro de uma família tradicional do interior do Estado, ex-estudante de direito, rico e aparentemente desocupado.
     O espanto criou uma carranca de pavor na face de Lúcio.
     - Já sei quem é Crisóstomo. Mas o que me falta saber é "quem é ele"? - insistiu Mário.
    Mas o interrogatório não evoluiu.

     Depois de dezenas de prisões e uma reformulação completa na DEIC, a investigação parecia ter chegado a um beco sem saída.  Aí foi a vez de Quevedo surpreender com uma novidade: 
     - Sabe quem me procurou, querendo dar um furo? O Ricardo Dias. 
     - Aquele do "bate-boca" com o dono da TV Metrópole?
     - Tem ótima memória, detetive. Ele mesmo. Me chamou para um barzinho no Bexiga, e contou uma história louquíssima. Disse que o Alcebíades sabia de todo o plano pra matar o juiz Flávio Rogendorff. 
     - E como ele sabia disso?
     - Não quis revelar. 
     - Certo, o tal do sigilo da fonte que vocês tanto apreciam - Mário falou com ironia. - E por quê ele te contou isso?
     - Alegou desavença pessoal com o Alcebíades por causa de “diferenças ideológicas”. O Alcebíades estaria emprurrando-o para uma “geladeira” profissional, e em represália Ricardo resolveu jogar a merda toda no ventilador. No caso, eu sou o ventilador - disse Quevedo.
     A curiosidade pelo informante foi despertada. Mário quis saber mais sobre aquele “dinossauro” da velha guarda da imprensa paulista. Quevedo relatou o que sabia de experiência própria e também o que apurou sobre Ricardo pessoalmente, depois que recebeu as informações dele.
     - Ricardo Dias tem uns quarenta anos de profissão. É da velha escola, de uma época em que o estilo importava muito mais do que hoje e os textos na imprensa eram bem mais saborosos, embora talvez não tão informativos como agora. Há uma característica estranha na forma como ele conduziu sua carreira: sempre está presente em coletivas importantes, ostentando a credencial de jornalista; aparece nos grandes acontecimentos, crimes, acidentes, escândalos, com sua cadernetinha e sua caneta a postos, um sorriso meio maroto nos lábios e os poucos cabelos grisalhos jogados sobre a calva mal disfarçada. É o tipo do sujeito que conhece todo mundo e todo mundo conhece. Por isso mesmo, cultivou uma agenda de fontes cobiçada por todos os jornalistas da cidade. 
     - Você se inclui, claro! - brincou Mário. Quevedo apenas sorriu e continuou.
     - O fato é que mesmo com toda essa atividade, todo esse arsenal de fontes e informações, Ricardo Dias aparece pouquíssimo nos grandes jornais do país. Excetuando-se um ou outro frila em cadernos de turismo ou alguma reportagem rasa sobre comportamento, não encontrei quase nada de relevante no currículo dele, pelo menos nos últimos 30 anos. É como se ele tivesse escolhido de propósito o caminho dos bastidores; tivesse optado por ficar em segundo plano. Conversei com vários colegas e fontes que tenho na polícia… Ricardo se especializou em fornecer informações. É procurado frequentemente por profissionais da imprensa, investigadores particulares ou detetives da polícia atrás de detalhes sobre suspeitos, perfis de criminosos, operadores de fraudes e corruptos. Note que esse banco de dados considerável, que Ricardo guarda a sete chaves em armários de aço na velha casa onde mora no Limão, não condiz com a rala produção jornalística dele próprio. 
     - Curioso. Onde fica a vaidade nessa história? - perguntou Mário. Quevedo olhou para ele, confuso.
     - Conheço pouca gente mais vaidosa que jornalistas. Mas esse Ricardo parece ser imune a esse vírus - explicou-se o detetive. 
     - Sim, é esquisito mesmo - concordou Quevedo. - De qualquer forma, essa habilidade em conseguir informações foi o que aproximou Ricardo do ex-colega de faculdade, o grande empresário de comunicações. Os dois se encontravam com frequência em restaurantes caros e lugares públicos, onde mantinham longas conversas a meia voz. Isso permaneceu assim até que esse laço foi rompido inesperadamente.
      - Descobriu por que brigaram, ele e Alcebíades?
     - Ouvi muita fofoca sobre isso, inspetor. Claro que os levianos falam que tem mulher envolvida, dívidas não pagas… Mas pelo menos dois de meus contatos deram a versão mais confiável: Ricardo ajudaria Alcebíades em missões extra-oficiais, quando o empresário não queria envolver diretamente o nome da TV Metrópole em furos de reportagem mais delicados. Foi o que aconteceu na cobertura do famoso desvio de verbas na área da saúde ocorrido na década passada. Soube que Ricardo foi o estopim para o vespeiro em que se transformou o caso. Ele recebeu informações diretamente de Alcebíades, junto com o pedido para aprofundar a investigação e repassar tudo de mão beijada para a concorrência. 
     - Mas por que ele faria isso?
     - Cortina de fumaça. Alcebíades não queria colocar seu grupo empresarial na mira dos criminosos. Se houvesse retaliação, jurídica ou de outra natureza, se daria contra outros veículos de comunicação. A TV Metrópole entrou na história depois, e com a estrutura de que dispõe, assumiu a liderança na cobertura do caso - mas aí o escândalo já estava montado. Ao que parece, Ricardo e Alcebíades foram parceiros em várias operações como esta, até que Ricardo começou a se sentir preterido. Era cada vez menos acionado para essas missões. Talvez esteja aí a tal vaidade… Acabaram tendo aquela discussão pública e, até onde meus contatos sabem, rompido relações definitivamente. E tem mais uma coincidência interessante:
     - O que é?
     - O juiz do caso dos desvios na saúde… ganha um prêmio se descobrir quem era.
     Mário Russo não conseguiu reprimir uma expressão de espanto:
     - Flávio Rogendorff.
     - O próprio. 
     - Concordo que é interessante, Quevedo. Mas não acredito em coincidências. 

     Ricardo contou a Quevedo que sua principal fonte de renda eram repasses de dinheiro feitos por Alcebíades depois de cada vazamento de informações que ele organizava. Quevedo disse a Mário que checou as informações tomadas de Ricardo. Datas de depósitos volumosos e sem justificativa, que teria recebido de Alcebíades para simplesmente permanecer calado a respeito de coisas que ocorriam desde os tempos em que os dois estudavam jornalismo. O papel de Ricardo e Alcebíades numa organização que se formava era plantar notícias para despistar autoridades sobre os rastros da operação, e fazer denúncias contra os inimigos que escolhiam aleatoriamente - principalmente corruptos que atuavam muito perto do poder político. 
     - Esse grupo se imaginava uma espécie de “Bando feliz de Robin Hood” - disse Quevedo. - Só assaltava quem tinha culpa no cartório. Pelo que apurei das informações de Ricardo, esse pessoal fez um bocado de barulho, e ainda faz até hoje. Um amigo íntimo do presidente,  e que dizem que é o grande administrador do balcão de “negócios escusos” da República na atualidade, seria um dos alvos. Gente poderosa, meu amigo. Mas o mais interessante vem agora.
     Mário esperou em silêncio que Quevedo continuasse.
     - O juiz Flávio Rogendorff também faria parte desse grupo sem nome. Um pequeno grupo, que comandava todo o esquema que você tá desmascarando agora. Policiais corruptos, milícias, laudos falsos do doutor Gustavo. E o motivo do atentado é o mesmo que levou o escrivão Gusmão à morte: a decisão de sair do esquema. 
     - Quem chefia o grupo? - quis saber Mário.
     - Ele não disse, por mais que eu insistisse. Não tenho provas suficientes para publicar o que o Ricardo falou. Mas imaginei que essas informações poderiam lhe ser úteis. 
     - Não acha que isso não passa de conversa de bêbado magoado?  
     - Até onde consegui checar tudo bateu. Tive acesso aos depósitos. Dinheiro grosso. Por que Alcebíades daria tanto dinheiro a alguém que nem está na folha de pagamento dele? Caridade com um velho amigo de faculdade? 
     - Boa pergunta, jornalista. E eu tenho uma ainda melhor. Como alguém foi capaz de organizar tamanha máquina criminosa?
    No dia seguinte, antes que Mário pudesse fazer a pergunta diretamente, Ricardo foi encontrado morto com um tiro na cabeça.  O exame da balística foi curioso e estimulante. Ricardo não tinha sido baleado com uma arma qualquer. A análise identificou um projétil de 9mm, mas certas características nas ranhuras da bala simplesmente não casavam com nenhuma pistola moderna. “A arma é de fabricação caseira, ou então pode ser um exemplar da Parabelum Luger P08, da Primeira Grande Guerra”, dizia o relatório. Aquilo era quase uma assinatura do assassino, tão rara era aquela pistola, ainda mais em bom funcionamento.
  Para o inspetor, o assassinato foi a mais violenta confirmação de que o jornalista tinha  falado a verdade. Mas aquela porta, agora, estava definitivamente fechada. "Crisóstomo" era rápido em apagar rastros.  

21

     Mário não imaginava um meio de chegar ao personagem misterioso que viu apenas de relance em Barueri. O exame de D.N.A e as informações obtidas naquela noite foram insuficientes para convencer um juiz a expedir uma ordem de prisão. Nenhum policial corrupto, nenhum miliciano e muito menos Lúcio, cedeu qualquer informação que levasse a Crisóstomo. A maioria deles nem sequer conhecia o mentor do "grupo". O inspetor acreditava neles - menos em Lúcio, mas este estava irredutível. O caderno e a caderneta encontrados no fórum de Campos do Jordão e na casa de Flávio Rogendorff também ofereceram poucas informações nesse sentido. Sem uma chave que decifrasse os códigos, ou uma informação que identificasse as contas, seria difícil evoluir mais. 
     O homem estava fora de alcance. Pelo menos, fora do alcance da lei. Mas talvez não da justiça. Em casos como este, Mário costumava usar a mesma filosofia que norteava toda sua vida: ir direto ao assunto. Obteve o endereço de Crisóstomo nos registros da investigação, pegou a “zero-um” e seguiu rumo a Ribeirão Preto pela rodovia Anhanguera. Não sabia muito bem o que pretendia fazer, ou que situação acreditava encontrar. Tinha certeza que os homens que tentaram matá-lo estavam a serviço do mesmo grupo criminoso que explodiu o fórum de Campos do Jordão e o juiz. Seria perigoso. Mas ele contava com o fator surpresa. Tinha claro para si que Crisóstomo esperaria qualquer coisa, menos uma visita direta do inimigo. 
     Chegando ao bairro chique da Capital do Chope, Mário estacionou numa rua afastada e perambulou pelas imediações da Mansão dos Valadares. Observou o movimento durante mais de duas horas. Certificou-se de que não havia capangas por perto. Fazia sentido: discreto até o fim, aquele adversário formidável não arriscaria o próprio anonimato cercando-se de seguranças e chamando para si uma atenção indesejada. 
     Era a hora. Aquilo devia ser feito. O policial pegou uma pastilha de menta de dentro da caixinha que guardava no bolso da jaqueta. Jogou-a na boca e caminhou até a escadaria da porta da frente da mansão, apreciando o sabor adocicado e mentolado que se espalhava por sua boca. Olhou para os lados… algumas crianças brincavam no fim de tarde, na esquina rua acima. Fora isso as calçadas estavam desertas. Subiu os degraus lentamente, contando-os. Não conseguia se livrar daquele tipo de mania estranha e inútil, como contar degraus. Ajudava-o a manter a calma em situações tensas como aquela. Eram sete degraus. Aproximou-se da porta reparando nas colunas de estilo romano que sustentavam um teto sobre o pequeno pátio de entrada. Segurou na aldrava de ferro, em forma de leão com a bocarra aberta, e achou que aquilo tudo combinava: um gosto clássico na arquitetura. Gosto duvidoso, mas clássico. Bateu na porta com a aldrava por três vezes e esperou. Repetiu a operação. Teve a impressão de ouvir passos atrás da porta. Esperou mais um pouco, imaginando que estava sendo observado pelo olho mágico. A porta se abriu. 
     O homem, baixo e magro, de óculos fundo-de-garrafa manteve a expressão impassível e o silêncio absoluto.
     - Senhor Crisóstomo, eu imagino - disse, mostrando o distintivo. - Polícia. Quero falar com o senhor sobre o atentado ao juiz Flávio Rogendorff. 


     Crisóstomo tremeu as pálpebras levemente. Manteve silêncio, afastou-se e fez um gesto com a mão direita, convidando o investigador a entrar. Mário ficou impressionado com o tamanho do salão de entrada. Grande, frio, branco do chão ao teto. Uma cristaleira de mogno ornava a parede do fundo. No centro, uma minúscula mesa com tampo de vidro e algumas revistas em cima. Ela parecia ainda menor naquele ambiente gigantesco. Mário ouviu a porta se fechar atrás de si e observou enquanto Crisóstomo atravessava uma larga passagem que conduzia para uma sala contígua, menor e mais aconchegante. Crisóstomo indicou um sofá para o inspetor e instalou-se no outro. Ficaram frente a frente, observando-se por alguns instantes constrangedores. Foi Mário quem quebrou o silêncio.
     - Foi difícil chegar ao senhor. 
     Crisóstomo o olhou por cima dos óculos. Tirou um maço de cigarros do bolso e acendeu um. Mário sentiu um velho comichão, de um vício há muito tempo enterrado - mas talvez não tão morto quanto imaginava até ali.
     - Fuma? - perguntou Crisóstomo. Aquela voz era inconfundível. Mário teve a certeza de tê-la ouvido antes, em Barueri. 
     - Ex-fumante - respondeu.
     - Sinto muito - exclamou o outro, fazendo menção de apagar o cigarro recém-aceso.
     - Não se incomode. Já superei esta compulsão, por favor fique à vontade.
     - Então, senhor…
     - Mário. Inspetor Mário Russo. 
     - Claro, inspetor Russo. O que posso fazer pelo senhor?
     - O que sabe sobre o atentado contra o juiz Flávio Rogendorff?
     - Muito pouco, na verdade. O que vi na imprensa. 
     Mário observou aqueles olhos frios ocultos pelas grossas lentes. Olhos de jogador de pôquer, habituados ao blefe, inexpressivos. Resolveu pular a etapa do teatro e ir direto ao ponto.
     - Foi o senhor, não foi?
     Crisóstomo permaneceu inalterado. Calado. Mas Mário notou um novo brilho no olhar dele, como um fogo interno prestes a incinerá-lo. Uma fúria contida. 
     - De onde o senhor tirou essa conclusão? - quis saber o dono da casa.
     - Ah, eu não tenho nenhuma prova! Fique tranquilo! Só tenho certeza de que é o culpado. 
     - Interessante. E o senhor se deu ao trabalho de vir de São Paulo para cá apenas para me dizer isso? 
     Mário se inclinou para a frente e apoiou os cotovelos sobre as coxas, cruzando os dedos na frente das pernas. Olhou fixamente para Crisóstomo. 
     - Eu vim para conhecê-lo. Até agora só tinha visto seu rosto na penumbra. Primeiro no local do crime, numa ruazinha atrás do Fórum. Depois, num velho prédio em Barueri durante uma reunião nada casual entre o senhor e o chefe da DEIC, o delegado Lúcio. Lembra-se disso, claro.
     Pela primeira vez uma sombra de espanto atravessou a barreira de frieza do suspeito. Foi por um segundo apenas, mas deu a Mário o prazer de uma pequena vitória. 
     - Vamos analisar os fatos, inspetor. Concorda que façamos isto? O senhor não tem provas de nada. Veio até aqui me importunar de forma gratuita e injustificada. Se eu atirasse contra sua cabeça agora mesmo - rapidamente Crisóstomo sacou a pistola alemã que guardava num coldre colado ao corpo e apontou para Mário - se eu atirasse, inspetor, seria relativamente fácil simular uma cena de agressão e alegar legítima defesa. Afinal, estou na minha casa!
     Mário sentiu as mãos congelarem. Manteve o olhar firme e a voz inabalável.
     - Não seria assim tão fácil. Mas o senhor, como advogado, sabe disso. O senhor já é suspeito de inúmeros delitos…. Uma bagunça dessas, com o corpo de um policial na sua sala, seria muito desagradável para o senhor neste momento. 
     Crisóstomo esboçou o que deveria ser um sorriso com o canto dos lábios apertados. Guardou novamente a pistola.
     - É uma Luger, não é? - perguntou Mário - 9 milímetros, Segunda Guerra provavelmente?
     - É um conhecedor, detetive?
     - Inspetor. E não, não diria tanto. Apenas que uma investigação em andamento levou a uma arma como esta. Um jornalista morto com um tiro na cabeça. Ricardo Dias era o nome dele. Conhece?
     Crisóstomo ficou ligeiramente lívido, como se o fantasma do jornalista tivesse aparecido na sua frente.
     - Pois é - continuou o inspetor - Ele foi morto com um projétil que saiu de uma arma como esta aí, que o senhor teve a gentileza de me mostrar agora há pouco.      
     Crisóstomo ficou calado. Pegou os óculos e limpou as lentes na aba do paletó. Finalmente disse:
     - Acho que esta entrevista terminou, inspetor. - Levantou-se e indicou a saída. 
     - Depois do senhor. 
     Crisóstomo abriu a porta do salão e observou o policial sair. Ainda no limiar da porta, Mário se voltou para ele e falou como quem se lembrava de algo muito importante: 
     - Só um aviso, senhor Crisóstomo. Se resolver apontar uma arma contra mim de novo, esteja pronto para apertar o gatilho. 
     Crisóstomo ficou calado enquanto Mário descia os sete degraus da escada frontal e desaparecia na escuridão da noite que já se impunha à paisagem do bairro chique. 

     Saindo de Ribeirão Preto o rumo escolhido foi Campos do Jordão. Não fazia mais sentido ficar em São Paulo. O negócio era esperar alguma novidade. Qualquer uma.

  
      Ele estava na casa vazia, em Abernéssia, apreciando a temperatura amena e o barulho da chuva leve no telhado. Permitindo-se pela primeira vez sentir saudades da esposa em São José dos Campos. Mas achava precipitado chamá-la de volta ainda. Não tinha certeza da segurança dela enquanto aquele assassino estivesse à solta. Deitou-se na cama solitária, sabendo que não conseguiria dormir. 
     No dia seguinte, o telefone de casa tocou logo cedo. 
     - Mário, você não vai acreditar - disse Júlia. - Um policial chamado Januário ligou aqui na delegacia te procurando… O juiz Flávio Rogendorff acordou do coma. 
    Era uma sexta-feira, 18 de outubro de 1991.



 Campos do Jordão


        
     Mário passou o fim de semana em Campos do Jordão. Colocou-se a par do que aconteceu em sua ausência numa longa conversa com Júlia. 
     - Que estrago você causou, senhor Mário - disse a colega, enquanto tomavam uma cerveja no Baden Baden.
     - Mas o bandido mais perigoso continua solto - respondeu o inspetor.
     Júlia parecia muito bem. Estava um pouco mais magra. Talvez cansada. Mas o rosto bonito continuava jovial apesar disso.
     -Lima continua na sua casa? - quis saber.
     - Sim. Acabando com minha privacidade - respondeu Júlia.
     - Segurança é mais importante que privacidade. Ele se comporta direitinho com você?
     - Tá com ciúmes, inspetor? perguntou Júlia, com um sorriso  sedutor e provocativo. - Se for o caso é só você mandar ele sair da minha casa.
     Mário limitou-se a sorrir e tomar mais um gole da cerveja. Enquanto bebiam, a moça atualizava o inspetor sobre as novidades no distrito. Afanásio andava sobrecarregado com a ausência do seu chefe dos investigadores. Mas Mário conseguiu que Herculano pedisse pessoalmente a presença dele durante as investigações sobre o atentado, conduzidas em São Paulo. Apesar disso, Mário evitou qualquer contato com o delegado Afanásio.  Não queria ser retido em Campos do Jordão por alguma decisão intempestiva do superior imediato. 
     Herculano garantiu que o doutor Flávio só seria ouvido na segunda-feira, e Mário poderia acompanhar o depoimento. 


São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 1991.

    De volta a São Paulo, o inspetor mal continha a ansiedade. O juiz continuava se recuperando no hospital, mas fez questão de prestar depoimento o mais rápido possível.
     Quando Mário chegou ao sétimo andar notou um fortíssimo esquema de segurança, com policiais do G.O.E. armados  em cada lado do elevador. Mais dois faziam guarda ao lado da porta do apartamento número 2. Para chegar até ali Mário teve que se identificar aos agentes no térreo e comprovar que seu nome estava na lista elaborada por Herculano, de policiais autorizados a acompanhar o depoimento do juiz. 
     Dentro do quarto, Flavio Rogendorff estava na cama, ladeado pela mulher e a filha. Um homem de terno e gravata se apresentou como o advogado de Flavio. Um estenógrafo, Herculano e um promotor de justiça completavam a audiência. Mário se surpreendeu ao notar o brilho vivo nos olhos do juiz, apesar do trauma. Estava muito magro, mas parecia cheio de disposição.
     A família do convalescente saiu do quarto antes de começarem.
     Graças aos contatos que tinham com a Justiça Criminal, e até com o próprio secretário de Segurança Pública Pedro Franco, o juiz Flávio conseguiu um acordo em tempo recorde com a Promotoria de Justiça, para ter uma diminuição da pena depois das declarações que faria. O próprio secretário de Estado da Segurança Pública Pedro Franco fez gestões secretamente para que o acordo de delação fosse fechado, pois tinha interesse sincero em limpar a polícia e acabar logo com o pesadelo de ter policiais de diversas patentes envolvidos com ações criminosas de todo tipo.
     Flávio confessaria participação em diversas atividades ilegais - participação indireta, é verdade, mas participação de qualquer forma. E, embora se orgulhasse de algumas dessas ações, Flávio sabia muito bem que a Justiça não seria complacente, a menos que ele conseguisse algum benefício como delator. "Uma espécie de delação premiada", comentou Herculano quando contou a Mário as condições em que o juiz combinou o depoimento. Mário nunca tinha ouvido falar de algo semelhante, mas teve a impressão que aquele procedimento inovador ainda levaria muito poderoso pra trás das grades - e eventualmente livraria a cara de outros também. 

22

Depoimento do Juiz Flavio Rogendorff
Data: 21/09/1991
Presentes: Delegado Herculano Macedo, chefe do G.O.E. / Advogado Rodrigo Meneses, representante do depoente / Promotor de Justiça Dilermando Gomes / Ricardo Lima, estenógrafo do Tribunal de Justiça / Inspetor Mário Henrique Russo, na condição de testemunha / Juiz de direito Flavio Rogendorff, depoente.
Horário de início da inquirição: 14h35

     
Não sei se isso é o melhor a fazer; não sei se vou sair vivo desta situação; mas uma coisa é certa: se não denunciar o Crisóstomo a morte é garantida, para mim e minha família. 
       Vamos lá, Flávio. Lembre-se dos detalhes. Comece pelo começo. Como conheceu o diabo, como fez um pacto com ele. Como se convenceu de que a causa que abraçariam era justa e de que, neste caso, os fins justificariam os meios. Meu Deus, como pude me esquecer de tudo que aprendi sobre o Direito e a Lei? Quando vi, estava tão enroscado no esquema de Crisóstomo que ficou impossível me desvencilhar. 
     Depois daquela reunião em que Crisóstomo apresentou o estratagema que tinha elaborado, tudo aconteceu muito rápido. Confesso que tinha achado que tudo não passava de conversa mole. Como alguém conseguiria montar uma teia de aranha sem que as cerdas levassem ao centro? Como gerenciar uma rede tão grande de mercenários sem aparecer? 
     Mas ele conseguiu. Terceirizou o recrutamento, contatou contabilistas para a abertura das contas que financiariam o sistema, sempre por telefone, com nomes falsos, enviando documentos necessários pelo correio. Nenhum contato pessoal. O mesmo estilo que usou para contatar assassinos, ladrões, ex-policiais, milicianos… todos seduzidos pela possibilidade de grande ganho financeiro, sem falar na aventura de estar acima da lei e fazer uma justiça "mais efetiva e contundente". 
     Vamos lá. O estenógrafo está pronto para anotar tudo que eu disser. Todos nesta sala vão saber que éramos os cavaleiros do apocalipse particular de Crisóstomo: eu, Ricardo, Gustavo, Alce, Felipe. Formávamos o núcleo duro da organização mais descentralizada do mundo. 
     Em poucos meses as informações começaram a chegar: quem cobrava propina, quem pagava, onde o dinheiro era lavado, quando seria o melhor momento para  as "retiradas".  Bancos, lojas, financeiras, restaurantes… incontáveis "lavanderias" do dinheiro das negociatas. Tudo como um livro aberto no colo de Crisóstomo. Alcebíades e Ricardo ajudavam muito na descoberta desses alvos, pesquisando com suas fontes jornalísticas e contatos nos governos estadual e federal. Tudo isso caía no colo de Crisóstomo, que comandava anônimo o nosso exército informal. Gustavo, já lotado no IML, ajudou diversas vezes a forjar laudos fazendo desaparecer indícios de homicídios cometidos pelos nossos agentes. E a beleza disso tudo é que ninguém sabia para quem estava trabalhando. As contratações eram feitas sempre de forma indireta, com identidades falsas. As contas usadas para movimentar o dinheiro eram abertas e fechadas rapidamente. Fui nomeado tesoureiro do esquema. Acho que Crisóstomo me conhecia muito bem, afinal de contas. Ele sabia que o dinheiro nunca fora um grande motivador para os meus atos. Mas a Justiça, esta sim me seduzia. E a chance de fazer Justiça, burlando burocracias, chicanas e impunidades, foi demais para eu resistir. 
     Continuei atuando como juiz, sentenciando alguns bandidos perigosos, principalmente ligados ao tráfico de drogas… Paralelo a isso, também fui nomeado para alguns casos de corrupção que vinham à tona graças à interferência subterrânea de Crisóstomo.  Fiz vista grossa a diversas falhas processuais, diversas incompetências acusatórias… tudo porque sabíamos da culpa dos réus. Passei a ser considerado um juiz severo, pouco ligado a formalidades legais e mais preocupado com a aplicação da Justiça, sem dar espaço para impunidade. Por conta disso, pouquíssimas de minhas decisões foram reformadas quando em recursos de segunda instância… Desembargadores preferiram fazer vista grossa para as falhas na forma de alguns processos, em nome da Justiça. E assim fiz meu nome. Também formei uma bela galeria de inimigos, tanto por minha atuação independente como por meio de minha função de "braço legal" do nosso esquema. Administrei mais dinheiro do que conseguia contar - tudo retirado dos corruptos e investido em novas retiradas de novos corruptos, como numa roda gigante. Eles sempre existiram, os desonestos, e receio que existirão para sempre. Disfarçados num verniz de "espírito patriótico" e "legalidade". A hipocrisia é o mantra dos homens desta estirpe.
     Confesso que tirei minha recompensa, não do dinheiro que nunca desviei para meus interesses pessoais, mas dos olhares atônitos dos culpados, tão acostumados a sair dos fóruns pela porta da frente depois de audiências infrutíferas, de repente surpreendidos com minhas ordens de prisão. Era um prazer novo, ver a Justiça eficiente para variar. 
     Nesse meio tempo Felipe entrou para a polícia civil, passou no concurso para delegado e galgou uma sólida carreira policial. Felipe chegou a cargos de chefia, nomeou auxiliares em departamentos estratégicos e, com a supervisão de Crisóstomo, recrutou alguns deles para o grupo. Também forneceu cédulas de identidade originais para permitir a falsificação de documentos com a máxima aparência de autenticidade. Esses documentos serviram de cortinas de fumaça para Crisóstomo desaparecer durante anos. Tinha mais heterônimos do que Fernando Pessoa. Felipe foi muito útil a Crisóstomo, até que morreu num acidente de carro. Mas a essa altura, já tinha infiltrado nossa organização na própria alma da Polícia Civil paulista. Lúcio assumiu a posição de Felipe em nosso esquema e chegou à chefia da DEIC. Nossas operações prosseguiram com relativa eficiência. 
     
     Mas, quem é este homem de olhar incisivo que acompanha meu depoimento? Não me recordo dele… Sim, aqui está, Mário Russo. Inspetor e chefe de investigadores na delegacia de Campos do Jordão. Arrolado como testemunha. Ele não perde uma só palavra do que eu digo, e reage de forma estranha. Parece ansioso. Por que será?
     Por meio de meu advogado adiciono ao meu depoimento uma lista com os nomes de todos os policiais que colaboraram com o grupo nos últimos 20 anos. Uma lista grande, com alguns cargos proeminentes. Acho que o governador Fleury vai ficar surpreso ao ver que, apesar de todos os esforços que fez quando ainda era Secretário de Segurança Pública, não conseguiu chegar nem perto de descobrir nossos braços entre seus agentes. Eu pagaria para ver a cara dele diante desta revelação. Também não esqueci de implicar Alcebíades no negócio. Ele, que usava o poder de empresário de comunicação para divulgar ou abafar notícias de acordo com os ditames de Crisóstomo. Também usava sua rede de jornalistas e fontes para abastecer-nos com informações sobre os bastidores do poder e da corrupção. Posso imaginá-lo divulgando notas de repúdio pelas minhas declarações... negando tudo... e provavelmente se livrando da Justiça sem maiores consequências, talvez sem chegar sequer a ser indiciado. 
     Agora a parte importante. Devo acusar Crisóstomo do atentado de que fui vítima. Ele é o verdadeiro mandante. Não Lúcio, pobre pau mandado. 
     Ora, o inspetor Mário reagiu ao nome de Crisóstomo. Mexeu-se na cadeira, como quem leva um choque. Mas não parece surpreso com este nome, apenas satisfeito. Será que ele já sabia de alguma coisa? 
     Crisóstomo é de uma família quatrocentona de Ribeirão Preto. Rica, poderosa e influente. Dinastia de políticos, donos de terras, comerciantes. É deste berço que vem o diabo. O homem que viu em mim um risco para sua teia de aranha, depois que anunciei minha intenção de abandonar o grupo. Não pude aceitar a morte de um policial inocente, executado numa simulação de assalto no trânsito para abafar uma pista sobre as nossas atividades. Fui ingênuo ao achar que Crisóstomo seria mais indulgente comigo. Ele não hesitou em planejar o meu fim, de modo um tanto explosivo. Ele é de longe a figura mais perigosa do país hoje. Encontra uma justificativa para seus atos; julga-se um Robin Hood moderno, roubando dos corruptos, não para dar aos pobres, mas para sustentar a própria máquina subversiva que criou. E para minar o poder econômico dos que mandam e desmandam no país sem qualquer compromisso com a justiça ou a honra. 
     Fico pensando se não faço um desserviço ao país ao denunciar o esquema. Afinal, a faxina que Crisóstomo fez na República é sem precedentes, apesar de subterrânea e silenciosa. Mas ao tentar me calar com uma bomba numa Bíblia, Crisóstomo não me deixa escolha. E de qualquer forma ele passou dos limites ao decretar a morte de inocentes. Tenho certeza que Crisóstomo discorda destes meus pudores. Problema dele. 

     Espero que agora o Estado me ofereça uma garantia de vida: mudança de nome, endereço, inclusão num programa de proteção a testemunhas. Caso contrário minha vida não valerá nada quando eu sair daqui. 
     
     "… Declara que são reais as informações aqui prestadas, e acrescenta aos autos documentos contábeis e listas de cooperadores da quadrilha denunciada.
     Nada mais
     São Paulo, 21 de setembro de 1991."

     Todos os presentes assinaram o documento. Foram mais de cinco horas de depoimento, com alguns intervalos para o juiz recuperar as forças, e poucas perguntas dos policiais, uma vez que Flávio estava disposto a falar tudo. 
     Mário chamou Herculano para a sala de visitas ao lado do quarto de Flávio:
     - Acho melhor você caçar esse Crisóstomo o quanto antes. Mas desconfio que a essa altura ele já esteja fora de alcance.
     - Vou pedir a prisão dele imediatamente - respondeu o chefe do G.O.E. - Obrigado pela ajuda, inspetor.
     Apertou a mão de Mário e foi para o elevador. 
     Mário voltou para o quarto.
     - Gostaria de lhe fazer uma pergunta, doutor Flávio.
     O advogado de Flávio ia protestar, mas o juiz fez sinal para que não interferisse.
     - Pois não, senhor Mário.
     - Valeu a pena participar de algo como isso?
     Flávio ficou quieto por alguns segundos.
     - Honestamente eu não sei - foi o que conseguiu responder.

23


Campos do Jordão, 1993.


     Mário está em casa, feliz numa reunião com os filhos e a esposa. Um jantar especial em família. Muita comida, bebida e risos. A felicidade é plena no coração do inspetor. Depois de muito tempo dedicado à caça de bandidos de todo tipo, ele se sente realizado por conseguir passar momentos especiais com as pessoas que mais ama. 
     No meio da celebração, a porta da casa se abre. Aparece a bela figura de Júlia. A pele bronzeada, os cabelos presos num coque, os seios redondos marcando com mamilos rijos o tecido branco do belo vestido… Mário se sente seduzido por aquela aparição angelical. Exalando sensualidade, a figura feminina se aproxima um, dois passos lentos. A coxa fica à mostra quando ela se movimenta despreocupadamente, um contorno perfeito de pernas perfeitas. 
     Inesperadamente, as feições até então sorridentes e suaves da escrivã ganham linhas mais duras numa máscara de dor; há frieza nos olhos da moça. Um vazio, como se estivessem sem vida. De repente, um filete de sangue começa a escorrer da boca da escrivã. Desce pelo pescoço, marca o colo bonito e mancha o vestido imaculado, desenhando um caminho em torno do seio direito. Júlia cai de joelhos e depois, de bruços no chão da cozinha. Atrás dela aparece então a silhueta de um homem baixo, magro, meio encurvado. A figura aponta para o inspetor. Uma voz gelada como um túmulo anuncia a condenação: "você falhou, inspetor". Antes que Mário possa reagir, a sombra aperta o gatilho.

     Mário acordou coberto de suor. Levou um tempo para perceber que tinha sido um sonho. O mesmo pesadelo que o persegue há quase um ano. O inimigo que conseguiu impor sua noção de justiça por mais de duas décadas sem nunca ser identificado, que nunca aparecia em fotografias - nem mesmo no álbum de faculdade ; o juiz Flávio Rogendorff tinha dito num dos depoimentos que prestou depois que saiu do hospital, que achava que desde aquela época Crisóstomo já sabia o que queria fazer, e valorizava o anonimato. Nunca se permitia fotografar. Não se formou, nem foi à festa de formatura da faculdade. Também na mansão da família em Ribeirão Preto tudo que os investigadores encontraram foi um velho álbum de família esquecido numa das gavetas da cômoda do quarto maior, com retratos faltando, arrancados... certamente, as poucas fotos que ainda existiam de Crisóstomo no ambiente familiar. A única imagem do homem é um retrato falado, feito pelo próprio Mário Russo. Poucas vezes ele recorria à habilidade que tinha de reproduzir figuras com exatidão. E no encontro com Crisóstomo fez questão de memorizar cada traço daquele rosto frio. Sua memória fotográfica emprestou ao trabalho um realismo assustador. Mesmo o juiz Flávio comentou que o desenho estava “mais perfeito que o rosto original”, um elogio estranho, convenha-se.  O retrato foi distribuído para as polícias do mundo todo. Um rosto macilento e inexpressivo, óculos grossos, lábios apertados numa constante impressão de desapontamento, cabelos desgrenhados. Pena que o retrato não reproduzia a principal característica de Crisóstomo, algo de que Mário jamais se esqueceria: o timbre inflexível e gelado de sua voz.
     Crisóstomo. O homem invisível.
     Mário se ergueu da cama tomando cuidado para não acordar a esposa; ela ressonava tranquilamente, alheia ao terror que assaltou o marido. Ele saiu do quarto sem fazer barulho. Pegou uma das caixas de pastilhas que deixa sempre espalhadas pela casa e foi para a varanda. Agradeceu por não ter nenhum maço de cigarros por perto, ou seria difícil não retornar ao vício naquele momento.
     Depois do primeiro depoimento de Flávio ainda no hospital, dois anos atrás, o comandante do G.O.E conseguiu rapidamente uma ordem de prisão contra Crisóstomo. Antes mesmo da Justiça dar a ordem, um grupo foi deslocado para a mansão onde ele morava sozinho em Ribeirão Preto. No fim da madrugada o casarão estava cercado por policiais com coletes, capacetes, fuzis e granadas de fumaça: Herculano esperava alguma resistência… Mário não estava tão esperançoso de encontrar o homem lá. E, de fato, a mansão estava deserta. Vizinhos disseram que ele tinha saído dalí na sexta-feira - mesmo dia em que Flávio recobrou a consciência no hospital. Deve ter deduzido que o juiz o acusaria do atentado. Também estava acompanhando as notícias da imprensa, relatando em detalhes o cerco a toda sua estrutura anárquica de suposta repressão à corrupção por meio de crimes - muitos deles violentos. 
     Nenhum papel, nenhuma prova, nenhuma foto do suspeito foi encontrada na mansão vazia. Toda a polícia foi colocada no encalço de Crisóstomo. O F.B.I., a Interpol, até a Mossad israelense e a Guarda Suíça do Vaticano - todas as melhores polícias do mundo foram avisadas da procura pelo contraventor. Crisóstomo entrou para as principais listas de procurados do planeta.
     Nada disso adiantou até agora. E o fato de Crisóstomo estar solto acabou com a paz de Mário Russo. 
     Olhando para a fria noite jordanense apesar de estarem em pleno verão, mastigando uma pastilha de menta, os pensamentos do policial viajaram até os detalhes daquela que foi sem dúvida sua maior investigação. A memória fotográfica impede que ele esqueça as informações, as imagens, os lugares, os nomes. Mesmo dois anos depois daqueles fatos surpreendentes, a polícia ainda realiza eventualmente prisões de suspeitos ligados à rede de Crisóstomo. Gente que agia sem imaginar a mando de quem. A operação decorrente do atentado e seus desdobramentos mereceu um nome significativo: "Operação Vespeiro". Muito adequado, já que a ação dos aliados de Crisóstomo se parecia com um ataque de vespas, sendo ele a Vespa-Rainha. Já estava na sua vigésima etapa e ainda continuaria, Mário acreditava, por muito tempo. Os 90 milhões que ele e Júlia encontraram foram recuperados em grande parte. Mas havia uma impressão generalizada de que aquilo era apenas a ponta de um iceberg. 
     O juiz Flávio Rogendorff ficou com sequelas pela explosão. Perdeu dois dedos da mão esquerda, e mesmo depois de cinco cirurgias reparadoras, ficou sem os movimentos do braço esquerdo e com um afundamento na barriga decorrente da perda de parte da parede abdominal arrancada pela bomba. 15 cm de intestinos foram seccionados. Ao caminhar, mancava da perna esquerda. "Mas estou vivo", disse Flávio. "E graças a você, inspetor Mário". O detetive não perguntou como o juiz ficou sabendo que foi Mario quem deduziu que haveria outra tentativa de assassinato contra Flávio, depois de ter presenciado a ameaçadora conversa entre Lúcio e Crisóstomo naquela madrugada em Barueri.  Talvez Herculano tivesse contado.
     - Do que se lembra do período que ficou em coma, doutor? - Mário quis saber. 
     - A última coisa de que me lembro é o momento em que abri a Bíblia e ouvi um forte estampido. E de acordar no hospital. Um segundo separando as duas lembranças. Foi como um sono sem sonhos. Dizem que nosso cérebro nos faz esquecer as lembranças mais traumáticas... talvez seja este o meu caso. 
     Flávio pensou um pouco no que disse antes de concluir:
     - Apesar de que se isso fosse mesmo verdade eu teria esquecido completamente toda minha infância. E não foi isto que aconteceu.
     - O que vai fazer agora, meritíssimo? - quis saber Mário.
     - Não faço ideia. E por incrível que pareça, essa dúvida pode ser uma bénção. É como um livro em branco, pronto para receber uma nova história a ser escrita página por página. 
    Mais tarde, por conta própria e por ser irremediavelmente curioso, Mário pesquisou a biografia do juiz e ficou espantado com a história. O sofrimento durante a Segunda Guerra, a imigração para o Brasil com um futuro incerto, o esforço para obter conhecimento e construir uma carreira. Era difícil não admirar alguém com um currículo daqueles.       
     Essa foi a última conversa que Mário teve com o juiz, na casa dele em Campos do Jordão enquanto os funcionários de uma empresa de mudanças andavam de um lado para o outro carregando caixas e mais caixas sob o olhar atento de policiais armados e seguranças à paisana - e de Boris, o cão da família, rosnando preso no canil. Depois daquele dia o magistrado desapareceu com toda a família, incluídos num programa de proteção à testemunha que lhes ofereceu novas identidades e endereço. 
     
     Mário  olhou para o relógio. 5 da manhã. Logo estaria na hora de ir para a delegacia. Pensou um pouco e resolveu fazer uma ligação. Não aguentaria esperar até o início do expediente. 
     - Alô - respondeu uma voz sonada.
     - Sou eu. Só queria saber se está tudo bem.
     Júlia soltou um profundo suspiro antes de responder. 
     - Estou ótima, Mário. Você precisa parar de se preocupar com uma vingança daquele sujeito. Já faz tanto tempo! Por que ele se arriscaria? Conseguiu escapar e fim.
     Mário tinha contado a Julia sobre os pesadelos, em que ela era quase sempre uma das figuras centrais. Não se surpreendeu por ela descobrir seus pensamentos. 
     - Só tem um jeito de me livrar dessa ideia fixa, Julia.
    Antes mesmo dele articular a frase, a escrivã já sabia o que ouviria em seguida:
     - Prender Crisóstomo - disse Mário Russo.

     O dia de trabalho transcorreu sem grandes sobressaltos na delegacia de Campos do Jordão. Um caso de violência doméstica, embriaguez ao volante, arruaça. Só mais um dia. Mário evitou falar com Julia a respeito do pesadelo. Mas os olhares que trocaram mostravam um perfeito entendimento do que ia pela cabeça de cada um. 
     À noite, na delegacia deserta, quando Mário já pensava em voltar para casa, recebeu uma ligação de alguém com quem não falava há mais de um ano: 

     - É Herculano, inspetor. Aconteceu uma coisa.

24

     Weimar, Alemanha, 1993 

     O verão no leste da Alemanha é agradável e radiante. Em Weimar, nesta ensolarada manhã de domingo, a temperatura superou os 25 graus, o que é algo fora do comum mesmo para o Verão. A bela Weimar desmente a fama que a Alemanha conquistou, de lugar sombrio, país de povo distante e impessoal... há riso e diversão! Punks de jaqueta de couro e cabelo moicano desfilam pelas ruas em grupos, enquanto moças elegantes se preparam para uma tarde de compras e homens bem-vestidos as assediam com elegância. No Park un der IIm a opulência da natureza invade olhos, ouvidos e nariz das pessoas, hipnotizando-as com sua beleza, perfumes, cantos dos pássaros, folia dos esquilos atrás de comida. Um espaço onde seria fácil esquecer os problemas da vida. Esquecer que há maldade no mundo.
     Os prédios históricos, como a sede da prefeitura, emprestam uma atmosfera clássica à cidade, atraindo turistas de diversas partes do mundo. Construções que nos conduzem a um passado distante. Herança do classicismo alemão fortemente marcado pela produção artística e filosófica iluminista.  Onde viveu Goethe, o pai do sofrido Werther? E Nietzche, onde ficou quando a loucura tomou conta de seu intelecto e ele se mudou para Weimar? Em que esquinas desta bela cidade Schiller teria encontrado inspiração para seus versos?

     Um lugar que transpira luz e genialidade, que certamente seria o escolhido para ser o lar de quem quer um pouco de tranquilidade e cultura em sua vida. Também para jovens que busquem a efervescência cultural e boêmia da Bauhaus. Pode-se dizer desta cidade o que Hemingway falou de Paris: Weimar é uma Festa. Mas nem tudo são apenas flores, arquitetura refinada e beleza clássica. Esta localidade também tem seu lado sombrio, seus esqueletos no armário.
     Enquanto muita gente procura em Weimar seus pontos históricos e suas contribuições para a arte mundial, outros vêm aqui para não esquecer o horror. Weimar, como muitas outras cidades da Alemanha e da Polônia, abrigou em seus arredores um campo de concentração. 
     Buchenwald.
     Pouco sobrou do lugar maldito, nessa época em que a humanidade caminha célere para os estertores do século XX. Mas ainda resta o suficiente para recordar. As ruínas de Buchenwald recebem visitantes de toda Europa e também de outros continentes. O bunker do portão de entrada do antigo campo de concentração nazista permanece preservado. Ao lado dele, duas salas de alvenaria com janelas pequenas. Em cima, salas de madeira com uma sacada na parte superior e uma pequena torre com um relógio que marca sempre a mesma hora: três e quinze. O momento em que os prisioneiros foram libertados pelas tropas do Terceiro Exército Americano, em 11 de Abril de 1945.
     Uma data inesquecível para este homem com uma bengala, meio arqueado pela idade, exibindo uma calvície quase completa e um ventre arredondado. 
     Johann Grossner lembra exatamente o que aconteceu naquele dia. Ele estava entre os últimos prisioneiros de Buchenwald. Agora, à frente do bunker tantas vezes usado para torturas e homicídios de judeus, ele se vê assaltado por uma infinidade de recordações. Vêm como ondas tentando sufocá-lo, excluí-lo da realidade presente e jogá-lo de novo nos fétidos alojamentos e na insuportável rotina de castigos e trabalhos forçados. 
     Ele viu muita gente morrer naquele lugar. 50 mil perderam a vida ali, segundo cálculos feitos depois da guerra. Buchenwald era destinado a trabalho forçado dos prisioneiros, não era um campo de extermínio. Imagine se fosse. 
     Johann enche-se de coragem e se apoia sobre a bengala enquanto caminha a passos lentos rumo ao portão de ferro. Agora está aberto. Durante a guerra ficava quase constantemente fechado. Ao cruzar seus batentes, uma onda de pavor o desequilibra por um momento. Johann olha para trás, suando frio, temendo encontrar algum soldado nazi ameaçando-o com o fuzil ou a pistola. É como se estivessem todos ali, soldados, colegas de prisão, seus parentes mortos sob tortura. O idoso sente que vai desfalecer. É amparado por um rapaz de pele muito clara e piercing no nariz.
     - Geht es dir gut? * - pergunta o jovem, com expressão preocupada.
      - Jetzt bin ich ** - Agora estou bem, responde Johann, tomando conhecimento da profundidade da própria resposta. 
     Johann avança pelo portão. Vê um grande espaço aberto, onde se lembra que ficava o pátio usado pelos nazistas para execuções públicas e preleções "educacionais" aos prisioneiros. O velho avança lentamente. Logo encontra os fornos crematórios. Ali foram jogados os corpos das vítimas do campo. Transformados em cinzas. Espalhados pelo vento do esquecimento. Mas o mundo se recusa a esquecer. Por mais que tenham aniquilado seus corpos, o espírito dos judeus mortos no Holocausto parece cada vez mais presente. 
     Num lindo dia como este, são poucos os visitantes que resolvem desperdiçar a folga visitando o campo. No que restou do antigo zoológico, um casal posa para uma foto de recordação. Suas expressões são sérias, melancólicas. Não vai ser uma foto doce, daquelas que gostamos de rever com frequência. Naquele mesmo espaço os nazistas mantinham alguns animais para sua diversão, para se livrar do terrível estresse de ter que cuidar daqueles outros animais, de duas patas, os judeus presos. Johann tem certeza que os soldados mais idealistas do exército alemão não viam muita diferença entre os animais presos nas jaulas e os judeus nos alojamentos de prisioneiros. Certamente prezavam mais pela vida das bestas no zoológico. 
     Weimar poderia ser um bom lugar para se viver, se não tivesse tantas chagas da guerra para exibir em praça pública. Johann prefere Frankfurt, onde está há quase um ano com a família. Mas precisava desse confronto com o próprio passado. Rever o lugar que fez dele o que é hoje. Se Buchenwald não tivesse existido na vida dele, muita coisa teria sido diferente. Ele não teria entrado em tantas brigas, nem conquistado tantos inimigos. 
     A temperatura está amena, mas Johann sua copiosamente. Tira um lenço do bolso e enxuga o rosto. Aproveita para limpar as lentes dos óculos, embaçadas por lágrimas que lhe saíram dos olhos quase sem que ele percebesse. Aquele lugar estará sempre presente em sua alma. Não importa quantas cirurgias plásticas ele faça para retirar os números tatuados em seu braço, a verdadeira cicatriz é inalcançável, impossível de ser apagada.
     Johann senta-se num velho banco de madeira enquanto continua limpando as lentes dos óculos com a mão esquerda em que faltam dois dedos; fica olhando para baixo, pensativo. Tem apenas uma leve percepção de que alguém se senta a seu lado.
     - Um lugar interessante para nosso reencontro.
     Johann não precisa erguer a cabeça para identificar o dono daquela voz fria e inflexível. 
     - Crisóstomo - murmura Johann, ou Olav Yaakov Rosarot - ou Flávio Rogendorff.

* O senhor está bem?
** Agora estou. 
     


  
25

     Por um momento foi como se o tempo tivesse parado em redor dos dois idosos sentados naquele banco de madeira. Os sons silenciaram, os passos no pátio, as correrias dos cães, o vôo dos passarinhos: tudo petrificado num mesmo e terrível espanto. 
     Flávio ergueu os olhos e encarou o antigo colega de faculdade. Crisóstomo estava ainda mais magro. Continuava usando os grossos óculos de grau. Seus lábios finos pareciam ter perdido um pouco da costumeira tenacidade, e insistiam em desenhar um arco com as extremidades para baixo repuxando a carne macilenta da face. Apesar da temperatura agradável o homem vestia um grosso casaco e permanecia com as mãos nos bolsos. Flávio pensou que num deles poderia haver uma arma escondida. Quem sabe, a mesma pistola que usou ainda na faculdade para matar aqueles dois assaltantes na rua, a pistola Luger P08 alemã, agora transformada numa relíquia? Seria uma ironia das mais amargas… escapar de Buchenwald na Segunda Guerra, para morrer em Buchenwald mais de 40 anos depois - e por uma arma que era usada pelas tropas do Reich. Adiantaria tentar fugir? Estava muito cansado de viver fugindo. 
     - Gostaria de dizer que você está bem, Flávio, mas não sou bom com mentiras.
     - Parte da culpa pelo meu atual estado é sua, Cris, ou já se esqueceu?
     Flávio ficou com o sentimento de que exagerou um pouco, ao chamar o ex-colega da mesma forma que costumava chamá-lo nos anos de estudante. Mas o outro não notou, ou não demonstrou notar a inconveniência daquilo. 
     - Não, meu amigo. Eu não me esqueço de nada. Lamento que as coisas tenham chegado àquele ponto. Tínhamos uma bela operação nas mãos... funcionava como uma engrenagem bem lubrificada. Mas os seus pudores, por causa da morte de um ou outro inocente... para fazer grandes coisas é preciso transgredir alguns valores, Flávio. Você mais que todos deveria saber disso. Além do mais, no fim das contas, ninguém é “inocente”. 
     - O homem responsável por esse campo em que estamos agora certamente concordaria com você - disse Flávio, secamente. 
     Fez-se um pequeno silêncio. Crisóstomo olhou para os próprios sapatos antes de perguntar:
     - Você não quer saber como te encontrei?
     - Imagino que lhe sobraram alguns tentáculos depois do desmonte que a polícia fez na sua rede.
     - Sim, ainda tenho um ou dois informantes no bolso, e algum dinheiro que os investigadores não encontraram. Mas permita-me corrigi-lo: a rede não era minha. Era nossa, Flávio. Você me ajudou desde o início.
     - E não me arrependo de muita coisa que fizemos juntos. Mas outras são imperdoáveis.
     O sol começava a buscar a linha do horizonte numa velocidade cada vez maior. Os raios amarelos se tornavam gradativamente avermelhados à medida que a noite pedia seu espaço no palco. Algumas estrelas já eram visíveis no céu limpo, e a própria lua se desenhava no lado oposto da cidade.
     - O que acontece agora? - perguntou Flávio. - Vai me matar?
     - Ah, sim, este era o objetivo quando saí do hotel esta manhã e o encontrei na praça perto daqui. Meu sangue ferveu. Vingança é o que tem me motivado desde que você revelou nosso estratagema para as autoridades.  Talvez eu esteja armado, não acha? Agora mesmo posso estar aqui, com o dedo no gatilho de uma automática dentro do meu bolso, pensando como será quando eu apontar a arma para sua cabeça e atirar. 
     Flávio ficou calado. 
     - Deu muito trabalho encontrá-lo num momento de fragilidade. Aqueles dois policiais designados para sua segurança são muito eficientes. Interpol ou Scotland Yard, não é? Competentes! Não desgrudam de você nem um minuto! Tenho toda sua rotina cuidadosamente anotada num diário. A única forma de não tê-los por perto seria se você quisesse despistá-los. Fui paciente, esperei dois anos. Imaginei que alguém afeito à filosofia como você desejaria ter um momento de privacidade nessa sua vida de condenado à morte. Por isso, quando descobri que você queria vir para Weimar imaginei que aqui, nesta cidade que tanto o machucou, você mesmo daria um jeito de despistar os dois. Não foi difícil deduzir onde você viria. 
     - Parabéns, Crisóstomo. Sempre foi muito perspicaz. 
     A tonalidade do céu variou do azul pálido para o vermelho vivo, e dele para um roxo gelado à medida que o fim do dia se aproximava. Os dois homens observavam o espetáculo sem lhe prestar atenção, com os pensamentos profundamente mergulhados em outro lugar - em outro tempo.
     - Estranho como a vingança pode parecer patética e sem sentido, de repente - suspirou Crisóstomo. 
     - Eu tenho duas perguntas, Crisóstomo.
     O outro ficou quieto, esperando.
     - A queda do presidente, no ano passado… você…
     - Não, não. Não tenho mais os recursos pra esse tipo de investida. E aquele lá não precisou de ajuda. “Queimou os navios” na relação com o Congresso e ficou sem lastro pra se manter no poder. Cavou a própria cova sozinho. Qual a outra pergunta?
     - Você faria tudo de novo?
     Crisóstomo esboçou um sorriso.
     - Afinal, esta é a única pergunta que vale a pena ser feita, não é, meu amigo? “Enxugamos gelo” na nossa jornada. Os corruptos têm mais cabeças que a Hidra de Lerna. Você corta uma e logo surgem outras duas. Mesmo o presidente deposto… aposto que logo estará de novo na política.
     - Muitos dos nossos inimigos caíram e se reergueram várias vezes - concordou Flávio.
     - … Ainda assim, me orgulho da dor de cabeça que causamos a alguns deles. Sim, doutor Flávio. Faria tudo de novo. 
     Ficou quieto por alguns instantes.
     - E o que fizemos nos trouxe aqui… neste momento e lugar, e ao que vai acontecer… 
     Quase ninguém permanecia ainda no Buchenwald Memorial. Os portões de ferro já estavam cerrados, ninguém mais poderia entrar. A saída era pelo outro lado, longe dali vários metros. Flávio teve a impressão de notar alguma confusão no Bunker da entrada, como se dois homens tentassem a todo custo convencer os seguranças de que precisavam entrar ali imediatamente, "caso de vida ou morte". Não pareciam obter muito sucesso no intento, mesmo exibindo o que deveriam ser credenciais da Interpol. O porteiro, assustado, se atrapalhava com as chaves, talvez? Esse é o tipo de detalhe bobo que faz as tragédias acontecerem.
     Por um momento, Flávio e Crisóstomo ficaram absolutamente sozinhos naquele banco de madeira, olhando para o céu que se descortinava num tom azul-escuro, pontuado de estrelas. Um único filete de luz amarela desenhava as silhuetas dos prédios de Weimar no horizonte. A temperatura caía rapidamente, assim como as trevas que lutavam para engolir tudo em redor. Naquele sítio lúgubre e estranhamente poético, a noite encontrava o seu lugar de direito. 

FIM

     







     
           
     





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