ENFERMIDADE - PARTE 3
"Quem estiver confuso quanto aos seus propósitos, não terá condições de enfrentar o inimigo."
Sun Tzu, A Arte da Guerra
PARTE 3 - UMA GRANDE GUERRA DE PEQUENAS BATALHAS
Sun Tzu, A Arte da Guerra
PARTE 3 - UMA GRANDE GUERRA DE PEQUENAS BATALHAS
1 - A limpeza dos banheiros sempre era a pior parte. Aquelas pessoas se achavam no direito de emporcalhar tudo, só porque podiam pagar alguém para arrumar depois. Toalhas jogadas no chão, o vaso repleto de urina pelas bordas, a pia suja. Parecia um banheiro de rodoviária, não de um apartamento de classe alta no setor Bueno.
Amália segurou a repulsa e se abaixou para limpar a privada. O estrago sempre era grande depois que as crianças saíam para a escola; invariavelmente, deixavam aquele rastro de imundície e falta de educação atrás de si.
Depois do banheiro de visitas e da suíte, só ficou faltando a louça do café da manhã para o trabalho acabar. Amália foi à cozinha e começou a lavar as xícaras, pensando na proposta que tinha recebido dois dias antes. Um misto de nojo e ódio se misturava em sua garganta sempre que lembrava daquilo.
O dono da casa tinha sido tão direto quanto possível. Estavam só os dois na casa; a esposa ainda estava no trabalho, os dois filhos não tinham voltado da escola. Ele chegou para o almoço, algo fora de seus hábitos - sempre costumava almoçar na rua. Ficou estatelado na poltrona da sala, e Amália notou que era observada enquanto arrumava a casa. O homem então começou a conversar, demonstrando um aparente interesse sobre a situação da empregada. Como estavam todos em casa, estava faltando alguma coisa, alguém doente? Ela respondia a tudo com frases curtas, desestimulando qualquer tipo de intimidade. Mas o olhar do patrão traía uma vontade indecorosa. Ele se aproximou e ficou muito perto, às costas dela. Seu bafo de álcool chegava até ela. Falou sobre "oportunidades de ganho", "combinação proveitosa", passou a elogiar a beleza dela ao mesmo tempo em que mencionou o interesse em aumentar seu pagamento.
Amália sentiu-se profundamente humilhada. Se tivesse a quem recorrer, se o marido estivesse em condições de trabalhar e não em coma num hospital, ela teria dado um murro na cara do patrão ali mesmo.
Mas engoliu o orgulho. Em seguida a porta se abriu e a esposa entrou no apartamento, atabalhoada. O safado afastou-se rapidamente e fingiu procurar alguma coisa dentro de uma gaveta da sala. A mulher ficou surpresa de vê-lo ali, mas pareceu se contentar com alguma justificativa que o marido apresentou. Não desconfiou de nada, aparentemente.
A conversa com o patrão ficou inconclusa por dois dias, até a próxima faxina.
A conversa com o patrão ficou inconclusa por dois dias, até a próxima faxina.
Se Bernardo soubesse de uma situação daquelas, era bem capaz de dar um tiro no safado. Mas ele não estava por perto, não podia fazer nada. Ela é que tinha que lidar com os problemas, sozinha. E havia a febre, limitando as opções. O desemprego começava a se espalhar por causa do fechamento do comércio. Até o pai dela já passava necessidade com o barzinho interditado. Fazia pequenos bicos como pintor ou pedreiro, e cuidava dos netos quando Amália saía para trabalhar como diarista. Mas mesmo esses serviços menores estavam em falta. E os esforços pareciam insuficientes, por mais que fossem grandes.
Tudo dependia dela. Chegou até a se perguntar se seria capaz de ceder aos apelos do patrão, caso a necessidade apertasse. Assustou-se ao cogitar uma coisa dessas. Não se reconheceu. Ou, por outra, passou a se conhecer um pouco mais. Ficou rubra de vergonha. Seu estômago se revoltava com a ideia. Faria qualquer coisa, menos se sujar para conseguir algum benefício, concluiu.
Estava absorta nesses pensamentos e no trabalho de enxugar uns talheres, quando sentiu-se repentinamente envolvida por trás. Soltou um grito de susto e ficou imóvel. Os talheres caíram no chão, com um tilintar estridente. Braços masculinos enredaram sua cintura e um conhecido bafo alcoólico ofendeu suas narinas. Ela se encolheu toda, enojada. O patrão tentava contê-la, pedindo que relaxasse. O abraço foi se tornando mais apertado, ela percebia uma ereção contra seu corpo, tentava se livrar desesperadamente. Pediu para ele parar. Pensou em gritar, mas teve medo do escândalo. Quando o homem virou o rosto dela e tentou beijá-la na boca à força, a esposa apareceu na porta da cozinha. Olhou para os dois em silêncio, com as sobrancelhas franzidas e os lábios cerrados numa carranca de surpresa. O marido, um pouco desconcertado, afastou-se em silêncio, dizendo que precisava voltar para o trabalho e sem oferecer qualquer tipo de explicação para aquela situação lamentável.
Amália ficou onde estava, encolhida e trêmula. Cabeça baixa, olhos úmidos e mãos juntas, apertando-se com força. A patroa se afastou, muda. Amália pegou os talheres que tinham caído no chão e os lavou de novo.
No início da tarde, depois de concluída a faxina, a dona da casa a demitiu sumariamente alegando que não poderia manter uma empregada durante a pandemia, o risco de contágio, a situação da economia, e mais quantos motivos lhe ocorreram para aquela injustiça. Tudo, menos enfrentar que a empregada despertava um interesse impróprio no marido e por isso não poderia ficar ali. A verdade não estava em pauta naquele monólogo.
Sem registro em carteira Amália perdeu o emprego desprovida de qualquer garantia. Fazia a faxina duas vezes por semana, num acordo tácito. Nunca pensou em exigir algum direito trabalhista, temendo perder a oportunidade. Já estava naquela casa há muitos meses, mas só agora o patrão havia resolvido importuná-la daquela forma indigna. Até então tudo corria bem. A patroa lhe deu alguns reais, dizendo que era o pagamento de tudo que lhe devia, e dispensou-a em seguida. Aniquilada pela vergonha e ainda sentindo repulsa por aquele lugar e aquele homem, Amália não conseguiu responder nada. Pegou as notas, abriu a porta e foi até o elevador de serviço. Minutos depois já estava num banco de uma praçinha em frente ao prédio, olhando para o alto, sem conseguir se concentrar em nada. Ficou ali tempo suficiente para notar o carro dos patrões saindo da garagem, ele ao volante e a esposa ao lado. Conversavam, riam, como se nada tivesse acontecido. Era isso. Ela era nada. Já não deviam sequer se lembrar que ela existia.
Só então Amália se lembrou de colocar a máscara. Saiu tão desatinada do apartamento que nem tinha se tocado daquela providência. A proteção passou a ser obrigatória por um decreto do estado, que exigia seu uso nas ruas, locais públicos e nos poucos estabelecimentos com permissão de funcionar, como postos de combustíveis, farmácias e supermercados.
Colocar aquilo era incômodo, as alças machucavam suas orelhas, o pano sobre a boca e o nariz davam vontade de espirrar e coçavam terrivelmente. Havia sinceras dúvidas de que todo aquele desconforto realmente pudesse ajudar a evitar uma doença tão agressiva como a febre vermelha. Mas ela preferia não arriscar. Já o pai não era tão paciente. Saía com a máscara para não ser barrado por algum policial, mas a maior parte do tempo ficava com ela em volta do pescoço, abaixo do queixo, totalmente inútil . O Riquinho também não conseguia parar quieto com aquilo no rosto, vivia ajeitando a máscara com os dedos, contaminando as mãos, ou simplesmente tirava a máscara e a colocava no bolso sem nenhum cuidado.
Amália tinha conseguido máscaras para ela e os parentes numa doação feita no bairro onde mora por uma ONG da cidade, junto com alguns alimentos básicos. Aquela ajuda, motivada por um esforço de enfrentamento ao vírus, tinha tornado sua vida um pouco menos pesada por alguns dias. Mas esgotou-se rapidamente. De qualquer forma, as máscaras foram muito úteis; seria impossível comprá-las numa farmácia. Assim que o decreto estadual foi publicado, o preço desses produtos disparou como um foguete. Chegou a custar 10 vezes mais do que no dia anterior. O Procon multou algumas farmácias, mas não conseguiu estancar todos os abusos.
Ao redor de Amália as pessoas passavam, algumas com máscaras, outras sem. Algumas perigosamente próximas, outras tentando manter o afastamento social. Era uma grande bagunça que indicava que a adesão às regras de proteção não estava muito alta. Amália observava o fluxo da rua. Olhava sem enxergar, preocupada com demandas muito mais urgentes. Tinha que voltar para casa e dar a má notícia para a família. Amália levantou-se do banco. A tarde caminhava para o fim e o sol começava a desenhar longos traços vermelhos no horizonte, entre os prédios. O ponto de ônibus ficava a poucos metros. Estava cheio de gente. Muitos não usavam máscaras. Mesmo assim Amália resolveu manter a sua. O ônibus demorou a chegar, e quando chegou estava lotado. Difícil imaginar uma forma eficiente de evitar a transmissão do vírus num ambiente daqueles. Com muito esforço Amália conseguiu entrar e se colocar em pé, perto da porta ao lado do motorista. Viajou espremida até a plataforma de embarque onde pegou outro ônibus, também lotado, para casa. Amália tentava imaginar o que levava tanta gente para a rua se o comércio estava praticamente todo fechado, serviços suspensos, parques interditados. Provavelmente, pensou, para muitas daquelas pessoas, o mesmo que a fizera sair de casa hoje: a necessidade de ganhar a vida de algum jeito, ainda que colocando a saúde em perigo.
Naquela maçaroca de gente, uma cena deixou-a horrorizada. Uma senhora idosa usava máscara, sentada perto da janela do ônibus. De repente abaixou a máscara até o pescoço - e espirrou. Na sequência subiu de novo a máscara para o rosto, como se nada tivesse acontecido. A pessoa ao lado dela olhou com reprovação, mas não disse nada. Ficou quieta no lugar, impossibilitada de se afastar no ônibus abarrotado.
Quando Amália chegou em casa, a noite já havia se instalado há muito tempo. Ela correu para o quarto, onde o filho menor chorava abertamente no colo do avô. Levou um tempo para acalmá-lo com o peito materno; cansado de berrar e saciado com o leite da mãe, Alvinho finalmente dormiu, plácido e ressonante. Só naquele aconchego de fim de dia ninando a criança adorada, Amália sentiu um pouco de paz. Apesar de tudo.
2 - Amadeu escondia na magreza do corpo uma força física insuspeitada. Um vigor incompatível com seus 68 anos. Carregou o botijão de gás sobre as costas do barzinho até a casa da filha sem parar nenhuma vez. O botijão de Amália estava vazio e ela não tinha dinheiro para comprar outro. Pelo menos por mais alguns dias ainda teriam como cozinhar no fogão graças àquela providência de Amadeu. Depois, veriam o que fazer. O segredo era resolver um problema de cada vez. E os problemas estavam aparecendo um depois do outro, sem intervalos.
Primeiro foi o remédio para o bebê que pegou uma virose. Todos ficaram assustados imaginando o pior, mas era uma virose ordinária, dessas que todas as crianças pegam na primeira infância. O médico do postinho receitou o medicamento e deu uma amostra grátis para Amália , mas não dispunha do suficiente para o tratamento completo. A mãe usou parte do que recebeu como diarista para comprar o restante e deixou a conta de água em aberto. Pensaria naquela despesa depois.
Em seguida foram os mantimentos que acabavam rapidamente. A cesta básica da ONG estava quase no fim. A família não pagou a conta de energia para comprar um bife e um pouco de arroz. Pensaria na nova dívida depois. Então Riquinho precisou de um caderno novo para a escola. Lá se foi o restante do dinheiro poupado com o calote na conta de energia. Esse gasto especificamente deixou Amália muito contrariada, porque uma semana depois Riquinho chegou da escola com outro papel, parecido com o panfleto que ensinava a lavar as mãos. O novo documento avisava que as aulas estariam suspensas por pelo menos quinze dias para evitar a aglomeração de alunos nas escolas. Amália só conseguiu pensar que aquela medida podia ter sido tomada antes dela gastar dinheiro com um caderno novo. Poderia ter investido num litro de leite, um pacote de biscoitos, qualquer coisa seria mais útil do que aquelas folhas de papel pautado. Amália tentou fazer compras a crédito no mercadinho do bairro, sem sucesso. O dono informou que os negócios estavam muito ruins, todo mundo passando aperto, e ele não podia se dar ao luxo de correr risco de prejuízo. Pagamento à vista. Nesse meio tempo, enquanto resolvia as questões de sobrevivência imediata da família, Amália continuava procurando trabalho. Tinha pouca escolaridade e experiência nenhuma, o que tornava tudo mais difícil. No mural do mercadinho, onde vez ou outra aparecia um anúncio escrito à mão e colado com durex oferecendo algum serviço, tudo que se via eram recados de gente se oferecendo para trabalhar. Costureiras, lavadeiras, marceneiros, até mecânicos de automóvel e torneiros... Ela também escreveu um bilhete numa das folhas arrancadas do caderno novo de Riquinho. Usou uma caneta hidrocor preta, colocou as próprias habilidades, o endereço e até o número do celular. Diante do pouco resultado dessa estratégia chegou a desejar qualquer ligação, ainda que fosse um trote, só para ter alguns segundos de esperança - quebrar um pouco a rotina. Então veio a notícia de que o barzinho tinha sido furtado durante uma noite. Arrombaram a parede dos fundos, entraram pelo buraco e pegaram algumas bebidas. Os alimentos já tinham sido usados pela família há algum tempo. Dinheiro também não havia. Mesmo assim o prejuízo com o estrago era grande. Amadeu não conseguiria arcar com o custo do conserto da parede, mas também não podia deixar aquilo daquele jeito. Arranjou uma folha de compensado num terreno baldio e pregou na parede, vedando provisoriamente o buraco. Nada eficiente, mas pelo menos não ficaria totalmente aberto. Quando conseguisse uns tijolos e um pouco de cimento, faria um serviço melhor.
No dia seguinte ao conserto provisório, o bar foi invadido de novo.
Aí veio o aviso de cobrança de um pátio de veículos de Uberlândia, onde estava o caminhão de Bernardo desde que ele ficou doente. Um valor absurdamente alto, e que aumentava a cada dia. Era preciso tirar o caminhão de lá, mas antes, a dívida tinha que ser saldada. Amália conversou com o pai sobre a situação. Entrou também em contato com o hospital de Uberlândia, onde ficou sabendo que o estado de saúde do marido não tinha mudado em absolutamente nada desde a internação. Amadeu sugeriu que o caminhão fosse vendido o quanto antes. Parte do dinheiro saldaria a despesa do pátio. O restante ficaria guardado, seria um começo para comprar outro caminhão quando Bernardo saísse do hospital. Amália percebeu que o pai não acreditava muito naquela alternativa, e o dinheiro acabaria sendo gasto para manter a família. Ela não queria se livrar do que garantia o sustento do marido, mas não via outra saída. Negociaram a venda com o próprio dono do pátio, foram obrigados a aceitar um mal negócio uma vez que eram eles que estavam em dificuldades. Quando recebeu o dinheiro, Amália encheu a despensa de casa e resolveu guardar o restante numa caixa de sapatos enterrada no quintal. Não confiava em bancos. O pai queria uma parte do dinheiro para consertar a parede do buteco, mas Amália o fez ver que cada centavo era importante, e os gastos deveriam respeitar a uma ordem de absoluta urgência. Se gastassem com um imóvel que nem podiam usar, poderiam lamentar aquela despesa em breve, quando faltasse dinheiro para algo realmente indispensável.
Enquanto isso empresários apareciam na TV pedindo a retomada da atividade econômica e o fim da quarentena. Alegavam que se continuassem daquele jeito, muita gente morreria, não de vermelhão, mas de fome. Os defensores do isolamento social, porém, respondiam que se tudo voltasse a funcionar, em breve teria que fechar de novo, por falta de funcionários e clientes que teriam morrido da doença, e por causa de um colapso generalizado da estrutura de saúde que fatalmente se concretizaria. O debate tomou cores ideológicas, com facções políticas abraçando essa ou aquela solução, mais preocupados em marcar território político do que encontrar uma saída compartilhada para a crise. Quando o entendimento se tornava mais indispensável, só o que crescia era a discórdia entre todas as esferas de poder: federal, estadual e municipal. Os ânimos se exaltaram tanto que alguns menos conscientes chegaram a minimizar as mortes, considerando-as inevitáveis e irrelevantes, no que foram recriminados veementemente por aqueles que acreditavam que, para salvar a economia, primeiro era preciso salvar vidas e botar a pandemia sob controle. Mas mesmo nesse quesito, que deveria ser uma unanimidade, havia muito espaço para desavença. Do lado oposto dos defensores do isolamento social, apareceram outros, mesmo na área medica, bradando estratégias que Amália nunca tinha ouvido antes, como "imunização de rebanho". O que vacas e ovelhas tinham a ver com aquilo, pensou a moça totalmente alheia ao significado daquela expressão. E no meio dessas forças antagônicas, Amália e sua família se sentiam jogadas de um lado para outro como folha ao vento, sem saber o que pensar ou como agir. Ela tentava seguir as determinações do Ministério da Saúde, mas essas também mudavam ao sabor da política. As máscaras, por exemplo, eram um modelo clássico daquela confusão. Primeiro disseram que só profissionais da saúde precisavam delas. Depois o uso foi estendido a quem apresentasse sintomas de gripe e, finalmente, a todas as pessoas. E na própria coletiva de imprensa em que se falou do uso obrigatório das máscaras, as autoridades de saúde apareceram sem elas - ou usando-as de um modo totalmente inadequado. Falaram também sobre a necessidade de distanciamento num dia, e sobre uma tal de "flexibilização gradativa" do isolamento no outro. O mesmo secretário de saúde que anunciava a reabertura parcial de shoppings, exortava a população a "não ir aos shoppings para passear"... A temperatura política subia como a própria febre vermelha. Técnicos perderam cargos na esfera da saúde pública, substituídos por outros que pensassem mais de acordo com o poder dominante. Mas até estes ficavam pouco tempo nos cargos, não resistindo a interferências ideológicas num trabalho que deveria ser técnico. Aquilo parecia mais uma briga de torcidas do que um debate sério sobre medidas de enfrentamento da pandemia. E a briga, de fato, tornou-se literal em algumas manifestações onde muita gente aglomerada gritava contra a aglomeração de gente e era agredida por outros que queriam mais era se aglomerar, abrir as lojas, tocar a vida normalmente como se não existisse uma doença assolando o planeta. Nesse meio tempo o número de mortos e infectados aumentava exponencialmente, no Brasil e em todos os cantos do mundo. As viagens internacionais de turismo foram canceladas. Apenas viagens essenciais ainda eram permitidas. Aeroportos ficaram vazios, países com forte atrativo turístico como a França enfrentaram uma violenta recessão. Paris podia ter sido uma festa no passado como sugeria Hemingway, mas agora estava às moscas. O mesmo se viu em Roma, onde as celebrações do Papa começaram a ser transmitidas apenas pela internet, enquanto a Praça de São Pedro se assemelhava a um deserto. E as peregrinações papais pelo planeta foram suspensas até segunda ordem. Fronteiras se fecharam em todos os continentes.
No meio do caos que se formava, Amália enxergava um cenário de fim de mundo. Assustada, só sabia de uma coisa: precisava sobreviver e proteger aos seus, do jeito que fosse.
3 - Algumas situações desafiavam a lógica mais elementar. Um conhecido de Amadeu, que seguia todas as regras de isolamento e defendia a quarentena, pegou vermelhão e morreu em poucos dias. Outro, que achava tudo aquilo uma grande fraude criada para desestabilizar o governo, continuava andando tranquilamente pelas ruas, sem máscara ou qualquer outro cuidado, pregando o fim da quarentena. Vendendo saúde.
Amália ouvia aquilo do pai e só conseguia pensar que não havia nenhuma justiça na escolha das vítimas. E isso fazia o vírus ainda mais perigoso. No raciocínio simplório dela, se apenas os negacionistas ficassem doentes, pelo menos haveria alguma garantia de sobrevivência para quem se cuidasse. Mas nem esse arremedo de conforto o implacável H5N2 concedia.
O assassino era imparcial; politicamente neutro e ideologicamente eclético, sem preconceito de raça, preferência sexual ou religião. Matava entre os alarmados e os descrentes com a mesma eficiência.
Os dias se emendavam em semanas arrastadas. O tempo era lento enquanto se vivia, e parecia ter passado muito rápido quando se recordava o que se viveu, ao fim do dia no escuro do quarto. Toda rotina, todas as conversas fúteis, todas as providências em favor da própria sobrevivência, eram permeadas por uma sombra... um medo sem nome, uma desconfiança do futuro: o medo de morrer ou perder alguém querido para a doença nova que atacava indistintamente.
A tensão fazia companhia a Amália, seu pai, até mesmo o Riquinho, inclusive nos momentos mais descontraídos, como quando o menino jogava bola na rua com o avô ou Amália se permitia descansar um pouco diante da TV na hora da novela. O telejornal, já tinha desistido de assistir; era tanta morte, tanta doença e desgraça, que ela se sentia mal. O coração ficava apertado e a lembrança do marido no hospital doía demais. Não saber, naquele caso, era uma bénção. Tornava mais fácil fingir que não existia enfermidade, nem quarentena, nem desemprego. A fantasia era um conforto que a moça achava necessário, já que a realidade não cansava de lhe cuspir na cara.
As horas se seguiam. Os dias passavam, longos. E a despeito de qualquer tendência à alienação, a realidade se impunha, diariamente. Amália não conseguia emprego. O dinheiro da venda do caminhão, que deveria se tornar uma poupança, foi rapidamente consumido por uma inflação desenfreada. O vírus fazia a produção encolher por causa da quarentena e das regras de isolamento social, e com isso os preços subiam. As economias foram desenterradas do quintal muito antes do que Amália imaginava. Primeiro foi para acertar a conta da mercearia e acalmar um pouco os ânimos do credor, cada vez mais agressivo nas cobranças. A família gastou o dinheiro e prometeu que seria só daquela vez, para quebrar a promessa na semana seguinte comprando remédios para uma dor de barriga que atacou Alvinho de surpresa. Os berros da criança remoída de dores foram argumentos incontestáveis a favor do novo gasto. E assim, nos dias seguintes, sempre surgia algum motivo para recorrer de novo às economias tão zelosamente guardadas. No final, Amália não se dava nem ao trabalho de voltar a enterrar o que sobrava. Deixou tudo embaixo do colchão, acessível, e com essa mudança os saques se tornaram mais frequentes, menos urgentes, o dinheiro sendo usado para manter uma falsa normalidade na rotina da casa.
Até que acabou. E deixou ainda algumas dívidas sem acerto, como as contas de água e energia.
A procura por trabalho seguia urgente. Um ou outro bico de lavadeira surgia muito de vez em quando, e quando isso ocorria a família jantava. Nos muitos outros dias em que nenhum serviço aparecia, todos iam para a cama de barriga vazia.
Os quinze dias de suspensão de aulas foram prorrogados várias vezes, na medida em que todos notaram que a pandemia não dava sinais de arrefecer. Riquinho não parava em casa. Vivia na rua, andando com os outros moleques, ou sozinho. Logo no início daquela mudança, a secretaria de educação tinha avisado que disponibilizaria lições pela internet para todos os alunos manterem os estudos, mesmo à distância. O problema é que o sinal na casa de Amália não era dos melhores. O velho celular ficava travado, site girando como uma hélice, incapaz de abrir. Quando o pacote de dados acabou, nem uma única lição tinha sido baixada. Sem o que fazer em casa, Riquinho saía pela porta dizendo que voltava logo. Amália, com o bebê agarrado ao peito, não sentia disposição para exigir que o filho mais velho permanecesse a seu lado. Pelo menos ele se distraía um pouco.
Uma tarde, Riquinho voltou da rua com um maço de dinheiro nas mãos.
-Toma, mãe. É pra senhora.
Amália mal olhou para as notas e já agarrou a orelha do menino, dando um forte puxão enquanto ralhava com ele.
- Onde você arranjou esse dinheiro, seu moleque? Ah, que hoje eu te arrebento!
Riquinho tentava evitar o castigo, aos berros.
- Você roubou? - quis saber Amália.
Riquinho jurava que não, choroso.
- Me conta de uma vez o que você fez, peste!
Finalmente o menino confessou:
- Eu... ganhei.
Amália ficou fora de si de raiva. Então agora ganhava-se dinheiro por aí sem mais nem menos? Exigiu detalhes.
- Eu pedi, mãe. Pedi no semáforo, no centro - falou finalmente, com a orelha em fogo.
Amália ficou em choque. Soltou o filho e, por um momento, não conseguiu dizer uma palavra sequer. Ficou com os braços caídos ao longo do corpo, olhando para o filho que se encolhia perto da parede, os olhos meio vidrados e as sobrancelhas tensas.
Mendicância. Nunca tinha pensado numa coisa daquelas até aquele momento. Sentiu-se pequena, incompetente, um fracasso como mãe, como pessoa. As lágrimas se juntaram nos olhos mas não encontravam forças para rolar. A voz ficou morta e enterrada no fundo da garganta. Riquinho ficou agachado, choroso, com a mão na orelha ferida, olhando para a mãe com expressão revoltada. Demorou uma eternidade para Amália conseguir reagir.
- Você... fez o quê?
O filho não respondeu à pergunta patética. Ficou calado gemendo.
- Você... teve coragem...
- Melhor isso do que passar fome! - explodiu o menino, gritando. - O Alvinho precisa comer também, e se a senhora não se alimenta logo vai faltar leite pra ele.
A mãe avançou para ele com o braço erguido e a mão espalmada para um tapa que, no último segundo, não ocorreu. Amália deteve-se, olhou para o filho e pareceu entregue a uma enxurrada de sentimentos e frustrações que vinham se acumulando desde o início da Pandemia. Desde que o marido foi hospitalizado. Tudo de uma vez, como uma cachoeira sobre sua cabeça. Amália não sabia se estava irritada pela iniciativa tomada pelo filho, ou pelo fato de não ter sido ela quem primeiro buscasse aquela solução, mendigando o indispensável para a própria familia.
O tapa se transformou num afago. O afago, num abraço. O abraço, num choro convulso dos dois, ajoelhados entre o sofá e a mesa da TV.
Amadeu chegou, viu o que estava acontecendo, quis saber o motivo daquilo tudo. Foi informado da atitude do neto. Olhou para o chão e localizou as notas miúdas espalhadas. Juntou-as num maço, colocou no bolso e tomou a direção da rua.
- Vou comprar farinha e leite - comunicou, impassível.
4 - No hospital de campanha em Uberlândia Bernardo também lutava pela vida, porém de forma muito diversa. Inconsciente desde a internação, não tomava conhecimento das aflições por que passava sua família, nem dos esforços dos médicos para atender os pacientes de vermelhão que não paravam de chegar.
As previsões mais pessimistas do diretor clínico se confirmaram logo depois da chegada de Bernardo, ainda na primeira semana de funcionamento do hospital. Os leitos de UTI ficaram todos ocupados em três dias. Os de enfermaria sofreram uma lotação quase instantânea e desde então só ficavam vagos quando alguém tinha alta ou precisava ser transferido para a terapia intensiva - ou coisa pior. E para cada leito aberto na enfermaria surgiam pelo menos dez pessoas precisando de acomodação imediata. Era um trabalho ingrato escolher quem seria atendido. Que critério usar numa situação dessas ? Idade? Estado de saúde? Doenças correlatas? Ou simplesmente apostar em quem tivesse melhores chances de recuperação? No caso dos leitos de UTI, esta decisão era como uma condenação de morte para quem ficasse de fora.
O diretor clínico, assessorado por sua equipe médica, exercia esse poder de vida e morte sobre os pacientes praticamente todos os dias. Tentava não pensar nos pacientes que colocava em espera, nos que morriam aguardando um leito... fazia o possível para se concentrar nas altas, nos sucessos; mesmo assim o peso na consciência o assaltava todas as noites, impedindo seu sono e abrindo úlceras em seu estômago.
O doutor Salomão fez a ronda dos pacientes e anotou um saldo desolador. Dois mortos naquela manhã, e três pessoas com agravamento do quadro infeccioso. A emergência abarrotada de novos casos, que chegavam constantemente como uma torneira aberta vertendo água sem descanso. Salomão observava o esforço dos atendentes, auxiliares de enfermagem e enfermeiros. Admirava aquela equipe corajosa. Não sabia de onde tiravam forças para continuar, mas agradecia em silêncio pelo fato de não desistirem ou simplesmente enlouquecerem em meio àquele inferno.
A caminho da própria sala, encontrou a enfermeira rose, com olhar cansado, andando a passos rápidos em direção à ala de UTIs. Olhou para ela por trás dos óculos de proteção e notou que a funcionária não usava o avental descartável.
- Se existisse, doutor, eu usaria! - respondeu ela, ao ser perguntada sobre o fato. - Não sei se o senhor sabe, mas fizeram um racionamento de aventais no almoxarifado - acrescentou. Salomão sabia. Os aventais descartáveis passaram a ser usados por dois dias. Depois disso ficavam num estado tão deplorável que seria um perigo continuar com eles. Era o caso de Rose, que jogou o último avental fora mesmo não tendo outro para substituí-lo.
- Tá vendo essa máscara que eu tô usando? - perguntou Rose sem aguardar a resposta óbvia. - Então. Também era pra ser descartável... mas já lavei duas vezes. Tá até meio esgarçada. Depois dessa última ronda vai ter que ir pro lixo. Aí talvez eu consiga outra. Talvez não. Licença, doutor, a luz de alarme tá piscando no leito 15. - e saiu correndo.
Salomão a observou se afastando, mudo. Pensou que naquele suplício diário de lutar pela vida contra todas as expectativas, era especialmente angustiante lidar com colegas de profissão que caíam doentes. Aquilo representava um duplo desafio. Menos gente para ajudar, mais gente precisando de socorro. Ele percebia, nos olhares assustados de enfermeiros e médicos, que todos se enxergavam nos colegas que pegavam Dybbuk. Ali mesmo tinham dois enfermeiros internados. Em outro hospital, em Belo Horizonte, um médico figurava entre os pacientes entubados. Os que ainda resistiam conviviam com a dúvida de voltar para casa saudáveis ao final do plantão, e essa dúvida era mais massacrante do que o cansaço das muitas horas socorrendo doentes. A falta de insumos fazia o medo crescer, se materializar. Era concreto, tinha um motivo claro, residia nas gavetas vazias do vestiário onde os profissionais não encontravam os EPIs mais básicos.
Salomão bateu na porta do diretor e entrou antes de esperar a resposta.
- Acabo de encontrar uma enfermeira sem o avental e usando uma máscara descartável pela terceira vez.
O diretor se moveu na cadeira, ajeitando-se desconfortável. Pegou uma caneta na mesa e começou a tamborilar com ela sobre o laptop fechado, balbuciando.
- Vamos ver... vamos ver...
- Precisamos exigir mais equipamento, diretor. Ligar diretamente para o secretário de saúde, explicar que se continuarmos assim vamos todos ficar doentes, e não sobrará ninguém para atender os pacientes.
- É claro, é claro - respondeu o outro sem encarar o infectologista.
- Quando foi a última vez que recebemos uma remessa de máscaras, luvas, óculos protetores, aventais...? - perguntou Salomão.
O diretor abriu o lap top e digitou algo, esperando uns segundos. Depois respondeu:
- Três meses atrás. A entrega era para durar dois meses, portanto... faz pelo menos um mês que nossa equipe faz milagres pra conseguir algum material.
- O senhor pediu mais?
O diretor irritou-se:
- É claro que pedi. O senhor devia ler mais jornais, doutor Salomão. As notícias sobre falta de EPIs, remédios e até respiradores estão em todas as manchetes, no noticiário da noite, nos flashes do rádio. Dinheiro até existe, mas onde encontrar o necessário? Simplesmente não existe. Mal são fabricados, os produtos de enfermaria já se esgotam, nem chegam aos depósitos. Não tenho como me transformar em equipamento de trabalho!
Salomão pensou em retrucar, mas desistiu. Sentou-se pesadamente diante do diretor, olhos vazios fixados em algum ponto da parede atrás do chefe. Ele também estava cansado, frustrado... de nada adiantaria despejar todo o azedume que trazia na alma sobre o diretor clínico. Estavam ambos no mesmo barco.
E o barco afundava.
O infectologista saiu da sala e foi direto para a ala de UTIs. Encontrou o leito 15 vazio. Imediatamente entendeu o que aquilo significava. As serventes trocavam a roupa de cama enquanto os aparelhos eram esterilizados para serem usados por um novo paciente, que já aguardava. Salomão olhou para dentro do cubículo e pensou que não havia nem mesmo tempo para o luto ou o pesar. Era preciso seguir em frente. Continuou andando até o leito destinado ao caminhoneiro, um dos primeiros internados no hospital. Como era mesmo o nome dele? Bernardo Silva. Olhou para o prontuário no pé da cama. Nenhuma mudança no estado de saúde.
Talvez fosse melhor transferir Bernardo para outro hospital, mais voltado para o quadro atual dele... mas onde conseguir uma vaga? Estavam todos lotados por causa da pandemia. Aquele era um fardo que a equipe do hospital de campanha deveria carregar até o fim. Salomão chegou à conclusão de que era hora de suspender a respiração artificial e o coma induzido e ver como o paciente reagiria. Bernardo já estava ali há meses, a virose já tinha sido debelada. Não havia mais o que fazer em termos clínicos, a não ser esperar que ele acordasse. Conversaria sobre isso com o diretor numa próxima oportunidade.
Mas agora era preciso sair em socorro de mais um paciente que era encaminhado da emergência para a UTI com a pele do rosto vermelha, espasmos de asfixia e convulsões. O médico correu para ajudar, já esquecido do caminhoneiro que seguia mergulhado na inconsciência.
- Leito 15 - orientou Salomão.
Às seis da manhã, no final do plantão, a enfermeira Rose Dumond se colocou embaixo do chuveiro e deixou a água morna escorrer por todo seu corpo. Cansada demais para sentir algum prazer naquele ato relaxante, quase dormindo em pé depois de 24 horas de trabalho. Cabeça baixa, olhos fechados, apenas ouvia o agradável ruído da água batendo em sua cabeça, seu pescoço, seus ombros, e indo até o chão do banheiro no vestiário feminino.
A equipe estava reduzida por baixas causadas pelo vermelhão, o que tornava aqueles plantões mais longos e penosos. Técnicos de enfermagem, enfermeiros, pessoal de limpeza e dois médicos tinham contraído a doença e estavam afastados, ou em quarentena e isolamento em casa, ou internados naquele mesmo hospital onde, até pouco tempo atrás, atendiam os pacientes.
Depois do banho, Rose vestiu-se e saiu para a rua. O ponto de ônibus não era longe, mas o caminho até em casa era longo e desconfortável. Ela já previa as desventuras que ainda enfrentaria antes de ter direito ao merecido descanso. O hospital de campanha fica no bairro Presidente Roosevelt, zona norte de Uberlândia, afastado do centro. Rose mora no Luizote de Freitas, zona oeste, e para chegar lá precisa atravessar a região central. Todos os dias toma o transporte público, atrasado e lotado, até o terminal central, onde pega outro coletivo que a leve até o Luizote II. Pelo caminho, muitos sacolejos em ruas esburacadas da periferia, um calor sufocante dentro do veículo de janelas normalmente emperradas; sem falar no inconveniente de um ou outro engraçadinho tentando se aproveitar da lotação para tocá-la de forma asquerosa.
O sol estava alto já tão cedo e o calor se anunciava pelo asfalto e pela calçada sem árvores. Rose suspirou enquanto andava devagar, cabisbaixa. Sentia que aquela luta estava perdida, não encontrava sentido em seu esforço pessoal por salvar vidas - não depois de uma jornada de um dia em que perdeu dois pacientes e ficou sabendo de outros tantos colocados em espera pela regulação, por falta de vagas. As unidades de saúde dos bairros estavam transbordando de casos suspeitos de Dybbuk e nem adiantava vir direto para o hospital de campanha. Apenas a regulação podia encaminhar pacientes oriundos da saúde básica.
Ao se aproximar do ponto de ônibus, notou que algumas pessoas que esperavam transporte olhavam para ela com expressão estranha. Os olhos por trás das máscaras mostravam apreensão, medo, talvez repulsa. Uma mulher de cabelos pretos e óculos se afastou à medida que Rose chegava mais perto. Outra, ao lado dela, baixa, gorda, cabelos amarelos, assumiu uma postura tensa e agressiva, toda retesada como um bodoque prestes a disparar uma pedra. Disse em voz alta, para que os outros ouvissem:
- Você não vai pegar o ônibus aqui, né, minha filha?
Rose, muito cansada, julgou não ter entendido o que a mulher disse. Ficou olhando para ela sem dizer nada. O ônibus se aproximava, e a enfermeira deu um passo adiante para embarcar. Nesse momento a loira baixa levantou o dedo em riste, a um palmo do nariz de Rose, e começou a esbravejar.
- Ah, não! Pode parar, ou melhor, dá meia volta e some daqui! Sua imunda!
O espanto fez com que o sono abandonasse Rose imediatamente, e ela abriu muito os belos olhos verdes, surpreendida por aquela agressão.
- Estou te reconhecendo! Você trabalha naquele hospital, aquele ninho da enfermidade. Tá cheio de vírus lá dentro e agora você vai querer passar isso pra todos nós aqui no ônibus? Não senhora!
Rose tentou começar a explicar que fazia uma assepsia completa antes de sair para a rua, depois do trabalho, mas a outra não quis conversa. Interrompeu a enfermeira com um sonoro tapa na cara.
O choque foi tão grande que Rose não conseguiu reagir. Os outros passageiros no ponto, alguns dando sinais de apoio à loira baixinha, outros visivelmente constrangidos, ficaram calados. Ninguém tomou a defesa da enfermeira.
Rose viu todos embarcarem e o ônibus se afastar, barulhento.
Só depois, no ponto deserto, conseguiu chorar.
5 - Distraída com a tigela de leite com farinha, olhando para a TV com Alvinho no colo, Amália ouvia música sertaneja no rádio. O estilo musical lamentoso, narrativo, revelando dores de amores impossíveis e rejeições sentimentais, tinha o poder de tirá-la um pouco daquela realidade amarga que a cercava. O pai, que a acompanhava naquela refeição miserável, cansou-se de ficar ali sentado ouvindo Bruno & Marrone e resolveu ligar a TV. Era hora do noticiário da noite.
Contrariada, Amália desligou o rádio. Acabou prestando atenção aos fatos que apareciam na tela. Números da infecção na cidade, no estado, dados alarmantes sobre ocupação de leitos de UTI e ameaça de colapso do SUS, incapaz de atender a todos os pacientes graves que chegavam. Como já esperava que acontecesse, as notícias a deixaram ainda mais deprimida. Levantou-se para ir ao único quarto da casa, tentando fugir daquela enxurrada de catástrofes, quando uma imagem na TV chamou sua atenção. O prédio em que ela trabalhava como diarista, de onde fora expulsa pela esposa do patrão assediador, mais de um mês antes. O que teria acontecido ali para o lugar aparecer no jornal da noite? Aproximou-se do televisor e ficou atenta ao que o repórter falava.
"A mulher, de 34 anos, chamava-se Laura Vidigal. Ela caiu de uma altura de 12 andares e morreu. O marido dela, Gumercindo Vidigal, um conhecido empresário daqui de Goiânia, foi preso em flagrante, suspeito de ser o autor do crime".
Amália custou a entender o que ouvia. Seus antigos patrões! Ela morta, ele preso. Não conseguia acreditar. Chocada com a terrível novidade, cogitou em silêncio, envergonhada e assustada, se aquela brutalidade tinha alguma ligação com a cena que a mulher tinha presenciado no dia em que a demitiu. Era só o que faltava: a polícia achar que ela era culpada de alguma coisa e levå-la presa. O pânico a impediu de ver o absurdo daquela hipótese. Para Amália, ser acusada de culpa no homicídio da ex-patroa seria apenas mais uma na lista extensa de injustiças que a acometeram nos últimos tempos.
Aquele crime tinha acontecido horas antes, no meio da tarde. O investigador Rangel, encarregado do caso, um policial de longa data com muita experiência, notou logo nos primeiros momentos na cena do crime que algo fora do comum havia acontecido. Um homem matar a esposa não era propriamente uma raridade naquela cidade machista, onde muitos se achavam donos das mulheres, com direito de fazer delas o que bem entendessem. Não era o crime que lhe despertava o instinto investigativo, mas as circunstâncias em que ele havia sido cometido.
"Casal feliz, educado, discreto, nunca deram um probleminha aqui no condomínio", disse o porteiro, ansioso por jogar conversa fora. A mesma impressão tinha a vizinha do apartamento ao lado. "Moro aqui há 10 anos e nunca ouvi um pio no apartamento deles. Nunca um bate-boca, uma discussão, que dirá uma briga com tapa e tudo mais!". Naquele dia tudo que a vizinha ouviu foram gritos ininteligíveis do casal, seguidos de um silêncio que logo foi quebrado pelo alarido dos moradores apavorados na área de lazer.
O investigador tinha consultado os antecedentes do marido na delegacia. Não havia achado sequer multa de trânsito por pagar. Aquilo era intrigante: em quase todos os casos de feminicídio, a violência não se limita ao crime, isoladamente, mas vem numa esteira de constantes agressões. Algumas vezes começam com ironias maldosas, depois humilhações verbais e, finalmente xingamentos, tudo isso antes de qualquer empurrão, tapa ou agressão física mais extrema. Mas naquele caso a natureza do crime estava fora do padrão. Foi um ato surpreendente, ao que tudo indicava isolado e pleno de agressividade. O marido, como já foi dito, não tinha nenhum registro anterior de violência contra a mulher, e todos que o conheciam no prédio afirmavam categoricamente que não se tratava de um abusador. Claro que isso não era garantia de que ele jamais tivesse erguido a mão contra a esposa. Alguns agressores são mestres em despistar as pessoas e ocultar seus atos, auxiliados muitas vezes pelas próprias vítimas que, por motivos os mais diversos, não apenas não denunciam como até ajudam a encobrir as violências de que são vítimas. "Nunca vi dona Laura de óculos escuros, muito menos de olho roxo ou lábio partido", garantiu o síndico do prédio. "Estava sempre muito elegante, muito bonita, sorridente... Estou lhe dizendo, doutor, se tem alguém que eu apostava de olho fechado que nunca mataria nem uma barata, era o Seo Gumercindo, ainda mais a própria esposa. Isso é uma tragédia, meu Deus".
O investigador estava na área de lazer do prédio, entre a ala de churrasqueiras e a quadra de esportes, tentando juntar as partes daquele quebra-cabeças. Olhava para o local onde Laura tinha caído. O sangue espalhado, alguns resíduos de tecido cerebral, um cheiro adocicado que ele conhecia muito bem. Olhou para cima em direção ao apartamento do casal quando sentiu o celular vibrar. Era o perito. "Tenho que te avisar que o suspeito nem chegou na delegacia pra fazer o exame de corpo de delito antes de ser preso", declarou. O investigador imaginou que algum figurão tinha conseguido a liberdade do cara, contrariando todas as regras. Não era esse o caso. "Tivemos que desviar direto pro pronto-socorro. Você viu que foi difícil botar o sujeito na viatura, ele socava o ar pra todo lado, acertou um murro num dos guardas e chutou todo mundo. Bom, a caminho da delegacia ele começou a estrebuchar, babar como um cão raivoso, se debater, totalmente fora de controle. Foi difícil segurar ele, um dos policiais usou o taser e ainda assim o cara demorou a apagar. O coração acelerou. E o senhor deve ter notado", comentou o perito "que a pele do rosto dele tava vermelha como um tomate. Até parecia que ele tava com vermelhão". Sim, isto era outra coisa que tinha chamado a atenção do investigador. Ele tomou o elevador, foi até o apartamento e entrou pela porta já aberta. Pediu à empregada que não tocasse em nada e fez uma rápida inspeção pelos cômodos confortáveis e luxuosos do imóvel. A diarista nao tinha presenciado nada. Quando chegou para fazer a faxina a policia ja estava no predio e o suspeito ja tinha sido levado dali.No banheiro o policial encontrou uma caixa de remédio para hipertensão. A empregada, contratada há poucas semanas, esclareceu que aqueles comprimidos eram da esposa, que o patrão tinha uma saúde perfeita. Isto descartava a hipótese de que a vermelhidão no rosto do suspeito fosse causada por um ataque de pressão alta.
Ele saiu do banheiro e foi mais uma vez até o quarto de onde a mulher tinha sido jogada, e onde um assistente da perícia terminava seu trabalho. O policial se aproximou da janela, ainda aberta, e olhou para baixo, para a mancha vermelha em forma de estrela assimétrica que se formou no calçamento, perto da quadra de esportes. Uma queda e tanto, mais de trinta metros segundo os cálculos iniciais do perito. Morte instantânea.
O investigador olhou para o batente da janela, onde ainda permanecia pendurada a rede de proteção, segura apenas por dois ganchos. Todos os outros haviam sido arrancados. O perito garantiu que não foi um trabalho prévio; não havia sinais de que os ganchos tivessem sido escavados antes de serem arrancados: os grampos tinham se soltado violentamente da parede, levando consigo pedaços do reboco e dos blocos de concreto, provavelmente no momento exato do crime. "Seria preciso uma força fora do comum pra causar um estrago desses", disse o técnico ao investigador, que olhava de novo para os ganchos remanescentes. Tentou arrancar um deles com um puxão e constatou que isso era impossível. Algo pesado tinha sido arremessado com força extraordinária contra aquela rede, provocando o rompimento dos ganchos. "O corpo da vítima, provavelmente", concluiu. Estranhamente, o suspeito não fazia o tipo musculoso. Nada no porte do homem indicava tamanha energia. O investigador encontrou no quarto alguns halteres e instrumentos de ginástica, mas soube pela empregada que o patrão só usava aquilo de vez em quando. Certamente ele não era nenhum exemplo de vigorexia. "Apesar disso, tinha resistido à prisão com uma fúria impressionante, derrubando um dos guardas e quebrando o nariz de outro", lembrou-se.
Não havia mais o que fazer na cena do homicídio. O policial resolveu ir até o hospital. Só faltava esclarecer o motivo do crime, e isto poderia ser tirado diretamente do assassino num interrogatório, assim que ele se acalmasse. "Hoje acho difícil o senhor falar com ele. O homem está sedado e assim deve ficar por pelo menos algumas horas. Os sinais vitais dele estão uma bagunça completa, respiração e batimentos irregulares, pressão altíssima... Foi difícil estabilizá-lo, e agora temos que dar um tempo para que ele se recupere..." O médico plantonista ainda falava quando foi chamado com urgência. Gumercindo teve um infarto. O investigador ficou do lado de fora da sala de emergência, aguardando.
Meia hora depois o médico voltou. "Você não vai conseguir uma confissão desse aí, doutor. Ele acaba de falecer". O médico não quis arriscar uma causa da morte, não tinha visto um surto daqueles em seus 15 anos de carreira. "Não sei se pode ser dybbuk", respondeu o médico à pergunta do policial. "Não tenho notícia de quadros psicóticos associados ao novo influenza. Mas vou pedir um exame completo, inclusive para saber se ele tinha o vírus H2N5 modificado". O médico se afastou rapidamente sem se despedir, cobrindo o rosto com a máscara e os óculos, já ocupado com outro paciente que chegava em estado grave, este sim com os sintomas clássicos de vermelhão.
Depois daquela reportagem tenebrosa vista no noticiário noturno horas depois do crime, do outro lado da cidade, Amália cuidava do filho menor. Aquela tem sido sua ocupação fundamental. Sempre com Alvinho nos braços ou agarrado ao seio, com fome. Nesta noite quente e seca, faz isso como um autômato, inconsciente dos gestos mecânicos que realiza para dar conforto e segurança ao bebê. O pensamento vaga longe, pelos arredores do antigo emprego, dos antigos patrões, agora uma morta e um preso, e ela sentindo-se culpada daquela desgraça sem nem entender por quê. Claro que não poderia ser culpa dela, já há tanto tempo expulsa daquele apartamento com um cachorro sarnento. Ao mesmo tempo algum gênio ruim sopra em seu ouvido que o motivo do assassinato foi um ciúme tardio da esposa, talvez interpelando o marido sedutor até esgotar-lhe a paciência e ele, num arroubo totalmente fora de sua natureza, agiu sem pensar, rápido e fulminante, matou-a.
Assim se angustia Amália com Alvinho dormindo placidamente nos braços. Do outro filho, Riquinho, tem cada vez menos notícias. O menino ganha o mundo logo que se levanta, volta quando o sol já se despede, no meio desses dois intervalos faz sabe Deus o quê - além de mendigar, que tem se tornado uma rotina.
Nesse momento, por exemplo, a mãe não sabe, mas o filho se encontra com o colega de escola de apelido Bacuré, que os professores chamam pelo nome de Carlos, o mau elemento agressivo e intimidador que tantos transtornos causa na escola, e também em casa. O mesmo que levou uma sinistra surra do pobre Julio, o tímido garoto vítima de bullying que, como último ato antes de morrer misteriosamente de uma doença agressiva e não identificada até então, resolveu despejar todas as amarguras que carregava no peito sobre o rosto sardento de Bacuré. Este, ainda agora, traz um afundamento no rosto, resquício da briga com Julinho.
Mas este espancamento, que bem poderia ter um efeito instrutivo sobre um espírito mais suscetível, na verdade não contribuiu em nada para atenuar o caráter combativo, amoral e violento de Bacuré. Pelo contrário, o pequeno aprendiz de marginal tomou a surra como uma humilhação e, se não tivesse Julinho falecido no hospital, certamente buscaria contra ele sua vingança, como gosta de alardear sempre que se encontra entre os colegas que testemunharam aquela briga. "Teve foi sorte de me pegar desprevenido, se fosse hoje apanhava que nem cão vadio", proclama em altos brados. O fato de seu adversário não estar mais entre os vivos certamente lhe inflama a coragem.
Mas neste momento Bacuré não dispõe de grande plateia para suas bravatas. Apenas o Riquinho está com ele, os dois escondidos num terreno baldio, atrás de um mato sem capina. Os dois conchavam, combinam, planejam. Não querem mais passar o aperto causado pela pandemia, não querem mais contar centavos para ter o que comer, ou ficar sem jantar para que pudessem tomar café da manhã no dia seguinte. Cansaram-se de dividir o mesmo pão dormido com todos os outros de suas respectivas casas. São parceiros na miséria e conhecem bem as angústias de não ter o necessário, o indispensável para viver com dignidade. Esse sentimento os irmana, mesmo sendo duas criaturas de tão diversa personalidade. Riquinho, calmo, obediente, bondoso... Bacuré, já se vê, não é nada disso e muito pelo contrário.
- Não tira a mácara não, Bacuré, olha a doença aí.
- Ah, essa porra não me deixa respirar... Você quer ver o que eu trouxe ou não?
- Quero, claro, estou aqui pra isso - responde Riquinho.
- Calaboca e se abaixa! - sussurou Bacuré.
Uma viatura da PM cortava a escuridão da rua com um holofote, iluminando para um e outro lado alternadamente. Os dois moleques se espremeram atrás do capim alto bem a tempo de evitar o facho de luz que incidiu sobre onde estavam. O veículo nem reduziu a marcha, seguiu lentamente adiante, seus ocupantes ignorantes da presença dos meninos. Passado o susto, Bacuré levantou-se cauteloso e foi até a beira do terreno, perto da calçada. Olhou para o rumo tomado pela polícia e, ao notar que tinham seguido viagem, relaxou imediatamente. Voltou correndo para perto de Riquinho, "vem comigo", Riquinho levantou-se e seguiu o outro mais para o fundo do terreno. A única luminosidade vinha da lanterna do celular de Bacuré, e apesar dela, tropeçaram em latas, pedaços velhos de papelão, um saco plástico com lixo dentro, um amontoado de cinzas que pareciam os restos de uma fogueira, e outras porcarias mais, os narizes atacados por uma nauseante fedentina.
- Que imundície - reclamou Riquinho.
- Larga de ser maricas e vem logo - disse Bacuré.
Quase no fundo do terreno, onde um muro fazia divisa com uma casa de telhado aparentando precisar de reparos urgentes, Bacuré se abaixou. "Segura o celular e aponta a luz pra cá", ordenou. Riquinho obedeceu, a curiosidade crescendo. Havia no chão uma caixa feita com ripas de madeira, um grande rótulo com tomates estampados colado na lateral. Bacuré afastou a caixa vazia. Embaixo dela, umas pedras amontoadas que também foram retiradas apressadamente. Por baixo, a terra. Bacuré usou as mãos para escavar por alguns minutos, até que seus dedos esbarraram num balde de plástico com tampa, todo amarelo, escrito "Vedacit". Um balde de argamassa comum. Bacuré tirou aquilo do buraco e ficou segurando diante de Riquinho, um sorriso de satisfação nos lábios. Riquinho perdeu uns segundos olhando o companheiro, esperando uma atitude, "você me chamou aqui pra ver um balde de argamassa?", perguntou contrariado. Sem responder nada, Bacuré abriu a tampa do balde, enfiou a mão dentro e a tirou logo em seguida, trazendo junto um embrulho de pano.
Riquinho apontou a luz para as mãos de Bacuré enquanto ele desenrolava os panos, e quase caiu para trás de susto quando viu o que tinha no embrulho.
- Caralho, Bacuré, onde você descolou isso?
- Tenho um tio que é metido na bandidagem, traficante de renome lá pros lados do Finsocial, no setor noroeste. Descobri onde ele escondia esse "cano" e peguei quando ele não estava olhando.
Bacuré exibia orgulhoso um revólver calibre 38 com seis munições intactas. As balas estavam dentro de uma caixinha de sabonete. A arma, de um cromado impecável, rebrilhava sob o fio da lanterna do celular. Era uma beleza, sem dúvida. Riquinho ficou fascinado.
- Você não faz ideia do trabalhão que deu sair da casa do Tio Valmor com esse berro, e andar mais de cinco quilômetros com ele escondido debaixo da camisa sem ninguém notar. lá do Finsocial até aqui no Itamaracá. Ele tava carregado, eu que tirei as balas por segurança e guardei aqui junto nessa caixinha.
Bacuré narrava aquilo como um cavaleiro andante cantando as trovas do salvamento de uma donzela: cheio de orgulho e entusiasmo. Seus olhos brilhavam igual criança radiante com um brinquedo novo. Seria uma cena quase doce, não fosse assustadora. Riquinho ficou como que hipnotizado, completamente fascinado pela visão daquele objeto mortífero, detentor do poder de vida e morte. O medo não superava o encantamento, mas ainda assim ele relutava em tocar a arma, como se fosse receber um castigo divino por tal pecado.
- Pode pegar que ele não morde. Tá sem balas, já disse.
Riquinho acabou empunhando o revólver, sentindo o peso dele em sua mão, passando para sua corrente sanguínea uma injeção de força e poder, como um alucinógeno. Uma sensação assustadora, até certo ponto angustiante, mas nada ruim. O menino apreciou aquele primeiro contato. Algo que o marcaria para sempre e teve papel determinante na mudança que sofreu em sua vida, ainda tão no início.
6 - Enquanto os pequenos ainda que dolorosos dramas domésticos angustiavam Amália e sua família, o monstro da Pandemia continuava seu rastro de destruição pelo planeta afora. Um dos efeitos colaterais mais nefastos, ela, uma simples dona-de-casa separada do marido pela doença, conhecia na pele: uma incapacidade de se manter economicamente ativa, uma miséria que devorava tudo, neutralizava todos os esforços, fechava todas as portas. A pandemia derrubava empresas sem distinção de segmento de atividade ou tamanho, desde a mais humilde lojinha de bairro até grandes corporações de commodities, exigindo redirecionamentos de estratégia, mudanças de comportamento, criatividade gerencial - e nem com tudo isso, garantindo a sobrevivência financeira dos setores produtivos.
O Governo, que preferia ficar de fora dessa crise monumental, se viu obrigado a agir. Primeiro tentou minimizar os efeitos da nova doença e estimular a manutenção das atividades econômicas no mesmo ritmo pré-pandemia.
Foi uma catástrofe.
Logo o número de contaminados, doentes nos mais variados níveis de gravidade, lotaram a rede pública de saúde e obrigaram os hospitais privados a abrirem suas UTIs para quem precisasse, e não apenas a seus associados.
Diante do desespero que se formava, o plano foi oferecer uma ajuda financeira para a legião de desempregados e falidos que se formou: para os empresários criou-se uma linha de crédito popular a juros baixos e, supostamente, com poucas exigências de garantias de reembolsos. O novo programa recebeu um nome pomposo: "Meu Negócio de Vento em Popa". Mas, além do nome chamativo e propagandístico, pouca coisa mais funcionou na nova carteira de empréstimos. As regras se mostraram leoninas e impraticáveis para quem, como Amadeu, estava com o pires na mão há muito tempo. Os bancos particulares foram convidados a gerenciar os recursos, e os trataram com o mesmo zelo ganancioso que dispensavam às contas normais de clientes mais bem situados na vida. Amadeu tentou um empréstimo para manter as despesas mínimas do boteco fechado, aluguel e um mínimo estoque para quando pudesse reabrir o comércio. Mas acabou se perdendo no labirinto de regras, pedidos de fiança e contrapartidas.
Não conseguiu nenhum centavo.
Os trabalhadores informais, recém-desempregados e profissionais autônomos não tiveram melhor sorte, em grande parte. Também para este grande grupo de necessitados foi criado um outro programa de nome bonito, sem dúvida considerado a obra-prima da genialidade do Departamento de Propaganda da Presidência da República; "Quarentena sem Problema". Seria pago em três parcelas mensais de R$ 599 por mês. Mas as regras e exigências para receber a ajuda eram tão complicadas quanto as do "Meu Negócio de Vento em Popa". Tanto que muita gente se perdia diante do computador, tentando preencher os formulários virtuais e reunir as provas de carência necessárias. Uma grande quantidade de gente procurou diretamente os bancos oficiais em busca de esclarecimentos sobre as regras ou tentando reverter eventuais negativas para os pedidos de liberação do dinheiro. Neste processo, provocavam filas, aglomerações, tumultos - e risco iminente de contágio.
Amália também tentou a ajuda, digitando com dificuldade as informações no seu velho celular de internet ruim. Foram muitas tentativas, com o sinal caindo em diferentes momentos do processo, até que ela conseguiu enviar todos os dados exigidos. Mas aquilo não foi o fim do suplício. O ser inanimado possuidor de forças insuspeitadas e aparentemente ilimitadas, conhecido pelos simples mortais como "sistema", simplesmente recusou o dinheiro, informando que outra pessoa da família dela já tinha pedido aquela ajuda e isto era contra as regras do programa. Amadeu, seu pai, garantiu que não era ele - tinha tentado apenas o empréstimo para pequenos comerciantes. E Riquinho não tinha a mínima condição de fazer tal requerimento; menos ainda o bebê Alvinho, desnecessário dizer. "Será que Bernardo saiu do coma é já está pedindo dinheiro pro governo sem eu nem saber?", pensou Amália. Mas uma rápida ligação para o hospital de campanha em Uberlândia derrubou essa vã esperança.
Nova tentativa, nova recusa do "sistema", essa criatura conjurada em rituais blasfemos pelos inalcançáveis deuses da burocracia; esse monstro colocado mais além do bem e do mal do que jamais poderia supor o pai de Zaratustra . Dessa vez o motivo para a recusa foi tão absurdo que Amália quase riu entre as lágrimas de desespero: leu e releu na tela do celular, para ter certeza do que estava escrito. Em letras brilhantes, o programa informava que ela não tinha direito ao recurso federal por "ocupar cargo eletivo no Poder Executivo, a saber, Presidente da República".
Se era uma brincadeira, era de péssimo gosto. Amadeu, cansado de ver a filha tentando um milagre naquele programa inescrupuloso, resolveu fazer algo que estava relutando há algum tempo: colocou o balcão do bar, que afinal de contas estava mesmo fechado há muito tempo, à venda, assim como a estufa de salgados e o freezer. Mas a venda tampouco foi tarefa fácil. O interesse dos possíveis compradores foi mínimo e a necessidade, uma inimiga do bom negócio. O preço dos itens foi caindo vertiginosamente, até o limite do aceitável. Quando finalmente encontrou um comprador, Amadeu ainda teve que se submeter a um pagamento parcelado, que pouco mais pode fazer pela família do que evitar a fome absoluta por um curto espaço de tempo. No fim das contas, os programas de auxílio conseguiram apenas piorar a situação de Amália e seu pai: além de não obterem um centavo sequer, ainda gastaram consideráveis reservas de energia correndo atrás de miragens.
Enquanto isso surgiam denúncias de servidores públicos remunerados pelos estados ou prefeituras que eram incluídos ilegalmente nas liberações do "Quarentena sem Problema", e fraudadores que surrupiavam o dinheiro usando dados de pessoas realmente necessitadas. Foram muitos os que reclamaram que, quando se cadastraram para receber o auxílio, foram informados pelo onipotente "sistema" que já tinham sido pagos. Uma sindicância foi anunciada para apurar como os golpistas tiveram acesso aos dados desses cidadãos - sem muita esperança de sucesso.
Aparentemente alheia a todas essas mazelas, a propaganda oficial anunciava em horário nobre a liberação de milhões de reais para os necessitados, vangloriando-se de ter criado "o mais eficiente e abrangente programa social da história desse país".
Amália só queria saber onde estava a parte dela naquela enxurrada de dinheiro.
7 - Poucos dias depois do crime no prédio, o investigador Rangel recebeu uma ligação do perito criminal. Foi tratado com deferência, não só por ser um policial considerado experiente e hábil, mas também pelo fato de ser viúvo há algum tempo, sem filhos, vivendo recluso quando não está a trabalho; e pela idade que aparenta ter. Próximo dos 50 anos, o detetive Rangel se apresenta como um quase ancião. Olheiras constantes, cabelos que começam a apresentar a predominância do cinza-prateado, roupas fora de moda e surradas dão a ele um ar de senhor de idade. A única circunstância que quebra esse padrão é seu porte físico ereto, sem sinais de obesidade ou desvios de coluna.
- Seu Rangel, saiu o exame que me pediu. O assassino tinha Dybbuk como o senhor suspeitou.
O policial ignorou o tratamento que normalmente lhe desagradava. Ser chamado de "senhor" até por pessoas mais velhas sempre o incomodou, mas um belo dia acabou cansando de pedir para as pessoas dispensarem o pronome cerimonioso: "você" estaria muito mais de acordo com sua idade e modo de relacionamento.
- Dá para saber há quanto tempo ele estava doente? - quis saber Rangel.
- Não encontrei anticorpos, e sim o próprio vírus. Normalmente a coloração avermelhada na pele aparece entre três e 15 dias depois do contágio. Relativamente rápido, mas com um espectro muito grande de tempo até a manifestação do sintoma. Portanto, se alguém no prédio ou no trabalho já tivesse notado o vermelhão...
- Ninguém comentou isso nos interrogatórios que fiz.
- Então o melhor que posso lhe dizer é que ele pegou o vírus entre seis e dezoito dias atrás, supondo que tenha sido um caso típico. Mas é impossível saber se no corpo dele o H5N2 agiu mais rápido ou mais devagar do que na média mundial.
- E sobre aquela agressividade extraordinária, possível ampliação da força física, isso pode ter tido alguma relação com o contágio? - perguntou Rangel.
- Essa é a parte mais interessante - respondeu o perito, fazendo um silêncio dramático. - Como o médico que atendeu Gumercindo no pronto-socorro lhe disse, até hoje, não há nenhum vínculo do H5N2 modificado com mudanças bruscas de personalidade. Mas eu fui fuçar - o termo desagradou Rangel, logo imaginou o perito literalmente "destrinchando" o cérebro do suspeito com um bisturi afiado. Ao contrário de muitos de seus colegas, a sala de autópsia nunca foi um lugar em que Rangel conseguisse ficar à vontade. Por isso pedia os relatórios de autopsias por escrito, juntados ao inquérito e, sempre que possível, que as informações mais importantes lhe fossem antecipadas por telefone. Era este o caso neste momento.
- O fato é que - continuou o legista - Eu descobri uma alteração significativa no eixo hipotálamo-hipofisário, que enviou uma descarga de estímulos fora do comum para as glândulas supra-renais, causando um jorro de adrenalina na corrente sanguínea do suspeito.
- Traduz pra língua de gente, Danilo! - reclamou Rangel.
- O que lhe interessa saber, seu Rangel, é que tinha uma parte do cérebro do sujeito que estava totalmente deformada, inchada, como se tivesse sido superexcitada. Só vi algo parecido em algumas autópsias de viciados em estimulantes poderosos... mas ao que consta o morto não usava nada além de uns drinques ocasionais. Fiz mais exames e encontrei uma concentração considerável de vírus H5N2 no hipotálamo e na glândula hipófise. A própria anatomia desses órgãos estava adulterada. Não encontrei nenhuma outra fonte possível, a não ser a descomunal colônia de vírus nesta parte da cabeça. Isso me leva a crer que os vírus podem ter causado uma mudança na química do cérebro, e a química do cérebro é a fonte do equilíbrio. Qualeuer desvio pode produzir uma infinidade de efeitos colaterais.
- Resumindo...
- Resumindo, seu Rangel, apesar da literatura escassa que existe sobre a Dybbuk não fazer nenhuma menção a isto; apesar do próprio "descobridor" da doença não ter levantado esta hipótese; apesar disso tudo, a Dybbuk pode não ser apenas uma doença respiratória, mas uma doença sistêmica - ou seja, que afeta mais de um órgão do corpo humano. E nesse caso, o vírus escolheu muito bem o seu alvo: o sistema nervoso central. E sim, antes que o senhor me pergunte, a Dybbuk pode ter causado a explosão de violência e até ampliado a força do assassino, transformando-o numa espécie de "trem descarrilado".
- Mas por que nem todas as vítimas de vermelhão apresentam essa agressividade exacerbada? - perguntou o detetive.
- Pelo mesmo motivo que algumas pessoas são fulminadas pela gripe, e outras sentem apenas um leve mal estar ou nem isso - respondeu o perito sem se apertar. - Mesma razão por que alguns sucumbiam à Aids em poucos meses depois do diagnóstico, e outros passavam anos assintomáticos até o aparecimento da primeira doença oportunista.
Rangel ainda ouviu pacientemente o relato entusiasmado do legista sobre o estudo que estava começando a redigir naquele momento, descrevendo suas descobertas para uma revista científica; ouviu também sobre o pedido que Danilo faria a outros colegas pelo país inteiro que verificassem as condições epidemiológicas de mortos que necropciaram recentemente em situações parecidas com as de Gumercindo: mortos logo depois de ataques de histeria e violência, pele avermelhada principalmente no rosto e nas mãos, sem antecedentes de doença mental ou drogadição. "Tenho esperança de encontrar outros casos iguais ao meu, em que meus colegas encontrarão a mesma alteração cerebral que acabei de lhe descrever", exultou-se.
Se o colega estivesse correto, a confirmação científica só viria em anos. Por enquanto, pelo menos, não passava de uma resposta plausível para a motivação do assassinato de Laura Vidigal, um consolo parcial para a curiosidade do investigador.
- Talvez você ainda bote seu nome em alguma doença, "Síndrome de Danilo"... - brincou Rangel.
Mas o legista não considerou aquela afirmação de modo algum uma brincadeira e imediatamente começou a sonhar com fama e glória, quem sabe até dinheiro.
8 - O que o legista não tinha como saber é que a mesma suspeita levantada por Rangel também despontava em outras partes do planeta. Em alguns lugares, onde a violência estava mais presente no cotidiano das pessoas, as aberrações causadas pela Dybbuk passaram despercebidas por muito tempo. Em Hong Kong, primeiro epicentro da nova doença, as manifestações pela liberdade de expressão frequentemente reprimidas por agentes do governo chinês resultavam em conflitos pelas ruas. Quebra-quebra, ataques com tiros de borracha, carros blindados equipados com jatos de água e, ocasionalmente, coisa pior. Os manifestantes, em sua maioria estudantes secundaristas e universitários , revidavam com paus, pedras e garrafas, cobrindo os rostos com capuzes ou com as próprias camisas para diminuir os efeitos do gás lacrimogêneo lançado pelos policiais. Nesses combates há muitos confrontos corpo-a-corpo em que a vantagem está toda do lado das tropas oficiais. Os homens do batalhão de choque vão ao combate paramentados com capacetes, coletes, cotoveleiras, joelheiras, escudos e bastões, além de pistolas e tasers, postando-se em perfeita ordem contra as turbas histéricas, desorganizadas e confusas. Não há possibilidade de vitória sem armas e sem estratégia, a não ser em alguns lances isolados de sorte em que algum grupo de rebeldes consegue dominar um ou outro soldado, amparados pela superioridade numérica e pela força bruta. Claro que pequenas batalhas como esta não definem o resultado da guerra, e as manifestações sempre acabam com dezenas de estudantes feridos e presos.
Poucas semanas depois do "paciente zero" Zhao Yun ter falecido, e muito antes da Dybbuk espalhar o pânico pelo mundo e ganhar o status de pandemia, uma dessas passeatas teve lugar na Canton Road, a avenida dos endinheirados e turistas em Hong Kong. Milhares de manifestantes brandiam cartazes e exigiam liberdade, aos berros. A manifestação seguia pacífica, até uma esquina que as tropas do governo haviam ocupado com barricadas, com ordens para debandar a multidão "a qualquer custo". Os manifestantes continuaram avançando até as barreiras. Alguns tentaram passar por cima dos cavaletes de isolamento mas foram dissuadidos com cacetadas. Alguém no meio da aglomeração arremessou uma pedra que acertou o capacete de um dos guardas, e a situação virou um caos. Policiais dispararam tiros de borracha e lançaram bombas de gás enquanto coquetéis molotov voavam sobre seus capacetes e explodiam na calçada, nos carros parados, nas vidraças das lojas. Os policiais fizeram um cordão humano e começaram a avançar num movimento inexorável sobre os manifestantes, batendo em seus escudos com os bastões e provocando um ruído desmoralizante e assustador, como tambores de guerra. Os estudantes tentaram reagir e manter posição mas logo viram que era impossível. Resolveram então se espalhar pelas vielas laterais, quebrando tudo que podiam pelo caminho. Um grupo mais recuado continuava jogando coquetéis molotov contra as tropas de choque. Mas mesmo eles optaram pela fuga quando foram atingidos pelo jato de água do blindado que avançava pela rua abrindo caminho à força.
Um estudante, cujo nome se perderá na história oficial da China e de quem poucas pessoas se lembrarão dentro de alguns meses, fugia com um dos pequenos grupos que se dispersaram pelas ruas secundárias do bairro. Eram perseguidos de perto por policiais. Desorientados, viraram à direita num beco sem saída e se viram encurralados. A guarnição se aproximava como um laço se fechando em torno do pescoço de um condenado. Os fugitivos desesperados tentaram se defender com o que tinham à mão: latas e garrafas encontradas numa caçamba de lixo nos fundos do beco. Mas o efeito dessa estratégia era nulo. O policial mais avançado se aproximou de braço erguido e desferiu um golpe contra um rapaz mirrado, de capuz na cabeça. A reação do agredido foi surpreendente e inimaginável. Aquele jovem franzino, pouco mais do que um menino, reteve o golpe com a mão nua. Acertou um soco na viseira do capacete do guarda, rompendo-a e deixando o adversário fora de combate. Outro policial que se aproximava por trás acertou a nuca do rapaz com o bastão, mas ele não caiu. Virou-se para o agressor e o derrubou com um murro. Pegou o bastão do policial caído no chão e usou-o para derrubar mais dois guardas com golpes vigorosos e fora de controle. A essa altura, os outros estudantes que estavam encurralados já tinham aproveitado para escapar em direção à rua. Mas o estudante que havia permitido aquela fuga não estava mais disposto a fugir. Parecia fora de si. Golpeava repetidamente o capacete de um dos policiais caídos, já inconsciente. Sentiu, então, um calor espalhando-se por suas costas, como ferro derretido jogado sobre sua pele. Parou de bater no policial caído e se ergueu, vendo logo atrás de si outro policial com a arma apontada para ele, ainda fumegando do disparo feito. O jovem não caiu, porém. Atirou-se para a frente em direção ao atirador, com ira nos olhos e um grito assustador na garganta. O policial, aterrorizado por aquela reação impossível, atirou mais quatro vezes, acertando o rapaz no peito e nos braços. Ainda assim o estudante continuou avançando, até colocar as mãos ensanguentadas sobre a garganta do policial, apertando com força e fazendo-o perder os sentidos. Derrubado o último adversário, o estudante franzino que nunca tinha brigado na vida, possuído de uma força e raiva sobrenaturais, saiu do beco e seguiu cambaleando por vários metros pela rua ainda agitada pela retirada dos manifestantes. Começou a se sentir muito tranquilo, sem dor, sem medo... perdeu a noção do que ocorria à sua volta, como se aquela confusão infernal fosse apenas um pesadelo. Tombou vários metros adiante, quando suas vistas se escureceram para sempre.
Nenhum dos passantes, manifestantes apressados em fuga ou policiais concentrados na missão de dispersar os subversivos, nenhum deles poderia perceber a pele terrivelmente avermelhada no rosto do morto, escondida pelo capuz feito de uma velha camisa de flanela.
A mais de 11 mil quilômetros dali, um médico voluntário enxuga o suor da testa no calor escaldante do verão nigeriano. Nos arredores de Ngala, o acampamento de ajuda humanitária da ONU fervilha de refugiados famintos, exaustos, muitos doentes. A multidão não tem forças sequer para se movimentar, fica aglomerada nas pequenas manchas de sombras oferecidas pelas barracas de lona. O médico, com as mãos trêmulas depois de muitas horas de atendimentos os mais diversos, permite-se descansar por alguns momentos perto de um dos poços. Pega água de um balde com a concha de metal, maldizendo a demora dos burocratas em liberar recursos para um sistema de abastecimento de água mais eficiente. Mas o que o incomoda mais é a estupidez do conflito religioso que assola o país há décadas. De um lado o governo cristão, de outro a maioria muçulmana. Os dois grupos dispostos a qualquer coisa para provarem que estão com a verdade, que seu profeta é o único e verdadeiro, que não há salvação senão pela fé que devotam. Num ambiente extremado, de lutas constantes e intolerância, a única verdade é o retrocesso. Esquecem-se de seus mestres, apegam-se a convicções cada vez mais distantes dos evangelhos ou do alcorão. Maomé e Jesus são retratos maniqueístas e intransigentes de conceitos mundanos, pilares de poder secular que nada tem de divino. Enquanto são atacados por todo tipo de doença, principalmente a nova Dybbuk, açoitados pela fome e pela miséria, as duas facções esgotam-se tentando exterminar uma à outra.
Naquela tarde, o relato de um velho cristão tornou mais amargo o gosto daquela violência. O médico recebeu-o na tenda-hospital com o olho esquerdo dilacerado e um profundo corte no braço. Golpes de facão aplicados por um extremista muçulmano partidário do grupo Boko Haram, defensores da Xaria como único código de direito válido para o país. Depois de medicado, Kwame, como se chamava, foi informado de que perderia a visão do olho esquerdo. Mas pareceu estar conformado com aquilo. Ouviu o diagnóstico em silêncio, entregando a Deus os seus sofrimentos.
O doutor quis saber dele como aquilo tinha acontecido. Kwame falou com voz pausada, num inglês entrecortado de expressões do dialeto efik, etnia à qual pertence. Por vezes, foi difícil para o médico entender o que o outro contava. Outras vezes, foi mais difícil ainda acreditar que aquilo tinha de fato acontecido.
"Um grupo de infieis, armados com facões e lanças, invadiu nossa aldeia de surpresa. Os homens estavam longe, arando os campos ou caçando, e ali estávamos apenas nós, os velhos, mulheres e crianças. Eu vi quando um deles cortou a cabeça de Erasto, um menino de menos de dez anos, que cometeu o erro de ficar paralisado de terror bem no caminho dos assassinos. A mãe dele, histérica, saiu de sua cabana gritando, correu para o corpo do filho e tentava juntar a cabeça ao pescoço de novo, banhada em lágrimas. Foi morta ali mesmo, com outro golpe de facão dividindo-lhe o crânio ao meio. Kalinda, uma jovem inteligente e bonita, com instinto de guerreira que devia ter herdado dos ancestrais, atirou-se contra os bandidos armada com uma pequena faca. Contra todas as expectativas, ela conseguiu matar um dos agressores furando-lhe o pescoço. Mas foi rendida por dois homens fortes, que rasgaram suas roupas e estupraram-na antes de lhe cortar a garganta, enquanto seus companheiros ateavam fogo nas cabanas mais próximas. Eu estava dentro de casa quando um dos invasores me encontrou. Tentei proteger o rosto com o braço, mas como o senhor pode ver, o facão fez seu trabalho sem muita dificuldade. Eu ia morrer, já estava encomendando minha alma para o Pai Altíssimo, quando vi meu algoz paralisar-se de repente. Os olhos dele ficaram muito abertos e uma golfada de sangue saiu de sua boca. Logo vi que seu peito tinha sido atravessado por uma lança. Quando o maldito caiu, atrás dele, com a arma ensanguentada, estava Bomani, um meninote de mal contados quatorze anos. Olhei para ele com o olho que me restava depois daquele ataque, e lhe juro, o que vi foi o espírito guerreiro de um tigre. Ele arfava, parecia ter dificuldade para respirar, mas segurava o facão com tanta força que eu julgava que seus dedos iriam se partir a qualquer momento.
"Bomani saiu da minha casa com o braço erguido, soltou um grito assustador de desafio e cólera, sua voz ainda em formação tinha ganhado um timbre sobrenatural. Juro que não exagero! O menino se jogou sobre os muçulmanos e começou a golpear, cego de ódio, fora de si. Arrancou o braço de um deles, cortou a orelha de outro, matou os dois antes de poderem gritar "ai" e saiu em busca de mais adversários. Vi quando uma lança atravessou seu lado. Bomani, então, com a força de dez homens, arrancou a ponta da lança e com ela mesma desferiu um golpe, matando mais um inimigo. A essa altura os assaltantes começaram a sentir medo. Vi nos olhos deles a superstição e o pânico. Mas não poderiam fugir de uma única criança, as portas do céu estariam fechadas para sempre para eles diante de tamanha desonra. Atacaram então todos juntos, e reduziram o pobre Bomani a um monte de carne esquartejada e ensanguentada. Só pararam muito depois do jovem estar morto. Então pegaram o que quiseram e foram embora.
"Eu estou velho. Estou ferido. Mas estou lúcido. Juro que nunca vi uma coisa daquelas. O pequeno Bomani parecia um gigante. Não sentia dor, não sentia medo, apenas ódio. Ódio tão forte que dava para sentir uma energia em volta dele, quente como o sol. Nunca vi nada parecido e acho que nos poucos anos que ainda me restam nunca verei tamanha ferocidade de novo".
O médico ficou pensando nas palavras do velho, lembrando-se de alguns relatos parecidos que tem ouvido nos últimos dias, de prodígios de força e raiva inexplicáveis em pessoas que até então nunca haviam mostrado comportamento violento. Um desses casos chegou à sua tenda, em convulsões, espumando pela boca e gritando sem parar. O homem estava trabalhando normalmente quando começou a ficar agitado. Os colegas que o trouxeram disseram que ele parecia irritado sem motivo algum, começou a agredir um dos encarregados da roça de milho em que trabalhava quando este lhe mandou carpir um terreno morro acima. Os amigos ficaram assombrados quando o simples lavrador derrubou o feitor do cavalo e o golpeou várias vezes com as próprias mãos, quase matando-o. Ainda ficou muito tempo ameaçando qualquer um que se aproximasse dele, com os braços estendidos e os punhos cerrados, socando o ar e girando o corpo numa dança assustadora, fora de controle. Quando finalmente caiu no chão, o lavrador foi rendido pelos colegas e trazido para o acampamento humanitário. O médico cuidou dele como pode, mas a falta de recursos foi um obstáculo intransponível. Sem calmantes ou drogas sedativas, foi preciso amarrar o homem à maca, e ainda assim ele ameaçava se levantar, arrebentando as tiras. O doutor percebeu que o estranho paciente estava com uma febre altíssima. Morreu horas depois. O médico ficou se perguntando se o jovem Bomani também tivera febre alta antes de ser transformado numa massa sanguinolenta pelos integrantes do Boko Haram. Na cabeça do doutor, um padrão poderia estar se formando naqueles ataques de loucura, capazes de se destacar mesmo entre pessoas de uma sociedade acostumada com a violência extrema. Se tivesse equipamento adequado, o médico gostaria de investigar.
Essa convicção seria ainda maior se um dos sintomas mais comuns da Dybbuk não ficasse totalmente camuflado pela pele negra dos pacientes: a coloração vermelha, principalmente no rosto e nas mãos.
No Brasil, enquanto o poder público batia cabeça e hesitava em enfrentar o H5N2, a paciência das pessoas escorria rapidamente para o ralo. As medidas de emergência na área econômica mostravam-se insuficientes e ineficientes; os pronunciamentos oficiais não davam satisfações aos milhões de desesperados; no campo da saúde, a incompetência oficial beirava o absurdo. Ministros da Saúde entravam e saíam do governo como roupas numa gaveta. Não tinham propostas realistas de combate à pandemia e, quando a tinham, não encontravam respaldo nem no legislativo, nem na população que preferia negar que fosse necessária uma ação mais drástica - e nem no próprio Planalto. O chefe do executiva enciumava-se de qualquer destaque que algum de seus subordinados conquistasse na mídia, e esforçava-se por fazer da vida do agraciado com a simpatia da imprensa um inferno sem precedentes. Desautorizava, desmentia, contrariava, em público e em reuniões privadas. Não era de estranhar que ninguém esquentasse muito a cadeira no Ministério da Saúde.
Amália, Amadeu, Riquinho assistiam de camarote à derrocada nacional. Sentiam seus efeitos diariamente, observavam seus reflexos nas faces mascaradas de seus vizinhos. A tensão se espalhava pelo ar como um outro tipo de vírus, mais silencioso que o H5N2, mas não menos perigoso. Muitos começaram a fazer coro com a ala governista que pregava um suposto exagero nas medidas sanitárias ditadas pela O.M.S. Amadeu foi um deles. Impedido de trabalhar pelas regras da quarentena, começou a se sentir injustiçado. Passou a fazer coro com os que pediam a reabertura imediata do comércio. E não eram poucos. Os descontentes começaram a se reunir em manifestações, primeiro com carreatas em que ainda havia um resquício de cuidado com a propagação do vírus, depois em grandes passeatas e concentrações públicas, onde não raramente a máscara era deixada de lado e a aglomeração ameaçava a segurança de todos os presentes. Muitos ficaram doentes, alguns morreram sufocados pela Dybbuk depois desses atos pró-reabertura.
Amadeu não foi a nenhuma dessas manifestações, muito menos Amália. Intuíam que, além de inúteis, aqueles atos só trariam mais risco de contágio. A rebeldia de Amadeu foi individual, uma convicção materializada em pequenos atos: saídas em busca de emprego, contrariando regras da quarentena que eram ainda mais restritivas para pessoas como ele, acima dos sessenta anos. Não havia chance dele ficar em casa esperando pela ajuda oficial que nunca chegava, sem renda, sem trabalho, sem aposentadoria uma vez que ainda não tinha cumprido os requisitos básicos para garantir o ganho regular. Tinha a idade mínima mas não o tempo de contribuição exigido. Saía todos os dias esperançoso de conseguir algum bico, voltava no fim da tarde decepcionado, para no dia seguinte repetir o mesmo ritual, sempre acreditando, sempre se decepcionando, como se a noite tivesse o poder de renovar nele a confiança ou apagar a lembrança dos fracassos anteriores. A filha parou de sair à procura de alguma oportunidade. Apenas observava o esforço do pai, que ultimamente passava mais tempo na casa dela do que na própria, segurando um choroso Alvinho nos braços, olhos embaçados de lágrimas secas. Tentava compartilhar daquela fé, mas estava cada vez mais difícil. Frequentemente se lembrava do marido em coma. Se pelo menos ele acordasse, seria mais um para ajudar. Bernardo podia não ser o melhor marido do mundo, mas sempre soube trazer dinheiro para casa, fosse como fosse. Quando se lembrava do esposo, pensava no dia do casamento, Bernardo estava meio alto das cervejas com que celebrou o enlace, abraçava a esposa de vez em quando entre um gole e outro e prometia "nunca vai te faltar nada, esposa". Ele prometeu mas agora não tem condições de cumprir, incapacitado por uma doença assassina, talvez condenado à morte depois desse longo suplício da inconsciência num leito de hospital. Amália pegou o celular. Decidiu-se a ligar mais uma vez para o hospital, quem sabe um milagre não tenha acontecido e eles simplesmente se esqueceram de contar. Mas a sua fé, como já foi dito, deixou de ser forte há muito tempo. Apertou os dígitos que já havia decorado, fez a mesma pergunta que já havia decorado, recebeu depois de alguns minutos a mesma resposta que já havia decorado. As lágrimas, secas, não rolavam mais a cada má notícia. Amália desligou sem se despedir, missão cumprida, dever de esposa, querer notícias do marido doente, nada mais a fazer. Abraçou o filho menor e voltou a se sentar para mais algumas horas de apatia, observando a rua pela porta entreaberta. Não teria coragem de confessar em voz alta, mas nesses momentos de desalento invejava o marido e chegava a desejar ficar doente, apenas para não ter mais que enfrentar a aridez daquela rotina massacrante. Que se virassem sem ela o pai, os filhos... queria descansar.
Riquinho continuava a pedir esmolas, e notava que mesmo nesta atividade a concorrência era grande e desleal. Como enfrentar aquela mulher vestida de molambos que estendia a mão ossuda com um bebê choroso nos braços? Ou aquele idoso perneta, saltitando em direção às moedas que lhe eram oferecidas? Os semáforos se transformaram num teatro de miséria em que diferentes histórias eram contadas em olhares tristonhos, peles ressequidas, bocas famintas. Os beneficiados pela sorte, em seus carros luxuosos, preferiam direcionar sua benevolência aos que pareciam mais necessitados. Um menino, ainda na flor da idade, teria certamente mais tempo e energia para se virar. Numa tentativa de equalizar a disputa, usou então o expediente de escrever um recado num velho pedaço de papelão pardo: "me ajuda, papai com Dibuqi", assim mesmo, com a grafia errada do nome da doença. Exibia aquela mensagem aos para-brisas indiferentes, ou pior, condenatórios. Riquinho ouviu várias vezes reprimendas de gente que o julgava e condenava por não estar estudando ou fazendo algum pequeno serviço... vá capinar um lote, vá lavar carros, trabalhar de servente de pedreiro, sugestões não lhe faltavam. O que faltava era quem lhe desse uma dessas oportunidades, porque sim, ele já tinha tentado, não uma, mas várias vezes. Chegou a trocar um desses pequenos serviços por um prato de comida uma vez. No dia seguinte tentou repetir a negociação mas foi escorraçado. Não era para virar um hábito, ele não era bem-vindo ali, foi só uma vez e agora que vá se arranjar em outras bandas. Ele também tentou descobrir onde os lavadores de para-brisa conseguiam o sabão que usavam, onde os vendedores encontravam as balas, chicletes, doces e frutas que ofereciam nos cruzamentos... Ninguém, porém, estava disposto a orientar um possível concorrente na arte daqueles ofícios. A solidariedade não estava em alta nos enxames de desfavorecidos e a política do "cada um por si" tinha se tornado o único mandamento sensato. Uma única vez Riquinho experimentou lavar um para-brisa só com água e um pedaço de pano sujo, tirado de uma caçamba de lixo próxima, mas tudo que conseguiu foi transformar poeira em lodo e receber como pagamento um palavrão e um sinal obsceno feito com o dedo do motorista enraivecido.
Quando voltava para casa, sentia um aperto no peito ao encarar os olhos vazios da mãe. Ela sempre foi bonita e viva, mas ultimamente parecia uma sombra, um espantalho... cabelos desgrenhados, olhar estagnado, uma boca ainda bonita mas semiaberta, murmurante, como se rezasse ou praguejasse baixinho. Riquinho adiava ao máximo o momento do retorno à casa, só para evitar aquele triste espetáculo. A mãe estava parecida com os pedintes mais rotos que encontrava todos os dias. Até pensou que ela teria mais sorte que ele como pedinte, principalmente se levasse o irmãozinho junto. Jamais teria coragem de propor isso a ela, não conseguiria imaginar uma cena daquelas... Riquinho vai para o quarto, algumas vezes sem comer, e invariavelmente pensa no pai, cabeça no travesseiro, sono fugidio. Nunca teve uma relação típica de afeto com aquele homem meio bruto, grosseiro e de pouca cultura, mas havia respeito, talvez até uma certa devoção filial. Mas agora, o que há é uma revolta. Riquinho não perdoa o pai por ter ficado doente e deixado a família naquela penúria. Não se importa com a injustiça de sua raiva, o sentimento é mais forte que a lógica. Pensa apenas no quanto odeia aquele homem que não está ali para defendê-lo a ele e à sua família. O quando o odeia, e o quanto adoraria vê-lo entrando em casa, de pé e bem de saúde, abrindo os braços e sorrindo, "estou de volta, não foi nada, vamos tocar a vida". Nessas ocasiões não pensava nos tapões ao pé do ouvido, poucos, que o pai lhe dispensara em raras oportunidades em que estava em casa e flagrava alguma arte ou malcriação. As imagens que acorriam à sua memória eram das partidas de futebol na rua em frente à casa, das brincadeiras de quando Riquinho tinha pouco mais idade do que Alvinho tem hoje, das conversas no quintal, quando as noites estavam muito quentes pra ficar dentro de casa, e Bernardo aproveitava para conversar, naquele seu jeito de poucas palavras e muitas interjeições. Olhava para as estrelas sobre sua cabeça, Riquinho se lembrava como se estivesse diante do pai naquele momento, coçava o queixo, murmurava algo ininteligível e depois soltava algum lugar-comum, provavelmente lido em algum pára-lama de caminhão: "a vida é dura pra quem é mole", "não tenho tudo que amo mas amo tudo que tenho", ou, quando sua veia filosófica estava mais à flor da pele, "viajar é bom, mas voltar pra casa é ótimo"... Riquinho não entendia nada daquilo, mas se sentia bem ao lado daquele homem, ouvido o que pareciam ser fragmentos de uma grande experiência e sabedoria. Nem tudo o que o pai dizia ao filho era retirado de placas de caminhões ou folhetos ruins de pensamentos óbvios. Riquinho guardava com especial cuidado um ensinamento que lhe parecia mais importante que todos os outros, e que Bernardo repetia sempre que tinha oportunidade. "Não conte com ninguém, filho, nunca. Você é que tem que fazer por onde". Na situação por que estão passando, ele, a mãe, o avô e o irmão, aquelas palavras ganhavam um sentido profético. Pareciam indicar que os defensores da reabertura do comércio tinham razão, afinal de contas. Melhor "fazer por onde" do que ficar contando com o socorro do governo, que não vinha mesmo de qualquer jeito, olha só o desespero da mãe e do avô atrás dos benefícios.
Riquinho ia para as manifestações. Em parte por convicção pessoal, mas muito pelo barulho e agitação que sacudiam um pouco sua vida monótona. Numa delas, na Praça do Trabalhador, mais de 3 mil pessoas se aglomeraram. Eram na maioria pequenos comerciantes, lojistas de rua, alguns funcionários preocupados com os próprios empregos... nenhum grande empresário, daqueles que davam entrevistas defendendo o fim da quarentena mas não participavam das passeatas. Quando muito, foram a algumas carreatas sem sair de seus carrões importados; não iam aos seus escritórios nos curtos períodos de abertura, tampouco. Dedicavam-se ao home office na segurança de suas casas, bem longe dos ônibus lotados que levavam seus empregados ao trabalho. O presidente da Liga de Comércio e Indústria do estado acompanhava os acontecimentos pela TV e rádio, nos boletins noticiosos que narravam a manifestação. Ele não tinha por que se preocupar com coisas secundárias como ter o que comer. Não faltavam a ele alternativas. Poderia inclusive propor um convênio de emergência entre seus associados, com donativos a serem distribuídos aos comerciários e trabalhadores da indústria, para que estes pudessem suportar com o mínimo de dignidade vários meses de lockdown se fosse necessário, sustentando seus trabalhadores sem a necessidade de que estes se expusessem ao risco de contrair Dybbuk. Mas, se agisse dessa forma, os lucros reduziriam, e lucrar sempre foi motor principal de todas as suas atitudes.
Mas a grande massa reunida, gritando palavras de ordem e exibindo cartazes contra o isolamento social, não pensava na incoerência de seus líderes. Eram movidos pela necessidade, que embaçava o raciocínio lógico. A grande maioria sincera e bem-intencionada fazia volume para interesses não tão puros, de poderosos focados em manter os próprios ganhos. E o governo ia na mesma linha, preocupado com a popularidade e a viabilidade eleitoral de suas aspirações futuras. Chegavam mesmo ao ponto, alguns dos mais exaltados representantes do alto poder político, de comparecer a esses movimentos em sinal de apoio a suas demandas. Pareciam querer dizer que não tinham nada a ver com a crise econômica advinda da pandemia, ou a falta de suporte público para os desempregados e falidos.
Riquinho, do alto de seus 11 anos, não atinava com todas essas sutilezas. Ficava encantado com os brados pelos auto-falantes, os gritos da multidão, os aplausos e buzinaços. Era uma festa, uma anárquica manifestação de liberdade. Seguiam todos entusiasmados, convictos de suas razões, confiantes na vitória... esquecidos da letalidade da doença que atingia já mais de 10 milhões de pessoas em todo o planeta, matando centenas de milhares.
Quase no fim da passeata, quando já pensava em voltar para casa, Riquinho viu um grupo de policiais arrastando um homem enfurecido, um grande tumulto em redor deles, alguns exigindo que o sujeito fosse posto em liberdade, outros ameaçando agredir os policiais com os cabos dos cartazes que traziam... o menino ficou assustado, observando de longe, sem entender como tantos policiais podiam ter tamanha dificuldade em contar um único homem. O detido parecia fora de si, espumava pela boca, mexia-se com uma energia incontrolável, socando tudo que encontrava pela frente, chutando, gritando.
Naquele quadro patético, o que mais chamou a atenção de Riquinho foi a cor vermelha que cobria o rosto do manifestante. "Parece que tá com vermelhão", pensou ele.
O homem foi posto dentro de um camburão, estrebuchando, e foi levado dali, sob os protestos de outros manifestantes, furiosos com o que consideravam um abuso de autoridade. Outros policiais dispersaram o público que ainda se reunia na praça. Minutos depois todos os sinais da confusão tinham desaparecido, exceto uma mancha de sangue no asfalto, de um dos policiais, que teve um corte na testa provocado pelo preso fora de si.
Impressionado com aquele espetáculo degradante, Riquinho saiu em direção à Avenida Goiás, onde entrou num ônibus lotado para voltar para casa. Pelo caminho foi tentando imaginar o que poderia fazer uma pessoa se tornar tão furiosa.
9 - Mais de um ano se passou desde que Bernardo fez sua última entrega na Cooperativa de Produtores de Cana-de-açúcar, em Ribeirão Preto. Aquela empresa, que tinha ignorado as regras da quarentena recém-imposta e até rompido os lacres da Vigilância Sanitária para dar acesso ao caminhão de Bernardo com sacas de fertilizantes, se ressentia agora das consequências da própria irresponsabilidade. O depósito, que no passado foi um dos principais símbolos da opulência dos latifundiários e usineiros, agora está abandonado. As amplas janelas do galpão refletem nos cacos de suas vidraças quebradas os raios do sol poente, emprestando uma atmosfera lúgubre ao conjunto arquitetônico decadente. Ervas daninhas se espalham pelas frestas e rachaduras do pátio principal. Grandes moitas escondem parte da cerca e entopem as calhas nos telhados. Os armazéns de insumos agrícolas não guardam mais nada de útil, as poucas ferramentas que não foram furtadas se espalham pelos cantos, enferrujadas e esquecidas, destacanso-se entre os equipamentos abandonados um velho trator que, a essa altura, já foi totalmente depenado por marginais que furtaram o quanto puderam de peças que ainda fossem úteis. Todo o prédio administrativo descasca a olhos vistos revelando extensos espaços de blocos de concreto por baixo da pintura envelhecida. Dentro, móveis empoeirados, fichários de aço vazios e com as gavetas abertas fora dos trilhos, dejetos de drogados que fizeram daquele lugar seu esconderijo espalhados pelo chão. A ostentação da prosperidade do passado foi trocada pela decrepitude da miséria. Retrato da tragédia que se abateu sobre aquele lugar e todos que trabalhavam ali.
Nem um ano separa a fortuna da desgraça. As vicissitudes em série drenaram todas as reservas da cooperativa, minaram todos os esforços de seus sócios, implacáveis, quebraram qualquer resistência e espalharam desolação por toda parte. Tudo teve início naquele mesmo pátio, antes robusto como uma fortaleza e agora repleto de veias abertas como ramos de uma árvore seca, quebradiço e frágil. Vencido. Destruído, como a ilusão de superioridade que cega os homens.
Bernardo já estava internado em Uberlândia, a menos de 300 quilômetros dali, quando as coisas começaram a fugir do controle no depósito da Cooperativa. Reginaldo foi notificado do mal estar que afetava alguns dos carregadores da cooperativa. Apresentavam fraqueza, dificuldade para respirar, febre. O encarregado recusou-se a acreditar que a Dybbuk poderia ter se infiltrado entre seus funcionários; nada de pânico, está todo mundo muito nervoso com essa quarentena, agora qualquer resfriadinho está recebendo o status de epidemia assassina. Foi orientado pelo presidente da cooperativa a dar continuidade ao trabalho. Fiscais da prefeitura não apareceriam tão cedo para verificar se a interdição estava sendo respeitada. Bastava usar de discrição, reduzir um pouco o ritmo, marcar os recebimentos dos insumos em horário noturno ou mesmo de madrugada e, durante o dia, dedicar-se a serviços administrativos ou à organização interna das mercadorias nos armazéns, tudo sempre com o portão onde ainda se viam os dois pedaços do lacre da vigilância fechado, as portas de aço dos galpões abaixadas e a aparência de quarentena mantida. Nenhum trabalhador, apesar do medo de adoecer, denunciou aquela fraude ao sindicato ou mesmo às autoridades sanitárias. O medo de perder o emprego naquele momento delicado era maior do que o instinto de sobrevivência. A desinformação generalizada, muitas vezes alimentada pelos próprios boletins governamentais, também contribuía para a crença de que aquele vírus não poderia ser assim tão perigoso. Todos acabaram decidindo pagar para ver, arriscando-se num trabalho que gerava aglomeração de pessoas em ambiente confinado. Nem mesmo a máscara era um cuidado adotado por todos. Sempre havia um ou outro que se julgava mais "corajoso", mais bem informado que os outros, e dispensava qualquer cuidado com a própria saúde ou a dos colegas. Assim fermentava num caldeirão de ignorância e insalubridade o caldo de cultura ideal para a proliferação do novo influenza. E o vírus se instalava, naquele lugar, silencioso e calmo, sem pressa, provocando sintomas bem menos agressivos do que se costumava ver na maioria dos casos e aumentando com isso o engano dos funcionários e encarregados. Era mais de uma centena de pessoas naquele lugar. Alvos fáceis para a doença.
Sebastião, capataz da cooperativa encarregado de recrutar carregadores para o depósito, foi o primeiro a cair. Com ele a sutileza do vírus foi deixada de lado. Do primeiro sintoma até a morte por insuficiência respiratória aguda, passaram-se menos de três dias. Um avanço fulminante que terminou com o característico tom vermelho no rosto e nas mãos da vítima indefesa. Deixou mulher e três filhos. Pretendia se aposentar ainda naquele ano.
A morte devastadora e repentina espalhou finalmente o pânico entre os trabalhadores. Eram como formigas num labirinto, sem saber para onde ir. Reginaldo ainda se recusava a ver o pior. E como o corpo de Sebastião não passou por exames que comprovassem a Dybbuk, por uma falha muito comum da saúde pública carente de kits de diagnóstico, Reginaldo tratou logo de minimizar o episódio nas conversas com os subalternos, espalhando a versão de que o velho capataz tinha morrido de dengue. Não conseguiu convencer ninguém. Teve que apelar para a própria autoridade, ordenando que todos continuassem o trabalho a menos que quisessem procurar emprego em outro lugar. Mais uma vez a necessidade se impôs e ninguém optou por se arriscar no desemprego, algo tão assustador quanto o vírus.
Reginaldo não poderia ceder e exigir o uso de máscaras ou álcool gel na empresa. Seria como admitir que a morte de Sebastião tinha sido causada pelo vírus. O presidente da cooperativa exigiu a manutenção da produtividade ainda que dentro das restrições do trabalho noturno e secreto. Alarmar os empregados com medidas preventivas seria um tiro no pé e comprometeria os resultados. A ambição do supervisor falou mais alto. Ele desejava uma nomeação para o cargo de vice-presidente de exportações. Se conseguisse bons números mesmo em período de quarentena a promoção estaria praticamente garantida. Para alcançar seus objetivos não mediria sacrifícios, ainda que fossem medidos em vidas perdidas de subalternos. Reginaldo trataria a ameaça como costumava tratar tudo na vida: de forma pragmática e funcional; como um motor que não pode abrir mão de sua função de movimentar uma máquina, ainda que ao preço de muito combustível queimado. Se os funcionários tivessem que ser seu combustível, tanto faz.
Resolveu garantir que seus planos não seriam atrapalhados por alguma inspeção-surpresa da Vigilância em Saúde. Contatou Raimundo, um faz-tudo que conheceu ainda na adolescência na escola, quando começava a despontar seu caráter competitivo. Raimundo era um aluno apenas medíocre, mas sempre conseguia boas notas usando seu charme para colar das meninas bonitas e inteligentes nos dias de exames. Nunca foi pego, descobriu que havia um atalho para o sucesso, enveredou por ele e nunca mais saiu. Hoje na meia idade, Raimundo é o tipo do sujeito sem carreira definida ou emprego conhecido, sem família ou responsabilidades, mas com uma agenda valiosa. Ele é o cara que conhece as pessoas. Sabe a quem recorrer para solucionar os mais variados problemas sem suar a camisa. Reginaldo decidiu usar os serviços desse faz-tudo. Marcou um encontro com ele numa praça da cidade no meio da noite para uma conversa reservada. Perguntou se Raimundo conhecia um meio de garantir que os fiscais da saúde permecessem afastados dos negócios da cooperativa. Raimundo sabia exatamente como fazer isso acontecer, conhecia as pessoas certas, mas custaria muito dinheiro.
- Isso não é problema - respondeu Reginaldo.
Durante meses, com as mãos certas devidamente lubrificadas por notas graúdas, ninguém importunou as operações da Cooperativa no Armazém, nas usinas filiadas e nas lavouras de cana em redor. A imprensa arriscou algumas denúncias, mas causaram pouco mais que pedidos de informações do Ministério Público ou fiscalizações-surpresa da Vigilância Sanitária, que não eram surpresa para ninguém, sempre em horário marcado e pré-combinadas com Reginaldo por intermédio de Raimundo.
Nesse meio tempo alguns poucos funcionários apresentaram sintomas de Dybbuk. Dois ou três tiveram reações sérias e chegaram mesmo a ficar em casa com uma febre mais forte. Reginaldo exigia deles que não procurassem unidades de saúde, que se automedicassem com remédios para malária ou lúpus e evitassem alarde em torno do assunto. Pagava pequenas gratificações para comprar esse silêncio e dessa forma, tirando o tom vermelho na pele, nada parecia indicar que um surto da doença estava sendo construído lentamente dentro da empresa.
A grande maioria dos trabalhadores estava assintomática, para grande satisfação de Reginaldo e do presidente da cooperativa. As turmas de funcionários mantinham plena capacidade de trabalho e produziam bons resultados enquanto empresas de outros setores, respeitadoras das normas da quarentena, apresentavam crises financeiras dramáticas e ameaçavam falir. A satisfação com o desempenho de Reginaldo não poderia ser maior.
- Acho que em dezembro já sei quem vou indicar para meu vice-presidente de exportação - dizia o chefe, jubiloso, durante os happy-hours no próprio escritório do armazém, no fim do dia. Reginaldo sentia-se a um passo de dominar o mundo. Tudo porque teve coragem de "enfrentar a doença de frente". E os prejuízos em vidas humanas tinham sido praticamente nulos, nada mais do que meia dúzia de afastamentos por motivo de saúde. O ambicioso supervisor não poderia se sentir mais radiante.
Foi quando aquele castelo de cartas começou a desmoronar.
Numa noite, Gumercindo, o novo capataz desde a morte de Sebastião, encontrou-se com o supervisor no pátio da Cooperativa. Reginaldo odiava ir até a empresa e só fazia isso quando era absolutamente indispensável, mas o subalterno lhe garantiu que o assunto era grave e não podia ser tratado por telefone. Tinha relatos a fazer sobre a frequência dos empregados que estavam faltando demais, alegando febre e mal estar. Reginaldo logo pensou que as informações da pandemia, noticiadas diariamente pela imprensa, estavam sendo utilizadas para justificar faltas pelos mais diversos motivos: gente querendo simplesmente aproveitar um dia livre pra ir pescar no rio Pardo, fora da cidade, um simplesmente ficar à toa em casa, bebendo cachaça que não podia mais ser tomada nos butecos por causa da quarentena. Vagabundos oportunistas é o que são, na opinião de Reginaldo. Uns ingratos, nunca lhes faltou nada da empresa, mesmo assim matam serviço pra vadiar. Gumercindo garantiu que não era nada daquilo, naquela manhã mesmo, por exemplo, um dos peões foi até ele com a cara vermelha e a pele ardendo em febre, meio fora de si, avisando que ia para casa porque estava se sentindo mal. Era visível o estado lamentável em que o trabalhador se encontrava, Gumercindo garantiu que aqueles tipos de sintomas não se inventava. Reginaldo ficou de mau humor, ressentido do novo capataz que julgava ser seu homem de confiança e agora vinha com essa conversa de sindicalista, defendendo a preguiça de peão sem vergonha. Disse isso mesmo para o outro e avisou que não queria ouvir mais nada daquilo, e se na noite seguinte não aparecessem para trabalhar não precisavam voltar mais nem pra receber o contra-cheque. Afastou-se do subalterno de queixo erguido, pisando firme com seus sapatos envernizados sobre o concreto do pátio e fazendo seus passos ecoarem como tic-tacs de um relógio. Sentiu-se grandioso, e confessou a si mesmo que tinha nascido para aquilo: mandar, fazer as coisas funcionarem, não importa a dificuldade. Depois da vice-presidência que com certeza conquistaria, quem sabe que novos voos sua competência poderia empreender?
Naquela maçaroca de gente, uma cena deixou-a horrorizada. Uma senhora idosa usava máscara, sentada perto da janela do ônibus. De repente abaixou a máscara até o pescoço - e espirrou. Na sequência subiu de novo a máscara para o rosto, como se nada tivesse acontecido. A pessoa ao lado dela olhou com reprovação, mas não disse nada. Ficou quieta no lugar, impossibilitada de se afastar no ônibus abarrotado.
Quando Amália chegou em casa, a noite já havia se instalado há muito tempo. Ela correu para o quarto, onde o filho menor chorava abertamente no colo do avô. Levou um tempo para acalmá-lo com o peito materno; cansado de berrar e saciado com o leite da mãe, Alvinho finalmente dormiu, plácido e ressonante. Só naquele aconchego de fim de dia ninando a criança adorada, Amália sentiu um pouco de paz. Apesar de tudo.
2 - Amadeu escondia na magreza do corpo uma força física insuspeitada. Um vigor incompatível com seus 68 anos. Carregou o botijão de gás sobre as costas do barzinho até a casa da filha sem parar nenhuma vez. O botijão de Amália estava vazio e ela não tinha dinheiro para comprar outro. Pelo menos por mais alguns dias ainda teriam como cozinhar no fogão graças àquela providência de Amadeu. Depois, veriam o que fazer. O segredo era resolver um problema de cada vez. E os problemas estavam aparecendo um depois do outro, sem intervalos.
Primeiro foi o remédio para o bebê que pegou uma virose. Todos ficaram assustados imaginando o pior, mas era uma virose ordinária, dessas que todas as crianças pegam na primeira infância. O médico do postinho receitou o medicamento e deu uma amostra grátis para Amália , mas não dispunha do suficiente para o tratamento completo. A mãe usou parte do que recebeu como diarista para comprar o restante e deixou a conta de água em aberto. Pensaria naquela despesa depois.
Em seguida foram os mantimentos que acabavam rapidamente. A cesta básica da ONG estava quase no fim. A família não pagou a conta de energia para comprar um bife e um pouco de arroz. Pensaria na nova dívida depois. Então Riquinho precisou de um caderno novo para a escola. Lá se foi o restante do dinheiro poupado com o calote na conta de energia. Esse gasto especificamente deixou Amália muito contrariada, porque uma semana depois Riquinho chegou da escola com outro papel, parecido com o panfleto que ensinava a lavar as mãos. O novo documento avisava que as aulas estariam suspensas por pelo menos quinze dias para evitar a aglomeração de alunos nas escolas. Amália só conseguiu pensar que aquela medida podia ter sido tomada antes dela gastar dinheiro com um caderno novo. Poderia ter investido num litro de leite, um pacote de biscoitos, qualquer coisa seria mais útil do que aquelas folhas de papel pautado. Amália tentou fazer compras a crédito no mercadinho do bairro, sem sucesso. O dono informou que os negócios estavam muito ruins, todo mundo passando aperto, e ele não podia se dar ao luxo de correr risco de prejuízo. Pagamento à vista. Nesse meio tempo, enquanto resolvia as questões de sobrevivência imediata da família, Amália continuava procurando trabalho. Tinha pouca escolaridade e experiência nenhuma, o que tornava tudo mais difícil. No mural do mercadinho, onde vez ou outra aparecia um anúncio escrito à mão e colado com durex oferecendo algum serviço, tudo que se via eram recados de gente se oferecendo para trabalhar. Costureiras, lavadeiras, marceneiros, até mecânicos de automóvel e torneiros... Ela também escreveu um bilhete numa das folhas arrancadas do caderno novo de Riquinho. Usou uma caneta hidrocor preta, colocou as próprias habilidades, o endereço e até o número do celular. Diante do pouco resultado dessa estratégia chegou a desejar qualquer ligação, ainda que fosse um trote, só para ter alguns segundos de esperança - quebrar um pouco a rotina. Então veio a notícia de que o barzinho tinha sido furtado durante uma noite. Arrombaram a parede dos fundos, entraram pelo buraco e pegaram algumas bebidas. Os alimentos já tinham sido usados pela família há algum tempo. Dinheiro também não havia. Mesmo assim o prejuízo com o estrago era grande. Amadeu não conseguiria arcar com o custo do conserto da parede, mas também não podia deixar aquilo daquele jeito. Arranjou uma folha de compensado num terreno baldio e pregou na parede, vedando provisoriamente o buraco. Nada eficiente, mas pelo menos não ficaria totalmente aberto. Quando conseguisse uns tijolos e um pouco de cimento, faria um serviço melhor.
No dia seguinte ao conserto provisório, o bar foi invadido de novo.
Aí veio o aviso de cobrança de um pátio de veículos de Uberlândia, onde estava o caminhão de Bernardo desde que ele ficou doente. Um valor absurdamente alto, e que aumentava a cada dia. Era preciso tirar o caminhão de lá, mas antes, a dívida tinha que ser saldada. Amália conversou com o pai sobre a situação. Entrou também em contato com o hospital de Uberlândia, onde ficou sabendo que o estado de saúde do marido não tinha mudado em absolutamente nada desde a internação. Amadeu sugeriu que o caminhão fosse vendido o quanto antes. Parte do dinheiro saldaria a despesa do pátio. O restante ficaria guardado, seria um começo para comprar outro caminhão quando Bernardo saísse do hospital. Amália percebeu que o pai não acreditava muito naquela alternativa, e o dinheiro acabaria sendo gasto para manter a família. Ela não queria se livrar do que garantia o sustento do marido, mas não via outra saída. Negociaram a venda com o próprio dono do pátio, foram obrigados a aceitar um mal negócio uma vez que eram eles que estavam em dificuldades. Quando recebeu o dinheiro, Amália encheu a despensa de casa e resolveu guardar o restante numa caixa de sapatos enterrada no quintal. Não confiava em bancos. O pai queria uma parte do dinheiro para consertar a parede do buteco, mas Amália o fez ver que cada centavo era importante, e os gastos deveriam respeitar a uma ordem de absoluta urgência. Se gastassem com um imóvel que nem podiam usar, poderiam lamentar aquela despesa em breve, quando faltasse dinheiro para algo realmente indispensável.
Enquanto isso empresários apareciam na TV pedindo a retomada da atividade econômica e o fim da quarentena. Alegavam que se continuassem daquele jeito, muita gente morreria, não de vermelhão, mas de fome. Os defensores do isolamento social, porém, respondiam que se tudo voltasse a funcionar, em breve teria que fechar de novo, por falta de funcionários e clientes que teriam morrido da doença, e por causa de um colapso generalizado da estrutura de saúde que fatalmente se concretizaria. O debate tomou cores ideológicas, com facções políticas abraçando essa ou aquela solução, mais preocupados em marcar território político do que encontrar uma saída compartilhada para a crise. Quando o entendimento se tornava mais indispensável, só o que crescia era a discórdia entre todas as esferas de poder: federal, estadual e municipal. Os ânimos se exaltaram tanto que alguns menos conscientes chegaram a minimizar as mortes, considerando-as inevitáveis e irrelevantes, no que foram recriminados veementemente por aqueles que acreditavam que, para salvar a economia, primeiro era preciso salvar vidas e botar a pandemia sob controle. Mas mesmo nesse quesito, que deveria ser uma unanimidade, havia muito espaço para desavença. Do lado oposto dos defensores do isolamento social, apareceram outros, mesmo na área medica, bradando estratégias que Amália nunca tinha ouvido antes, como "imunização de rebanho". O que vacas e ovelhas tinham a ver com aquilo, pensou a moça totalmente alheia ao significado daquela expressão. E no meio dessas forças antagônicas, Amália e sua família se sentiam jogadas de um lado para outro como folha ao vento, sem saber o que pensar ou como agir. Ela tentava seguir as determinações do Ministério da Saúde, mas essas também mudavam ao sabor da política. As máscaras, por exemplo, eram um modelo clássico daquela confusão. Primeiro disseram que só profissionais da saúde precisavam delas. Depois o uso foi estendido a quem apresentasse sintomas de gripe e, finalmente, a todas as pessoas. E na própria coletiva de imprensa em que se falou do uso obrigatório das máscaras, as autoridades de saúde apareceram sem elas - ou usando-as de um modo totalmente inadequado. Falaram também sobre a necessidade de distanciamento num dia, e sobre uma tal de "flexibilização gradativa" do isolamento no outro. O mesmo secretário de saúde que anunciava a reabertura parcial de shoppings, exortava a população a "não ir aos shoppings para passear"... A temperatura política subia como a própria febre vermelha. Técnicos perderam cargos na esfera da saúde pública, substituídos por outros que pensassem mais de acordo com o poder dominante. Mas até estes ficavam pouco tempo nos cargos, não resistindo a interferências ideológicas num trabalho que deveria ser técnico. Aquilo parecia mais uma briga de torcidas do que um debate sério sobre medidas de enfrentamento da pandemia. E a briga, de fato, tornou-se literal em algumas manifestações onde muita gente aglomerada gritava contra a aglomeração de gente e era agredida por outros que queriam mais era se aglomerar, abrir as lojas, tocar a vida normalmente como se não existisse uma doença assolando o planeta. Nesse meio tempo o número de mortos e infectados aumentava exponencialmente, no Brasil e em todos os cantos do mundo. As viagens internacionais de turismo foram canceladas. Apenas viagens essenciais ainda eram permitidas. Aeroportos ficaram vazios, países com forte atrativo turístico como a França enfrentaram uma violenta recessão. Paris podia ter sido uma festa no passado como sugeria Hemingway, mas agora estava às moscas. O mesmo se viu em Roma, onde as celebrações do Papa começaram a ser transmitidas apenas pela internet, enquanto a Praça de São Pedro se assemelhava a um deserto. E as peregrinações papais pelo planeta foram suspensas até segunda ordem. Fronteiras se fecharam em todos os continentes.
No meio do caos que se formava, Amália enxergava um cenário de fim de mundo. Assustada, só sabia de uma coisa: precisava sobreviver e proteger aos seus, do jeito que fosse.
3 - Algumas situações desafiavam a lógica mais elementar. Um conhecido de Amadeu, que seguia todas as regras de isolamento e defendia a quarentena, pegou vermelhão e morreu em poucos dias. Outro, que achava tudo aquilo uma grande fraude criada para desestabilizar o governo, continuava andando tranquilamente pelas ruas, sem máscara ou qualquer outro cuidado, pregando o fim da quarentena. Vendendo saúde.
Amália ouvia aquilo do pai e só conseguia pensar que não havia nenhuma justiça na escolha das vítimas. E isso fazia o vírus ainda mais perigoso. No raciocínio simplório dela, se apenas os negacionistas ficassem doentes, pelo menos haveria alguma garantia de sobrevivência para quem se cuidasse. Mas nem esse arremedo de conforto o implacável H5N2 concedia.
O assassino era imparcial; politicamente neutro e ideologicamente eclético, sem preconceito de raça, preferência sexual ou religião. Matava entre os alarmados e os descrentes com a mesma eficiência.
Os dias se emendavam em semanas arrastadas. O tempo era lento enquanto se vivia, e parecia ter passado muito rápido quando se recordava o que se viveu, ao fim do dia no escuro do quarto. Toda rotina, todas as conversas fúteis, todas as providências em favor da própria sobrevivência, eram permeadas por uma sombra... um medo sem nome, uma desconfiança do futuro: o medo de morrer ou perder alguém querido para a doença nova que atacava indistintamente.
A tensão fazia companhia a Amália, seu pai, até mesmo o Riquinho, inclusive nos momentos mais descontraídos, como quando o menino jogava bola na rua com o avô ou Amália se permitia descansar um pouco diante da TV na hora da novela. O telejornal, já tinha desistido de assistir; era tanta morte, tanta doença e desgraça, que ela se sentia mal. O coração ficava apertado e a lembrança do marido no hospital doía demais. Não saber, naquele caso, era uma bénção. Tornava mais fácil fingir que não existia enfermidade, nem quarentena, nem desemprego. A fantasia era um conforto que a moça achava necessário, já que a realidade não cansava de lhe cuspir na cara.
As horas se seguiam. Os dias passavam, longos. E a despeito de qualquer tendência à alienação, a realidade se impunha, diariamente. Amália não conseguia emprego. O dinheiro da venda do caminhão, que deveria se tornar uma poupança, foi rapidamente consumido por uma inflação desenfreada. O vírus fazia a produção encolher por causa da quarentena e das regras de isolamento social, e com isso os preços subiam. As economias foram desenterradas do quintal muito antes do que Amália imaginava. Primeiro foi para acertar a conta da mercearia e acalmar um pouco os ânimos do credor, cada vez mais agressivo nas cobranças. A família gastou o dinheiro e prometeu que seria só daquela vez, para quebrar a promessa na semana seguinte comprando remédios para uma dor de barriga que atacou Alvinho de surpresa. Os berros da criança remoída de dores foram argumentos incontestáveis a favor do novo gasto. E assim, nos dias seguintes, sempre surgia algum motivo para recorrer de novo às economias tão zelosamente guardadas. No final, Amália não se dava nem ao trabalho de voltar a enterrar o que sobrava. Deixou tudo embaixo do colchão, acessível, e com essa mudança os saques se tornaram mais frequentes, menos urgentes, o dinheiro sendo usado para manter uma falsa normalidade na rotina da casa.
Até que acabou. E deixou ainda algumas dívidas sem acerto, como as contas de água e energia.
A procura por trabalho seguia urgente. Um ou outro bico de lavadeira surgia muito de vez em quando, e quando isso ocorria a família jantava. Nos muitos outros dias em que nenhum serviço aparecia, todos iam para a cama de barriga vazia.
Os quinze dias de suspensão de aulas foram prorrogados várias vezes, na medida em que todos notaram que a pandemia não dava sinais de arrefecer. Riquinho não parava em casa. Vivia na rua, andando com os outros moleques, ou sozinho. Logo no início daquela mudança, a secretaria de educação tinha avisado que disponibilizaria lições pela internet para todos os alunos manterem os estudos, mesmo à distância. O problema é que o sinal na casa de Amália não era dos melhores. O velho celular ficava travado, site girando como uma hélice, incapaz de abrir. Quando o pacote de dados acabou, nem uma única lição tinha sido baixada. Sem o que fazer em casa, Riquinho saía pela porta dizendo que voltava logo. Amália, com o bebê agarrado ao peito, não sentia disposição para exigir que o filho mais velho permanecesse a seu lado. Pelo menos ele se distraía um pouco.
Uma tarde, Riquinho voltou da rua com um maço de dinheiro nas mãos.
-Toma, mãe. É pra senhora.
Amália mal olhou para as notas e já agarrou a orelha do menino, dando um forte puxão enquanto ralhava com ele.
- Onde você arranjou esse dinheiro, seu moleque? Ah, que hoje eu te arrebento!
Riquinho tentava evitar o castigo, aos berros.
- Você roubou? - quis saber Amália.
Riquinho jurava que não, choroso.
- Me conta de uma vez o que você fez, peste!
Finalmente o menino confessou:
- Eu... ganhei.
Amália ficou fora de si de raiva. Então agora ganhava-se dinheiro por aí sem mais nem menos? Exigiu detalhes.
- Eu pedi, mãe. Pedi no semáforo, no centro - falou finalmente, com a orelha em fogo.
Amália ficou em choque. Soltou o filho e, por um momento, não conseguiu dizer uma palavra sequer. Ficou com os braços caídos ao longo do corpo, olhando para o filho que se encolhia perto da parede, os olhos meio vidrados e as sobrancelhas tensas.
Mendicância. Nunca tinha pensado numa coisa daquelas até aquele momento. Sentiu-se pequena, incompetente, um fracasso como mãe, como pessoa. As lágrimas se juntaram nos olhos mas não encontravam forças para rolar. A voz ficou morta e enterrada no fundo da garganta. Riquinho ficou agachado, choroso, com a mão na orelha ferida, olhando para a mãe com expressão revoltada. Demorou uma eternidade para Amália conseguir reagir.
- Você... fez o quê?
O filho não respondeu à pergunta patética. Ficou calado gemendo.
- Você... teve coragem...
- Melhor isso do que passar fome! - explodiu o menino, gritando. - O Alvinho precisa comer também, e se a senhora não se alimenta logo vai faltar leite pra ele.
A mãe avançou para ele com o braço erguido e a mão espalmada para um tapa que, no último segundo, não ocorreu. Amália deteve-se, olhou para o filho e pareceu entregue a uma enxurrada de sentimentos e frustrações que vinham se acumulando desde o início da Pandemia. Desde que o marido foi hospitalizado. Tudo de uma vez, como uma cachoeira sobre sua cabeça. Amália não sabia se estava irritada pela iniciativa tomada pelo filho, ou pelo fato de não ter sido ela quem primeiro buscasse aquela solução, mendigando o indispensável para a própria familia.
O tapa se transformou num afago. O afago, num abraço. O abraço, num choro convulso dos dois, ajoelhados entre o sofá e a mesa da TV.
Amadeu chegou, viu o que estava acontecendo, quis saber o motivo daquilo tudo. Foi informado da atitude do neto. Olhou para o chão e localizou as notas miúdas espalhadas. Juntou-as num maço, colocou no bolso e tomou a direção da rua.
- Vou comprar farinha e leite - comunicou, impassível.
4 - No hospital de campanha em Uberlândia Bernardo também lutava pela vida, porém de forma muito diversa. Inconsciente desde a internação, não tomava conhecimento das aflições por que passava sua família, nem dos esforços dos médicos para atender os pacientes de vermelhão que não paravam de chegar.
As previsões mais pessimistas do diretor clínico se confirmaram logo depois da chegada de Bernardo, ainda na primeira semana de funcionamento do hospital. Os leitos de UTI ficaram todos ocupados em três dias. Os de enfermaria sofreram uma lotação quase instantânea e desde então só ficavam vagos quando alguém tinha alta ou precisava ser transferido para a terapia intensiva - ou coisa pior. E para cada leito aberto na enfermaria surgiam pelo menos dez pessoas precisando de acomodação imediata. Era um trabalho ingrato escolher quem seria atendido. Que critério usar numa situação dessas ? Idade? Estado de saúde? Doenças correlatas? Ou simplesmente apostar em quem tivesse melhores chances de recuperação? No caso dos leitos de UTI, esta decisão era como uma condenação de morte para quem ficasse de fora.
O diretor clínico, assessorado por sua equipe médica, exercia esse poder de vida e morte sobre os pacientes praticamente todos os dias. Tentava não pensar nos pacientes que colocava em espera, nos que morriam aguardando um leito... fazia o possível para se concentrar nas altas, nos sucessos; mesmo assim o peso na consciência o assaltava todas as noites, impedindo seu sono e abrindo úlceras em seu estômago.
O doutor Salomão fez a ronda dos pacientes e anotou um saldo desolador. Dois mortos naquela manhã, e três pessoas com agravamento do quadro infeccioso. A emergência abarrotada de novos casos, que chegavam constantemente como uma torneira aberta vertendo água sem descanso. Salomão observava o esforço dos atendentes, auxiliares de enfermagem e enfermeiros. Admirava aquela equipe corajosa. Não sabia de onde tiravam forças para continuar, mas agradecia em silêncio pelo fato de não desistirem ou simplesmente enlouquecerem em meio àquele inferno.
A caminho da própria sala, encontrou a enfermeira rose, com olhar cansado, andando a passos rápidos em direção à ala de UTIs. Olhou para ela por trás dos óculos de proteção e notou que a funcionária não usava o avental descartável.
- Se existisse, doutor, eu usaria! - respondeu ela, ao ser perguntada sobre o fato. - Não sei se o senhor sabe, mas fizeram um racionamento de aventais no almoxarifado - acrescentou. Salomão sabia. Os aventais descartáveis passaram a ser usados por dois dias. Depois disso ficavam num estado tão deplorável que seria um perigo continuar com eles. Era o caso de Rose, que jogou o último avental fora mesmo não tendo outro para substituí-lo.
- Tá vendo essa máscara que eu tô usando? - perguntou Rose sem aguardar a resposta óbvia. - Então. Também era pra ser descartável... mas já lavei duas vezes. Tá até meio esgarçada. Depois dessa última ronda vai ter que ir pro lixo. Aí talvez eu consiga outra. Talvez não. Licença, doutor, a luz de alarme tá piscando no leito 15. - e saiu correndo.
Salomão a observou se afastando, mudo. Pensou que naquele suplício diário de lutar pela vida contra todas as expectativas, era especialmente angustiante lidar com colegas de profissão que caíam doentes. Aquilo representava um duplo desafio. Menos gente para ajudar, mais gente precisando de socorro. Ele percebia, nos olhares assustados de enfermeiros e médicos, que todos se enxergavam nos colegas que pegavam Dybbuk. Ali mesmo tinham dois enfermeiros internados. Em outro hospital, em Belo Horizonte, um médico figurava entre os pacientes entubados. Os que ainda resistiam conviviam com a dúvida de voltar para casa saudáveis ao final do plantão, e essa dúvida era mais massacrante do que o cansaço das muitas horas socorrendo doentes. A falta de insumos fazia o medo crescer, se materializar. Era concreto, tinha um motivo claro, residia nas gavetas vazias do vestiário onde os profissionais não encontravam os EPIs mais básicos.
Salomão bateu na porta do diretor e entrou antes de esperar a resposta.
- Acabo de encontrar uma enfermeira sem o avental e usando uma máscara descartável pela terceira vez.
O diretor se moveu na cadeira, ajeitando-se desconfortável. Pegou uma caneta na mesa e começou a tamborilar com ela sobre o laptop fechado, balbuciando.
- Vamos ver... vamos ver...
- Precisamos exigir mais equipamento, diretor. Ligar diretamente para o secretário de saúde, explicar que se continuarmos assim vamos todos ficar doentes, e não sobrará ninguém para atender os pacientes.
- É claro, é claro - respondeu o outro sem encarar o infectologista.
- Quando foi a última vez que recebemos uma remessa de máscaras, luvas, óculos protetores, aventais...? - perguntou Salomão.
O diretor abriu o lap top e digitou algo, esperando uns segundos. Depois respondeu:
- Três meses atrás. A entrega era para durar dois meses, portanto... faz pelo menos um mês que nossa equipe faz milagres pra conseguir algum material.
- O senhor pediu mais?
O diretor irritou-se:
- É claro que pedi. O senhor devia ler mais jornais, doutor Salomão. As notícias sobre falta de EPIs, remédios e até respiradores estão em todas as manchetes, no noticiário da noite, nos flashes do rádio. Dinheiro até existe, mas onde encontrar o necessário? Simplesmente não existe. Mal são fabricados, os produtos de enfermaria já se esgotam, nem chegam aos depósitos. Não tenho como me transformar em equipamento de trabalho!
Salomão pensou em retrucar, mas desistiu. Sentou-se pesadamente diante do diretor, olhos vazios fixados em algum ponto da parede atrás do chefe. Ele também estava cansado, frustrado... de nada adiantaria despejar todo o azedume que trazia na alma sobre o diretor clínico. Estavam ambos no mesmo barco.
E o barco afundava.
O infectologista saiu da sala e foi direto para a ala de UTIs. Encontrou o leito 15 vazio. Imediatamente entendeu o que aquilo significava. As serventes trocavam a roupa de cama enquanto os aparelhos eram esterilizados para serem usados por um novo paciente, que já aguardava. Salomão olhou para dentro do cubículo e pensou que não havia nem mesmo tempo para o luto ou o pesar. Era preciso seguir em frente. Continuou andando até o leito destinado ao caminhoneiro, um dos primeiros internados no hospital. Como era mesmo o nome dele? Bernardo Silva. Olhou para o prontuário no pé da cama. Nenhuma mudança no estado de saúde.
Talvez fosse melhor transferir Bernardo para outro hospital, mais voltado para o quadro atual dele... mas onde conseguir uma vaga? Estavam todos lotados por causa da pandemia. Aquele era um fardo que a equipe do hospital de campanha deveria carregar até o fim. Salomão chegou à conclusão de que era hora de suspender a respiração artificial e o coma induzido e ver como o paciente reagiria. Bernardo já estava ali há meses, a virose já tinha sido debelada. Não havia mais o que fazer em termos clínicos, a não ser esperar que ele acordasse. Conversaria sobre isso com o diretor numa próxima oportunidade.
Mas agora era preciso sair em socorro de mais um paciente que era encaminhado da emergência para a UTI com a pele do rosto vermelha, espasmos de asfixia e convulsões. O médico correu para ajudar, já esquecido do caminhoneiro que seguia mergulhado na inconsciência.
- Leito 15 - orientou Salomão.
Às seis da manhã, no final do plantão, a enfermeira Rose Dumond se colocou embaixo do chuveiro e deixou a água morna escorrer por todo seu corpo. Cansada demais para sentir algum prazer naquele ato relaxante, quase dormindo em pé depois de 24 horas de trabalho. Cabeça baixa, olhos fechados, apenas ouvia o agradável ruído da água batendo em sua cabeça, seu pescoço, seus ombros, e indo até o chão do banheiro no vestiário feminino.
A equipe estava reduzida por baixas causadas pelo vermelhão, o que tornava aqueles plantões mais longos e penosos. Técnicos de enfermagem, enfermeiros, pessoal de limpeza e dois médicos tinham contraído a doença e estavam afastados, ou em quarentena e isolamento em casa, ou internados naquele mesmo hospital onde, até pouco tempo atrás, atendiam os pacientes.
Depois do banho, Rose vestiu-se e saiu para a rua. O ponto de ônibus não era longe, mas o caminho até em casa era longo e desconfortável. Ela já previa as desventuras que ainda enfrentaria antes de ter direito ao merecido descanso. O hospital de campanha fica no bairro Presidente Roosevelt, zona norte de Uberlândia, afastado do centro. Rose mora no Luizote de Freitas, zona oeste, e para chegar lá precisa atravessar a região central. Todos os dias toma o transporte público, atrasado e lotado, até o terminal central, onde pega outro coletivo que a leve até o Luizote II. Pelo caminho, muitos sacolejos em ruas esburacadas da periferia, um calor sufocante dentro do veículo de janelas normalmente emperradas; sem falar no inconveniente de um ou outro engraçadinho tentando se aproveitar da lotação para tocá-la de forma asquerosa.
O sol estava alto já tão cedo e o calor se anunciava pelo asfalto e pela calçada sem árvores. Rose suspirou enquanto andava devagar, cabisbaixa. Sentia que aquela luta estava perdida, não encontrava sentido em seu esforço pessoal por salvar vidas - não depois de uma jornada de um dia em que perdeu dois pacientes e ficou sabendo de outros tantos colocados em espera pela regulação, por falta de vagas. As unidades de saúde dos bairros estavam transbordando de casos suspeitos de Dybbuk e nem adiantava vir direto para o hospital de campanha. Apenas a regulação podia encaminhar pacientes oriundos da saúde básica.
Ao se aproximar do ponto de ônibus, notou que algumas pessoas que esperavam transporte olhavam para ela com expressão estranha. Os olhos por trás das máscaras mostravam apreensão, medo, talvez repulsa. Uma mulher de cabelos pretos e óculos se afastou à medida que Rose chegava mais perto. Outra, ao lado dela, baixa, gorda, cabelos amarelos, assumiu uma postura tensa e agressiva, toda retesada como um bodoque prestes a disparar uma pedra. Disse em voz alta, para que os outros ouvissem:
- Você não vai pegar o ônibus aqui, né, minha filha?
Rose, muito cansada, julgou não ter entendido o que a mulher disse. Ficou olhando para ela sem dizer nada. O ônibus se aproximava, e a enfermeira deu um passo adiante para embarcar. Nesse momento a loira baixa levantou o dedo em riste, a um palmo do nariz de Rose, e começou a esbravejar.
- Ah, não! Pode parar, ou melhor, dá meia volta e some daqui! Sua imunda!
O espanto fez com que o sono abandonasse Rose imediatamente, e ela abriu muito os belos olhos verdes, surpreendida por aquela agressão.
- Estou te reconhecendo! Você trabalha naquele hospital, aquele ninho da enfermidade. Tá cheio de vírus lá dentro e agora você vai querer passar isso pra todos nós aqui no ônibus? Não senhora!
Rose tentou começar a explicar que fazia uma assepsia completa antes de sair para a rua, depois do trabalho, mas a outra não quis conversa. Interrompeu a enfermeira com um sonoro tapa na cara.
O choque foi tão grande que Rose não conseguiu reagir. Os outros passageiros no ponto, alguns dando sinais de apoio à loira baixinha, outros visivelmente constrangidos, ficaram calados. Ninguém tomou a defesa da enfermeira.
Rose viu todos embarcarem e o ônibus se afastar, barulhento.
Só depois, no ponto deserto, conseguiu chorar.
5 - Distraída com a tigela de leite com farinha, olhando para a TV com Alvinho no colo, Amália ouvia música sertaneja no rádio. O estilo musical lamentoso, narrativo, revelando dores de amores impossíveis e rejeições sentimentais, tinha o poder de tirá-la um pouco daquela realidade amarga que a cercava. O pai, que a acompanhava naquela refeição miserável, cansou-se de ficar ali sentado ouvindo Bruno & Marrone e resolveu ligar a TV. Era hora do noticiário da noite.
Contrariada, Amália desligou o rádio. Acabou prestando atenção aos fatos que apareciam na tela. Números da infecção na cidade, no estado, dados alarmantes sobre ocupação de leitos de UTI e ameaça de colapso do SUS, incapaz de atender a todos os pacientes graves que chegavam. Como já esperava que acontecesse, as notícias a deixaram ainda mais deprimida. Levantou-se para ir ao único quarto da casa, tentando fugir daquela enxurrada de catástrofes, quando uma imagem na TV chamou sua atenção. O prédio em que ela trabalhava como diarista, de onde fora expulsa pela esposa do patrão assediador, mais de um mês antes. O que teria acontecido ali para o lugar aparecer no jornal da noite? Aproximou-se do televisor e ficou atenta ao que o repórter falava.
"A mulher, de 34 anos, chamava-se Laura Vidigal. Ela caiu de uma altura de 12 andares e morreu. O marido dela, Gumercindo Vidigal, um conhecido empresário daqui de Goiânia, foi preso em flagrante, suspeito de ser o autor do crime".
Amália custou a entender o que ouvia. Seus antigos patrões! Ela morta, ele preso. Não conseguia acreditar. Chocada com a terrível novidade, cogitou em silêncio, envergonhada e assustada, se aquela brutalidade tinha alguma ligação com a cena que a mulher tinha presenciado no dia em que a demitiu. Era só o que faltava: a polícia achar que ela era culpada de alguma coisa e levå-la presa. O pânico a impediu de ver o absurdo daquela hipótese. Para Amália, ser acusada de culpa no homicídio da ex-patroa seria apenas mais uma na lista extensa de injustiças que a acometeram nos últimos tempos.
Aquele crime tinha acontecido horas antes, no meio da tarde. O investigador Rangel, encarregado do caso, um policial de longa data com muita experiência, notou logo nos primeiros momentos na cena do crime que algo fora do comum havia acontecido. Um homem matar a esposa não era propriamente uma raridade naquela cidade machista, onde muitos se achavam donos das mulheres, com direito de fazer delas o que bem entendessem. Não era o crime que lhe despertava o instinto investigativo, mas as circunstâncias em que ele havia sido cometido.
"Casal feliz, educado, discreto, nunca deram um probleminha aqui no condomínio", disse o porteiro, ansioso por jogar conversa fora. A mesma impressão tinha a vizinha do apartamento ao lado. "Moro aqui há 10 anos e nunca ouvi um pio no apartamento deles. Nunca um bate-boca, uma discussão, que dirá uma briga com tapa e tudo mais!". Naquele dia tudo que a vizinha ouviu foram gritos ininteligíveis do casal, seguidos de um silêncio que logo foi quebrado pelo alarido dos moradores apavorados na área de lazer.
O investigador tinha consultado os antecedentes do marido na delegacia. Não havia achado sequer multa de trânsito por pagar. Aquilo era intrigante: em quase todos os casos de feminicídio, a violência não se limita ao crime, isoladamente, mas vem numa esteira de constantes agressões. Algumas vezes começam com ironias maldosas, depois humilhações verbais e, finalmente xingamentos, tudo isso antes de qualquer empurrão, tapa ou agressão física mais extrema. Mas naquele caso a natureza do crime estava fora do padrão. Foi um ato surpreendente, ao que tudo indicava isolado e pleno de agressividade. O marido, como já foi dito, não tinha nenhum registro anterior de violência contra a mulher, e todos que o conheciam no prédio afirmavam categoricamente que não se tratava de um abusador. Claro que isso não era garantia de que ele jamais tivesse erguido a mão contra a esposa. Alguns agressores são mestres em despistar as pessoas e ocultar seus atos, auxiliados muitas vezes pelas próprias vítimas que, por motivos os mais diversos, não apenas não denunciam como até ajudam a encobrir as violências de que são vítimas. "Nunca vi dona Laura de óculos escuros, muito menos de olho roxo ou lábio partido", garantiu o síndico do prédio. "Estava sempre muito elegante, muito bonita, sorridente... Estou lhe dizendo, doutor, se tem alguém que eu apostava de olho fechado que nunca mataria nem uma barata, era o Seo Gumercindo, ainda mais a própria esposa. Isso é uma tragédia, meu Deus".
O investigador estava na área de lazer do prédio, entre a ala de churrasqueiras e a quadra de esportes, tentando juntar as partes daquele quebra-cabeças. Olhava para o local onde Laura tinha caído. O sangue espalhado, alguns resíduos de tecido cerebral, um cheiro adocicado que ele conhecia muito bem. Olhou para cima em direção ao apartamento do casal quando sentiu o celular vibrar. Era o perito. "Tenho que te avisar que o suspeito nem chegou na delegacia pra fazer o exame de corpo de delito antes de ser preso", declarou. O investigador imaginou que algum figurão tinha conseguido a liberdade do cara, contrariando todas as regras. Não era esse o caso. "Tivemos que desviar direto pro pronto-socorro. Você viu que foi difícil botar o sujeito na viatura, ele socava o ar pra todo lado, acertou um murro num dos guardas e chutou todo mundo. Bom, a caminho da delegacia ele começou a estrebuchar, babar como um cão raivoso, se debater, totalmente fora de controle. Foi difícil segurar ele, um dos policiais usou o taser e ainda assim o cara demorou a apagar. O coração acelerou. E o senhor deve ter notado", comentou o perito "que a pele do rosto dele tava vermelha como um tomate. Até parecia que ele tava com vermelhão". Sim, isto era outra coisa que tinha chamado a atenção do investigador. Ele tomou o elevador, foi até o apartamento e entrou pela porta já aberta. Pediu à empregada que não tocasse em nada e fez uma rápida inspeção pelos cômodos confortáveis e luxuosos do imóvel. A diarista nao tinha presenciado nada. Quando chegou para fazer a faxina a policia ja estava no predio e o suspeito ja tinha sido levado dali.No banheiro o policial encontrou uma caixa de remédio para hipertensão. A empregada, contratada há poucas semanas, esclareceu que aqueles comprimidos eram da esposa, que o patrão tinha uma saúde perfeita. Isto descartava a hipótese de que a vermelhidão no rosto do suspeito fosse causada por um ataque de pressão alta.
Ele saiu do banheiro e foi mais uma vez até o quarto de onde a mulher tinha sido jogada, e onde um assistente da perícia terminava seu trabalho. O policial se aproximou da janela, ainda aberta, e olhou para baixo, para a mancha vermelha em forma de estrela assimétrica que se formou no calçamento, perto da quadra de esportes. Uma queda e tanto, mais de trinta metros segundo os cálculos iniciais do perito. Morte instantânea.
O investigador olhou para o batente da janela, onde ainda permanecia pendurada a rede de proteção, segura apenas por dois ganchos. Todos os outros haviam sido arrancados. O perito garantiu que não foi um trabalho prévio; não havia sinais de que os ganchos tivessem sido escavados antes de serem arrancados: os grampos tinham se soltado violentamente da parede, levando consigo pedaços do reboco e dos blocos de concreto, provavelmente no momento exato do crime. "Seria preciso uma força fora do comum pra causar um estrago desses", disse o técnico ao investigador, que olhava de novo para os ganchos remanescentes. Tentou arrancar um deles com um puxão e constatou que isso era impossível. Algo pesado tinha sido arremessado com força extraordinária contra aquela rede, provocando o rompimento dos ganchos. "O corpo da vítima, provavelmente", concluiu. Estranhamente, o suspeito não fazia o tipo musculoso. Nada no porte do homem indicava tamanha energia. O investigador encontrou no quarto alguns halteres e instrumentos de ginástica, mas soube pela empregada que o patrão só usava aquilo de vez em quando. Certamente ele não era nenhum exemplo de vigorexia. "Apesar disso, tinha resistido à prisão com uma fúria impressionante, derrubando um dos guardas e quebrando o nariz de outro", lembrou-se.
Não havia mais o que fazer na cena do homicídio. O policial resolveu ir até o hospital. Só faltava esclarecer o motivo do crime, e isto poderia ser tirado diretamente do assassino num interrogatório, assim que ele se acalmasse. "Hoje acho difícil o senhor falar com ele. O homem está sedado e assim deve ficar por pelo menos algumas horas. Os sinais vitais dele estão uma bagunça completa, respiração e batimentos irregulares, pressão altíssima... Foi difícil estabilizá-lo, e agora temos que dar um tempo para que ele se recupere..." O médico plantonista ainda falava quando foi chamado com urgência. Gumercindo teve um infarto. O investigador ficou do lado de fora da sala de emergência, aguardando.
Meia hora depois o médico voltou. "Você não vai conseguir uma confissão desse aí, doutor. Ele acaba de falecer". O médico não quis arriscar uma causa da morte, não tinha visto um surto daqueles em seus 15 anos de carreira. "Não sei se pode ser dybbuk", respondeu o médico à pergunta do policial. "Não tenho notícia de quadros psicóticos associados ao novo influenza. Mas vou pedir um exame completo, inclusive para saber se ele tinha o vírus H2N5 modificado". O médico se afastou rapidamente sem se despedir, cobrindo o rosto com a máscara e os óculos, já ocupado com outro paciente que chegava em estado grave, este sim com os sintomas clássicos de vermelhão.
Depois daquela reportagem tenebrosa vista no noticiário noturno horas depois do crime, do outro lado da cidade, Amália cuidava do filho menor. Aquela tem sido sua ocupação fundamental. Sempre com Alvinho nos braços ou agarrado ao seio, com fome. Nesta noite quente e seca, faz isso como um autômato, inconsciente dos gestos mecânicos que realiza para dar conforto e segurança ao bebê. O pensamento vaga longe, pelos arredores do antigo emprego, dos antigos patrões, agora uma morta e um preso, e ela sentindo-se culpada daquela desgraça sem nem entender por quê. Claro que não poderia ser culpa dela, já há tanto tempo expulsa daquele apartamento com um cachorro sarnento. Ao mesmo tempo algum gênio ruim sopra em seu ouvido que o motivo do assassinato foi um ciúme tardio da esposa, talvez interpelando o marido sedutor até esgotar-lhe a paciência e ele, num arroubo totalmente fora de sua natureza, agiu sem pensar, rápido e fulminante, matou-a.
Assim se angustia Amália com Alvinho dormindo placidamente nos braços. Do outro filho, Riquinho, tem cada vez menos notícias. O menino ganha o mundo logo que se levanta, volta quando o sol já se despede, no meio desses dois intervalos faz sabe Deus o quê - além de mendigar, que tem se tornado uma rotina.
Nesse momento, por exemplo, a mãe não sabe, mas o filho se encontra com o colega de escola de apelido Bacuré, que os professores chamam pelo nome de Carlos, o mau elemento agressivo e intimidador que tantos transtornos causa na escola, e também em casa. O mesmo que levou uma sinistra surra do pobre Julio, o tímido garoto vítima de bullying que, como último ato antes de morrer misteriosamente de uma doença agressiva e não identificada até então, resolveu despejar todas as amarguras que carregava no peito sobre o rosto sardento de Bacuré. Este, ainda agora, traz um afundamento no rosto, resquício da briga com Julinho.
Mas este espancamento, que bem poderia ter um efeito instrutivo sobre um espírito mais suscetível, na verdade não contribuiu em nada para atenuar o caráter combativo, amoral e violento de Bacuré. Pelo contrário, o pequeno aprendiz de marginal tomou a surra como uma humilhação e, se não tivesse Julinho falecido no hospital, certamente buscaria contra ele sua vingança, como gosta de alardear sempre que se encontra entre os colegas que testemunharam aquela briga. "Teve foi sorte de me pegar desprevenido, se fosse hoje apanhava que nem cão vadio", proclama em altos brados. O fato de seu adversário não estar mais entre os vivos certamente lhe inflama a coragem.
Mas neste momento Bacuré não dispõe de grande plateia para suas bravatas. Apenas o Riquinho está com ele, os dois escondidos num terreno baldio, atrás de um mato sem capina. Os dois conchavam, combinam, planejam. Não querem mais passar o aperto causado pela pandemia, não querem mais contar centavos para ter o que comer, ou ficar sem jantar para que pudessem tomar café da manhã no dia seguinte. Cansaram-se de dividir o mesmo pão dormido com todos os outros de suas respectivas casas. São parceiros na miséria e conhecem bem as angústias de não ter o necessário, o indispensável para viver com dignidade. Esse sentimento os irmana, mesmo sendo duas criaturas de tão diversa personalidade. Riquinho, calmo, obediente, bondoso... Bacuré, já se vê, não é nada disso e muito pelo contrário.
- Não tira a mácara não, Bacuré, olha a doença aí.
- Ah, essa porra não me deixa respirar... Você quer ver o que eu trouxe ou não?
- Quero, claro, estou aqui pra isso - responde Riquinho.
- Calaboca e se abaixa! - sussurou Bacuré.
Uma viatura da PM cortava a escuridão da rua com um holofote, iluminando para um e outro lado alternadamente. Os dois moleques se espremeram atrás do capim alto bem a tempo de evitar o facho de luz que incidiu sobre onde estavam. O veículo nem reduziu a marcha, seguiu lentamente adiante, seus ocupantes ignorantes da presença dos meninos. Passado o susto, Bacuré levantou-se cauteloso e foi até a beira do terreno, perto da calçada. Olhou para o rumo tomado pela polícia e, ao notar que tinham seguido viagem, relaxou imediatamente. Voltou correndo para perto de Riquinho, "vem comigo", Riquinho levantou-se e seguiu o outro mais para o fundo do terreno. A única luminosidade vinha da lanterna do celular de Bacuré, e apesar dela, tropeçaram em latas, pedaços velhos de papelão, um saco plástico com lixo dentro, um amontoado de cinzas que pareciam os restos de uma fogueira, e outras porcarias mais, os narizes atacados por uma nauseante fedentina.
- Que imundície - reclamou Riquinho.
- Larga de ser maricas e vem logo - disse Bacuré.
Quase no fundo do terreno, onde um muro fazia divisa com uma casa de telhado aparentando precisar de reparos urgentes, Bacuré se abaixou. "Segura o celular e aponta a luz pra cá", ordenou. Riquinho obedeceu, a curiosidade crescendo. Havia no chão uma caixa feita com ripas de madeira, um grande rótulo com tomates estampados colado na lateral. Bacuré afastou a caixa vazia. Embaixo dela, umas pedras amontoadas que também foram retiradas apressadamente. Por baixo, a terra. Bacuré usou as mãos para escavar por alguns minutos, até que seus dedos esbarraram num balde de plástico com tampa, todo amarelo, escrito "Vedacit". Um balde de argamassa comum. Bacuré tirou aquilo do buraco e ficou segurando diante de Riquinho, um sorriso de satisfação nos lábios. Riquinho perdeu uns segundos olhando o companheiro, esperando uma atitude, "você me chamou aqui pra ver um balde de argamassa?", perguntou contrariado. Sem responder nada, Bacuré abriu a tampa do balde, enfiou a mão dentro e a tirou logo em seguida, trazendo junto um embrulho de pano.
Riquinho apontou a luz para as mãos de Bacuré enquanto ele desenrolava os panos, e quase caiu para trás de susto quando viu o que tinha no embrulho.
- Caralho, Bacuré, onde você descolou isso?
- Tenho um tio que é metido na bandidagem, traficante de renome lá pros lados do Finsocial, no setor noroeste. Descobri onde ele escondia esse "cano" e peguei quando ele não estava olhando.
Bacuré exibia orgulhoso um revólver calibre 38 com seis munições intactas. As balas estavam dentro de uma caixinha de sabonete. A arma, de um cromado impecável, rebrilhava sob o fio da lanterna do celular. Era uma beleza, sem dúvida. Riquinho ficou fascinado.
- Você não faz ideia do trabalhão que deu sair da casa do Tio Valmor com esse berro, e andar mais de cinco quilômetros com ele escondido debaixo da camisa sem ninguém notar. lá do Finsocial até aqui no Itamaracá. Ele tava carregado, eu que tirei as balas por segurança e guardei aqui junto nessa caixinha.
Bacuré narrava aquilo como um cavaleiro andante cantando as trovas do salvamento de uma donzela: cheio de orgulho e entusiasmo. Seus olhos brilhavam igual criança radiante com um brinquedo novo. Seria uma cena quase doce, não fosse assustadora. Riquinho ficou como que hipnotizado, completamente fascinado pela visão daquele objeto mortífero, detentor do poder de vida e morte. O medo não superava o encantamento, mas ainda assim ele relutava em tocar a arma, como se fosse receber um castigo divino por tal pecado.
- Pode pegar que ele não morde. Tá sem balas, já disse.
Riquinho acabou empunhando o revólver, sentindo o peso dele em sua mão, passando para sua corrente sanguínea uma injeção de força e poder, como um alucinógeno. Uma sensação assustadora, até certo ponto angustiante, mas nada ruim. O menino apreciou aquele primeiro contato. Algo que o marcaria para sempre e teve papel determinante na mudança que sofreu em sua vida, ainda tão no início.
6 - Enquanto os pequenos ainda que dolorosos dramas domésticos angustiavam Amália e sua família, o monstro da Pandemia continuava seu rastro de destruição pelo planeta afora. Um dos efeitos colaterais mais nefastos, ela, uma simples dona-de-casa separada do marido pela doença, conhecia na pele: uma incapacidade de se manter economicamente ativa, uma miséria que devorava tudo, neutralizava todos os esforços, fechava todas as portas. A pandemia derrubava empresas sem distinção de segmento de atividade ou tamanho, desde a mais humilde lojinha de bairro até grandes corporações de commodities, exigindo redirecionamentos de estratégia, mudanças de comportamento, criatividade gerencial - e nem com tudo isso, garantindo a sobrevivência financeira dos setores produtivos.
O Governo, que preferia ficar de fora dessa crise monumental, se viu obrigado a agir. Primeiro tentou minimizar os efeitos da nova doença e estimular a manutenção das atividades econômicas no mesmo ritmo pré-pandemia.
Foi uma catástrofe.
Logo o número de contaminados, doentes nos mais variados níveis de gravidade, lotaram a rede pública de saúde e obrigaram os hospitais privados a abrirem suas UTIs para quem precisasse, e não apenas a seus associados.
Diante do desespero que se formava, o plano foi oferecer uma ajuda financeira para a legião de desempregados e falidos que se formou: para os empresários criou-se uma linha de crédito popular a juros baixos e, supostamente, com poucas exigências de garantias de reembolsos. O novo programa recebeu um nome pomposo: "Meu Negócio de Vento em Popa". Mas, além do nome chamativo e propagandístico, pouca coisa mais funcionou na nova carteira de empréstimos. As regras se mostraram leoninas e impraticáveis para quem, como Amadeu, estava com o pires na mão há muito tempo. Os bancos particulares foram convidados a gerenciar os recursos, e os trataram com o mesmo zelo ganancioso que dispensavam às contas normais de clientes mais bem situados na vida. Amadeu tentou um empréstimo para manter as despesas mínimas do boteco fechado, aluguel e um mínimo estoque para quando pudesse reabrir o comércio. Mas acabou se perdendo no labirinto de regras, pedidos de fiança e contrapartidas.
Não conseguiu nenhum centavo.
Os trabalhadores informais, recém-desempregados e profissionais autônomos não tiveram melhor sorte, em grande parte. Também para este grande grupo de necessitados foi criado um outro programa de nome bonito, sem dúvida considerado a obra-prima da genialidade do Departamento de Propaganda da Presidência da República; "Quarentena sem Problema". Seria pago em três parcelas mensais de R$ 599 por mês. Mas as regras e exigências para receber a ajuda eram tão complicadas quanto as do "Meu Negócio de Vento em Popa". Tanto que muita gente se perdia diante do computador, tentando preencher os formulários virtuais e reunir as provas de carência necessárias. Uma grande quantidade de gente procurou diretamente os bancos oficiais em busca de esclarecimentos sobre as regras ou tentando reverter eventuais negativas para os pedidos de liberação do dinheiro. Neste processo, provocavam filas, aglomerações, tumultos - e risco iminente de contágio.
Amália também tentou a ajuda, digitando com dificuldade as informações no seu velho celular de internet ruim. Foram muitas tentativas, com o sinal caindo em diferentes momentos do processo, até que ela conseguiu enviar todos os dados exigidos. Mas aquilo não foi o fim do suplício. O ser inanimado possuidor de forças insuspeitadas e aparentemente ilimitadas, conhecido pelos simples mortais como "sistema", simplesmente recusou o dinheiro, informando que outra pessoa da família dela já tinha pedido aquela ajuda e isto era contra as regras do programa. Amadeu, seu pai, garantiu que não era ele - tinha tentado apenas o empréstimo para pequenos comerciantes. E Riquinho não tinha a mínima condição de fazer tal requerimento; menos ainda o bebê Alvinho, desnecessário dizer. "Será que Bernardo saiu do coma é já está pedindo dinheiro pro governo sem eu nem saber?", pensou Amália. Mas uma rápida ligação para o hospital de campanha em Uberlândia derrubou essa vã esperança.
Nova tentativa, nova recusa do "sistema", essa criatura conjurada em rituais blasfemos pelos inalcançáveis deuses da burocracia; esse monstro colocado mais além do bem e do mal do que jamais poderia supor o pai de Zaratustra . Dessa vez o motivo para a recusa foi tão absurdo que Amália quase riu entre as lágrimas de desespero: leu e releu na tela do celular, para ter certeza do que estava escrito. Em letras brilhantes, o programa informava que ela não tinha direito ao recurso federal por "ocupar cargo eletivo no Poder Executivo, a saber, Presidente da República".
Se era uma brincadeira, era de péssimo gosto. Amadeu, cansado de ver a filha tentando um milagre naquele programa inescrupuloso, resolveu fazer algo que estava relutando há algum tempo: colocou o balcão do bar, que afinal de contas estava mesmo fechado há muito tempo, à venda, assim como a estufa de salgados e o freezer. Mas a venda tampouco foi tarefa fácil. O interesse dos possíveis compradores foi mínimo e a necessidade, uma inimiga do bom negócio. O preço dos itens foi caindo vertiginosamente, até o limite do aceitável. Quando finalmente encontrou um comprador, Amadeu ainda teve que se submeter a um pagamento parcelado, que pouco mais pode fazer pela família do que evitar a fome absoluta por um curto espaço de tempo. No fim das contas, os programas de auxílio conseguiram apenas piorar a situação de Amália e seu pai: além de não obterem um centavo sequer, ainda gastaram consideráveis reservas de energia correndo atrás de miragens.
Enquanto isso surgiam denúncias de servidores públicos remunerados pelos estados ou prefeituras que eram incluídos ilegalmente nas liberações do "Quarentena sem Problema", e fraudadores que surrupiavam o dinheiro usando dados de pessoas realmente necessitadas. Foram muitos os que reclamaram que, quando se cadastraram para receber o auxílio, foram informados pelo onipotente "sistema" que já tinham sido pagos. Uma sindicância foi anunciada para apurar como os golpistas tiveram acesso aos dados desses cidadãos - sem muita esperança de sucesso.
Aparentemente alheia a todas essas mazelas, a propaganda oficial anunciava em horário nobre a liberação de milhões de reais para os necessitados, vangloriando-se de ter criado "o mais eficiente e abrangente programa social da história desse país".
Amália só queria saber onde estava a parte dela naquela enxurrada de dinheiro.
7 - Poucos dias depois do crime no prédio, o investigador Rangel recebeu uma ligação do perito criminal. Foi tratado com deferência, não só por ser um policial considerado experiente e hábil, mas também pelo fato de ser viúvo há algum tempo, sem filhos, vivendo recluso quando não está a trabalho; e pela idade que aparenta ter. Próximo dos 50 anos, o detetive Rangel se apresenta como um quase ancião. Olheiras constantes, cabelos que começam a apresentar a predominância do cinza-prateado, roupas fora de moda e surradas dão a ele um ar de senhor de idade. A única circunstância que quebra esse padrão é seu porte físico ereto, sem sinais de obesidade ou desvios de coluna.
- Seu Rangel, saiu o exame que me pediu. O assassino tinha Dybbuk como o senhor suspeitou.
O policial ignorou o tratamento que normalmente lhe desagradava. Ser chamado de "senhor" até por pessoas mais velhas sempre o incomodou, mas um belo dia acabou cansando de pedir para as pessoas dispensarem o pronome cerimonioso: "você" estaria muito mais de acordo com sua idade e modo de relacionamento.
- Dá para saber há quanto tempo ele estava doente? - quis saber Rangel.
- Não encontrei anticorpos, e sim o próprio vírus. Normalmente a coloração avermelhada na pele aparece entre três e 15 dias depois do contágio. Relativamente rápido, mas com um espectro muito grande de tempo até a manifestação do sintoma. Portanto, se alguém no prédio ou no trabalho já tivesse notado o vermelhão...
- Ninguém comentou isso nos interrogatórios que fiz.
- Então o melhor que posso lhe dizer é que ele pegou o vírus entre seis e dezoito dias atrás, supondo que tenha sido um caso típico. Mas é impossível saber se no corpo dele o H5N2 agiu mais rápido ou mais devagar do que na média mundial.
- E sobre aquela agressividade extraordinária, possível ampliação da força física, isso pode ter tido alguma relação com o contágio? - perguntou Rangel.
- Essa é a parte mais interessante - respondeu o perito, fazendo um silêncio dramático. - Como o médico que atendeu Gumercindo no pronto-socorro lhe disse, até hoje, não há nenhum vínculo do H5N2 modificado com mudanças bruscas de personalidade. Mas eu fui fuçar - o termo desagradou Rangel, logo imaginou o perito literalmente "destrinchando" o cérebro do suspeito com um bisturi afiado. Ao contrário de muitos de seus colegas, a sala de autópsia nunca foi um lugar em que Rangel conseguisse ficar à vontade. Por isso pedia os relatórios de autopsias por escrito, juntados ao inquérito e, sempre que possível, que as informações mais importantes lhe fossem antecipadas por telefone. Era este o caso neste momento.
- O fato é que - continuou o legista - Eu descobri uma alteração significativa no eixo hipotálamo-hipofisário, que enviou uma descarga de estímulos fora do comum para as glândulas supra-renais, causando um jorro de adrenalina na corrente sanguínea do suspeito.
- Traduz pra língua de gente, Danilo! - reclamou Rangel.
- O que lhe interessa saber, seu Rangel, é que tinha uma parte do cérebro do sujeito que estava totalmente deformada, inchada, como se tivesse sido superexcitada. Só vi algo parecido em algumas autópsias de viciados em estimulantes poderosos... mas ao que consta o morto não usava nada além de uns drinques ocasionais. Fiz mais exames e encontrei uma concentração considerável de vírus H5N2 no hipotálamo e na glândula hipófise. A própria anatomia desses órgãos estava adulterada. Não encontrei nenhuma outra fonte possível, a não ser a descomunal colônia de vírus nesta parte da cabeça. Isso me leva a crer que os vírus podem ter causado uma mudança na química do cérebro, e a química do cérebro é a fonte do equilíbrio. Qualeuer desvio pode produzir uma infinidade de efeitos colaterais.
- Resumindo...
- Resumindo, seu Rangel, apesar da literatura escassa que existe sobre a Dybbuk não fazer nenhuma menção a isto; apesar do próprio "descobridor" da doença não ter levantado esta hipótese; apesar disso tudo, a Dybbuk pode não ser apenas uma doença respiratória, mas uma doença sistêmica - ou seja, que afeta mais de um órgão do corpo humano. E nesse caso, o vírus escolheu muito bem o seu alvo: o sistema nervoso central. E sim, antes que o senhor me pergunte, a Dybbuk pode ter causado a explosão de violência e até ampliado a força do assassino, transformando-o numa espécie de "trem descarrilado".
- Mas por que nem todas as vítimas de vermelhão apresentam essa agressividade exacerbada? - perguntou o detetive.
- Pelo mesmo motivo que algumas pessoas são fulminadas pela gripe, e outras sentem apenas um leve mal estar ou nem isso - respondeu o perito sem se apertar. - Mesma razão por que alguns sucumbiam à Aids em poucos meses depois do diagnóstico, e outros passavam anos assintomáticos até o aparecimento da primeira doença oportunista.
Rangel ainda ouviu pacientemente o relato entusiasmado do legista sobre o estudo que estava começando a redigir naquele momento, descrevendo suas descobertas para uma revista científica; ouviu também sobre o pedido que Danilo faria a outros colegas pelo país inteiro que verificassem as condições epidemiológicas de mortos que necropciaram recentemente em situações parecidas com as de Gumercindo: mortos logo depois de ataques de histeria e violência, pele avermelhada principalmente no rosto e nas mãos, sem antecedentes de doença mental ou drogadição. "Tenho esperança de encontrar outros casos iguais ao meu, em que meus colegas encontrarão a mesma alteração cerebral que acabei de lhe descrever", exultou-se.
Se o colega estivesse correto, a confirmação científica só viria em anos. Por enquanto, pelo menos, não passava de uma resposta plausível para a motivação do assassinato de Laura Vidigal, um consolo parcial para a curiosidade do investigador.
- Talvez você ainda bote seu nome em alguma doença, "Síndrome de Danilo"... - brincou Rangel.
Mas o legista não considerou aquela afirmação de modo algum uma brincadeira e imediatamente começou a sonhar com fama e glória, quem sabe até dinheiro.
8 - O que o legista não tinha como saber é que a mesma suspeita levantada por Rangel também despontava em outras partes do planeta. Em alguns lugares, onde a violência estava mais presente no cotidiano das pessoas, as aberrações causadas pela Dybbuk passaram despercebidas por muito tempo. Em Hong Kong, primeiro epicentro da nova doença, as manifestações pela liberdade de expressão frequentemente reprimidas por agentes do governo chinês resultavam em conflitos pelas ruas. Quebra-quebra, ataques com tiros de borracha, carros blindados equipados com jatos de água e, ocasionalmente, coisa pior. Os manifestantes, em sua maioria estudantes secundaristas e universitários , revidavam com paus, pedras e garrafas, cobrindo os rostos com capuzes ou com as próprias camisas para diminuir os efeitos do gás lacrimogêneo lançado pelos policiais. Nesses combates há muitos confrontos corpo-a-corpo em que a vantagem está toda do lado das tropas oficiais. Os homens do batalhão de choque vão ao combate paramentados com capacetes, coletes, cotoveleiras, joelheiras, escudos e bastões, além de pistolas e tasers, postando-se em perfeita ordem contra as turbas histéricas, desorganizadas e confusas. Não há possibilidade de vitória sem armas e sem estratégia, a não ser em alguns lances isolados de sorte em que algum grupo de rebeldes consegue dominar um ou outro soldado, amparados pela superioridade numérica e pela força bruta. Claro que pequenas batalhas como esta não definem o resultado da guerra, e as manifestações sempre acabam com dezenas de estudantes feridos e presos.
Poucas semanas depois do "paciente zero" Zhao Yun ter falecido, e muito antes da Dybbuk espalhar o pânico pelo mundo e ganhar o status de pandemia, uma dessas passeatas teve lugar na Canton Road, a avenida dos endinheirados e turistas em Hong Kong. Milhares de manifestantes brandiam cartazes e exigiam liberdade, aos berros. A manifestação seguia pacífica, até uma esquina que as tropas do governo haviam ocupado com barricadas, com ordens para debandar a multidão "a qualquer custo". Os manifestantes continuaram avançando até as barreiras. Alguns tentaram passar por cima dos cavaletes de isolamento mas foram dissuadidos com cacetadas. Alguém no meio da aglomeração arremessou uma pedra que acertou o capacete de um dos guardas, e a situação virou um caos. Policiais dispararam tiros de borracha e lançaram bombas de gás enquanto coquetéis molotov voavam sobre seus capacetes e explodiam na calçada, nos carros parados, nas vidraças das lojas. Os policiais fizeram um cordão humano e começaram a avançar num movimento inexorável sobre os manifestantes, batendo em seus escudos com os bastões e provocando um ruído desmoralizante e assustador, como tambores de guerra. Os estudantes tentaram reagir e manter posição mas logo viram que era impossível. Resolveram então se espalhar pelas vielas laterais, quebrando tudo que podiam pelo caminho. Um grupo mais recuado continuava jogando coquetéis molotov contra as tropas de choque. Mas mesmo eles optaram pela fuga quando foram atingidos pelo jato de água do blindado que avançava pela rua abrindo caminho à força.
Um estudante, cujo nome se perderá na história oficial da China e de quem poucas pessoas se lembrarão dentro de alguns meses, fugia com um dos pequenos grupos que se dispersaram pelas ruas secundárias do bairro. Eram perseguidos de perto por policiais. Desorientados, viraram à direita num beco sem saída e se viram encurralados. A guarnição se aproximava como um laço se fechando em torno do pescoço de um condenado. Os fugitivos desesperados tentaram se defender com o que tinham à mão: latas e garrafas encontradas numa caçamba de lixo nos fundos do beco. Mas o efeito dessa estratégia era nulo. O policial mais avançado se aproximou de braço erguido e desferiu um golpe contra um rapaz mirrado, de capuz na cabeça. A reação do agredido foi surpreendente e inimaginável. Aquele jovem franzino, pouco mais do que um menino, reteve o golpe com a mão nua. Acertou um soco na viseira do capacete do guarda, rompendo-a e deixando o adversário fora de combate. Outro policial que se aproximava por trás acertou a nuca do rapaz com o bastão, mas ele não caiu. Virou-se para o agressor e o derrubou com um murro. Pegou o bastão do policial caído no chão e usou-o para derrubar mais dois guardas com golpes vigorosos e fora de controle. A essa altura, os outros estudantes que estavam encurralados já tinham aproveitado para escapar em direção à rua. Mas o estudante que havia permitido aquela fuga não estava mais disposto a fugir. Parecia fora de si. Golpeava repetidamente o capacete de um dos policiais caídos, já inconsciente. Sentiu, então, um calor espalhando-se por suas costas, como ferro derretido jogado sobre sua pele. Parou de bater no policial caído e se ergueu, vendo logo atrás de si outro policial com a arma apontada para ele, ainda fumegando do disparo feito. O jovem não caiu, porém. Atirou-se para a frente em direção ao atirador, com ira nos olhos e um grito assustador na garganta. O policial, aterrorizado por aquela reação impossível, atirou mais quatro vezes, acertando o rapaz no peito e nos braços. Ainda assim o estudante continuou avançando, até colocar as mãos ensanguentadas sobre a garganta do policial, apertando com força e fazendo-o perder os sentidos. Derrubado o último adversário, o estudante franzino que nunca tinha brigado na vida, possuído de uma força e raiva sobrenaturais, saiu do beco e seguiu cambaleando por vários metros pela rua ainda agitada pela retirada dos manifestantes. Começou a se sentir muito tranquilo, sem dor, sem medo... perdeu a noção do que ocorria à sua volta, como se aquela confusão infernal fosse apenas um pesadelo. Tombou vários metros adiante, quando suas vistas se escureceram para sempre.
Nenhum dos passantes, manifestantes apressados em fuga ou policiais concentrados na missão de dispersar os subversivos, nenhum deles poderia perceber a pele terrivelmente avermelhada no rosto do morto, escondida pelo capuz feito de uma velha camisa de flanela.
A mais de 11 mil quilômetros dali, um médico voluntário enxuga o suor da testa no calor escaldante do verão nigeriano. Nos arredores de Ngala, o acampamento de ajuda humanitária da ONU fervilha de refugiados famintos, exaustos, muitos doentes. A multidão não tem forças sequer para se movimentar, fica aglomerada nas pequenas manchas de sombras oferecidas pelas barracas de lona. O médico, com as mãos trêmulas depois de muitas horas de atendimentos os mais diversos, permite-se descansar por alguns momentos perto de um dos poços. Pega água de um balde com a concha de metal, maldizendo a demora dos burocratas em liberar recursos para um sistema de abastecimento de água mais eficiente. Mas o que o incomoda mais é a estupidez do conflito religioso que assola o país há décadas. De um lado o governo cristão, de outro a maioria muçulmana. Os dois grupos dispostos a qualquer coisa para provarem que estão com a verdade, que seu profeta é o único e verdadeiro, que não há salvação senão pela fé que devotam. Num ambiente extremado, de lutas constantes e intolerância, a única verdade é o retrocesso. Esquecem-se de seus mestres, apegam-se a convicções cada vez mais distantes dos evangelhos ou do alcorão. Maomé e Jesus são retratos maniqueístas e intransigentes de conceitos mundanos, pilares de poder secular que nada tem de divino. Enquanto são atacados por todo tipo de doença, principalmente a nova Dybbuk, açoitados pela fome e pela miséria, as duas facções esgotam-se tentando exterminar uma à outra.
Naquela tarde, o relato de um velho cristão tornou mais amargo o gosto daquela violência. O médico recebeu-o na tenda-hospital com o olho esquerdo dilacerado e um profundo corte no braço. Golpes de facão aplicados por um extremista muçulmano partidário do grupo Boko Haram, defensores da Xaria como único código de direito válido para o país. Depois de medicado, Kwame, como se chamava, foi informado de que perderia a visão do olho esquerdo. Mas pareceu estar conformado com aquilo. Ouviu o diagnóstico em silêncio, entregando a Deus os seus sofrimentos.
O doutor quis saber dele como aquilo tinha acontecido. Kwame falou com voz pausada, num inglês entrecortado de expressões do dialeto efik, etnia à qual pertence. Por vezes, foi difícil para o médico entender o que o outro contava. Outras vezes, foi mais difícil ainda acreditar que aquilo tinha de fato acontecido.
"Um grupo de infieis, armados com facões e lanças, invadiu nossa aldeia de surpresa. Os homens estavam longe, arando os campos ou caçando, e ali estávamos apenas nós, os velhos, mulheres e crianças. Eu vi quando um deles cortou a cabeça de Erasto, um menino de menos de dez anos, que cometeu o erro de ficar paralisado de terror bem no caminho dos assassinos. A mãe dele, histérica, saiu de sua cabana gritando, correu para o corpo do filho e tentava juntar a cabeça ao pescoço de novo, banhada em lágrimas. Foi morta ali mesmo, com outro golpe de facão dividindo-lhe o crânio ao meio. Kalinda, uma jovem inteligente e bonita, com instinto de guerreira que devia ter herdado dos ancestrais, atirou-se contra os bandidos armada com uma pequena faca. Contra todas as expectativas, ela conseguiu matar um dos agressores furando-lhe o pescoço. Mas foi rendida por dois homens fortes, que rasgaram suas roupas e estupraram-na antes de lhe cortar a garganta, enquanto seus companheiros ateavam fogo nas cabanas mais próximas. Eu estava dentro de casa quando um dos invasores me encontrou. Tentei proteger o rosto com o braço, mas como o senhor pode ver, o facão fez seu trabalho sem muita dificuldade. Eu ia morrer, já estava encomendando minha alma para o Pai Altíssimo, quando vi meu algoz paralisar-se de repente. Os olhos dele ficaram muito abertos e uma golfada de sangue saiu de sua boca. Logo vi que seu peito tinha sido atravessado por uma lança. Quando o maldito caiu, atrás dele, com a arma ensanguentada, estava Bomani, um meninote de mal contados quatorze anos. Olhei para ele com o olho que me restava depois daquele ataque, e lhe juro, o que vi foi o espírito guerreiro de um tigre. Ele arfava, parecia ter dificuldade para respirar, mas segurava o facão com tanta força que eu julgava que seus dedos iriam se partir a qualquer momento.
"Bomani saiu da minha casa com o braço erguido, soltou um grito assustador de desafio e cólera, sua voz ainda em formação tinha ganhado um timbre sobrenatural. Juro que não exagero! O menino se jogou sobre os muçulmanos e começou a golpear, cego de ódio, fora de si. Arrancou o braço de um deles, cortou a orelha de outro, matou os dois antes de poderem gritar "ai" e saiu em busca de mais adversários. Vi quando uma lança atravessou seu lado. Bomani, então, com a força de dez homens, arrancou a ponta da lança e com ela mesma desferiu um golpe, matando mais um inimigo. A essa altura os assaltantes começaram a sentir medo. Vi nos olhos deles a superstição e o pânico. Mas não poderiam fugir de uma única criança, as portas do céu estariam fechadas para sempre para eles diante de tamanha desonra. Atacaram então todos juntos, e reduziram o pobre Bomani a um monte de carne esquartejada e ensanguentada. Só pararam muito depois do jovem estar morto. Então pegaram o que quiseram e foram embora.
"Eu estou velho. Estou ferido. Mas estou lúcido. Juro que nunca vi uma coisa daquelas. O pequeno Bomani parecia um gigante. Não sentia dor, não sentia medo, apenas ódio. Ódio tão forte que dava para sentir uma energia em volta dele, quente como o sol. Nunca vi nada parecido e acho que nos poucos anos que ainda me restam nunca verei tamanha ferocidade de novo".
O médico ficou pensando nas palavras do velho, lembrando-se de alguns relatos parecidos que tem ouvido nos últimos dias, de prodígios de força e raiva inexplicáveis em pessoas que até então nunca haviam mostrado comportamento violento. Um desses casos chegou à sua tenda, em convulsões, espumando pela boca e gritando sem parar. O homem estava trabalhando normalmente quando começou a ficar agitado. Os colegas que o trouxeram disseram que ele parecia irritado sem motivo algum, começou a agredir um dos encarregados da roça de milho em que trabalhava quando este lhe mandou carpir um terreno morro acima. Os amigos ficaram assombrados quando o simples lavrador derrubou o feitor do cavalo e o golpeou várias vezes com as próprias mãos, quase matando-o. Ainda ficou muito tempo ameaçando qualquer um que se aproximasse dele, com os braços estendidos e os punhos cerrados, socando o ar e girando o corpo numa dança assustadora, fora de controle. Quando finalmente caiu no chão, o lavrador foi rendido pelos colegas e trazido para o acampamento humanitário. O médico cuidou dele como pode, mas a falta de recursos foi um obstáculo intransponível. Sem calmantes ou drogas sedativas, foi preciso amarrar o homem à maca, e ainda assim ele ameaçava se levantar, arrebentando as tiras. O doutor percebeu que o estranho paciente estava com uma febre altíssima. Morreu horas depois. O médico ficou se perguntando se o jovem Bomani também tivera febre alta antes de ser transformado numa massa sanguinolenta pelos integrantes do Boko Haram. Na cabeça do doutor, um padrão poderia estar se formando naqueles ataques de loucura, capazes de se destacar mesmo entre pessoas de uma sociedade acostumada com a violência extrema. Se tivesse equipamento adequado, o médico gostaria de investigar.
Essa convicção seria ainda maior se um dos sintomas mais comuns da Dybbuk não ficasse totalmente camuflado pela pele negra dos pacientes: a coloração vermelha, principalmente no rosto e nas mãos.
No Brasil, enquanto o poder público batia cabeça e hesitava em enfrentar o H5N2, a paciência das pessoas escorria rapidamente para o ralo. As medidas de emergência na área econômica mostravam-se insuficientes e ineficientes; os pronunciamentos oficiais não davam satisfações aos milhões de desesperados; no campo da saúde, a incompetência oficial beirava o absurdo. Ministros da Saúde entravam e saíam do governo como roupas numa gaveta. Não tinham propostas realistas de combate à pandemia e, quando a tinham, não encontravam respaldo nem no legislativo, nem na população que preferia negar que fosse necessária uma ação mais drástica - e nem no próprio Planalto. O chefe do executiva enciumava-se de qualquer destaque que algum de seus subordinados conquistasse na mídia, e esforçava-se por fazer da vida do agraciado com a simpatia da imprensa um inferno sem precedentes. Desautorizava, desmentia, contrariava, em público e em reuniões privadas. Não era de estranhar que ninguém esquentasse muito a cadeira no Ministério da Saúde.
Amália, Amadeu, Riquinho assistiam de camarote à derrocada nacional. Sentiam seus efeitos diariamente, observavam seus reflexos nas faces mascaradas de seus vizinhos. A tensão se espalhava pelo ar como um outro tipo de vírus, mais silencioso que o H5N2, mas não menos perigoso. Muitos começaram a fazer coro com a ala governista que pregava um suposto exagero nas medidas sanitárias ditadas pela O.M.S. Amadeu foi um deles. Impedido de trabalhar pelas regras da quarentena, começou a se sentir injustiçado. Passou a fazer coro com os que pediam a reabertura imediata do comércio. E não eram poucos. Os descontentes começaram a se reunir em manifestações, primeiro com carreatas em que ainda havia um resquício de cuidado com a propagação do vírus, depois em grandes passeatas e concentrações públicas, onde não raramente a máscara era deixada de lado e a aglomeração ameaçava a segurança de todos os presentes. Muitos ficaram doentes, alguns morreram sufocados pela Dybbuk depois desses atos pró-reabertura.
Amadeu não foi a nenhuma dessas manifestações, muito menos Amália. Intuíam que, além de inúteis, aqueles atos só trariam mais risco de contágio. A rebeldia de Amadeu foi individual, uma convicção materializada em pequenos atos: saídas em busca de emprego, contrariando regras da quarentena que eram ainda mais restritivas para pessoas como ele, acima dos sessenta anos. Não havia chance dele ficar em casa esperando pela ajuda oficial que nunca chegava, sem renda, sem trabalho, sem aposentadoria uma vez que ainda não tinha cumprido os requisitos básicos para garantir o ganho regular. Tinha a idade mínima mas não o tempo de contribuição exigido. Saía todos os dias esperançoso de conseguir algum bico, voltava no fim da tarde decepcionado, para no dia seguinte repetir o mesmo ritual, sempre acreditando, sempre se decepcionando, como se a noite tivesse o poder de renovar nele a confiança ou apagar a lembrança dos fracassos anteriores. A filha parou de sair à procura de alguma oportunidade. Apenas observava o esforço do pai, que ultimamente passava mais tempo na casa dela do que na própria, segurando um choroso Alvinho nos braços, olhos embaçados de lágrimas secas. Tentava compartilhar daquela fé, mas estava cada vez mais difícil. Frequentemente se lembrava do marido em coma. Se pelo menos ele acordasse, seria mais um para ajudar. Bernardo podia não ser o melhor marido do mundo, mas sempre soube trazer dinheiro para casa, fosse como fosse. Quando se lembrava do esposo, pensava no dia do casamento, Bernardo estava meio alto das cervejas com que celebrou o enlace, abraçava a esposa de vez em quando entre um gole e outro e prometia "nunca vai te faltar nada, esposa". Ele prometeu mas agora não tem condições de cumprir, incapacitado por uma doença assassina, talvez condenado à morte depois desse longo suplício da inconsciência num leito de hospital. Amália pegou o celular. Decidiu-se a ligar mais uma vez para o hospital, quem sabe um milagre não tenha acontecido e eles simplesmente se esqueceram de contar. Mas a sua fé, como já foi dito, deixou de ser forte há muito tempo. Apertou os dígitos que já havia decorado, fez a mesma pergunta que já havia decorado, recebeu depois de alguns minutos a mesma resposta que já havia decorado. As lágrimas, secas, não rolavam mais a cada má notícia. Amália desligou sem se despedir, missão cumprida, dever de esposa, querer notícias do marido doente, nada mais a fazer. Abraçou o filho menor e voltou a se sentar para mais algumas horas de apatia, observando a rua pela porta entreaberta. Não teria coragem de confessar em voz alta, mas nesses momentos de desalento invejava o marido e chegava a desejar ficar doente, apenas para não ter mais que enfrentar a aridez daquela rotina massacrante. Que se virassem sem ela o pai, os filhos... queria descansar.
Riquinho continuava a pedir esmolas, e notava que mesmo nesta atividade a concorrência era grande e desleal. Como enfrentar aquela mulher vestida de molambos que estendia a mão ossuda com um bebê choroso nos braços? Ou aquele idoso perneta, saltitando em direção às moedas que lhe eram oferecidas? Os semáforos se transformaram num teatro de miséria em que diferentes histórias eram contadas em olhares tristonhos, peles ressequidas, bocas famintas. Os beneficiados pela sorte, em seus carros luxuosos, preferiam direcionar sua benevolência aos que pareciam mais necessitados. Um menino, ainda na flor da idade, teria certamente mais tempo e energia para se virar. Numa tentativa de equalizar a disputa, usou então o expediente de escrever um recado num velho pedaço de papelão pardo: "me ajuda, papai com Dibuqi", assim mesmo, com a grafia errada do nome da doença. Exibia aquela mensagem aos para-brisas indiferentes, ou pior, condenatórios. Riquinho ouviu várias vezes reprimendas de gente que o julgava e condenava por não estar estudando ou fazendo algum pequeno serviço... vá capinar um lote, vá lavar carros, trabalhar de servente de pedreiro, sugestões não lhe faltavam. O que faltava era quem lhe desse uma dessas oportunidades, porque sim, ele já tinha tentado, não uma, mas várias vezes. Chegou a trocar um desses pequenos serviços por um prato de comida uma vez. No dia seguinte tentou repetir a negociação mas foi escorraçado. Não era para virar um hábito, ele não era bem-vindo ali, foi só uma vez e agora que vá se arranjar em outras bandas. Ele também tentou descobrir onde os lavadores de para-brisa conseguiam o sabão que usavam, onde os vendedores encontravam as balas, chicletes, doces e frutas que ofereciam nos cruzamentos... Ninguém, porém, estava disposto a orientar um possível concorrente na arte daqueles ofícios. A solidariedade não estava em alta nos enxames de desfavorecidos e a política do "cada um por si" tinha se tornado o único mandamento sensato. Uma única vez Riquinho experimentou lavar um para-brisa só com água e um pedaço de pano sujo, tirado de uma caçamba de lixo próxima, mas tudo que conseguiu foi transformar poeira em lodo e receber como pagamento um palavrão e um sinal obsceno feito com o dedo do motorista enraivecido.
Quando voltava para casa, sentia um aperto no peito ao encarar os olhos vazios da mãe. Ela sempre foi bonita e viva, mas ultimamente parecia uma sombra, um espantalho... cabelos desgrenhados, olhar estagnado, uma boca ainda bonita mas semiaberta, murmurante, como se rezasse ou praguejasse baixinho. Riquinho adiava ao máximo o momento do retorno à casa, só para evitar aquele triste espetáculo. A mãe estava parecida com os pedintes mais rotos que encontrava todos os dias. Até pensou que ela teria mais sorte que ele como pedinte, principalmente se levasse o irmãozinho junto. Jamais teria coragem de propor isso a ela, não conseguiria imaginar uma cena daquelas... Riquinho vai para o quarto, algumas vezes sem comer, e invariavelmente pensa no pai, cabeça no travesseiro, sono fugidio. Nunca teve uma relação típica de afeto com aquele homem meio bruto, grosseiro e de pouca cultura, mas havia respeito, talvez até uma certa devoção filial. Mas agora, o que há é uma revolta. Riquinho não perdoa o pai por ter ficado doente e deixado a família naquela penúria. Não se importa com a injustiça de sua raiva, o sentimento é mais forte que a lógica. Pensa apenas no quanto odeia aquele homem que não está ali para defendê-lo a ele e à sua família. O quando o odeia, e o quanto adoraria vê-lo entrando em casa, de pé e bem de saúde, abrindo os braços e sorrindo, "estou de volta, não foi nada, vamos tocar a vida". Nessas ocasiões não pensava nos tapões ao pé do ouvido, poucos, que o pai lhe dispensara em raras oportunidades em que estava em casa e flagrava alguma arte ou malcriação. As imagens que acorriam à sua memória eram das partidas de futebol na rua em frente à casa, das brincadeiras de quando Riquinho tinha pouco mais idade do que Alvinho tem hoje, das conversas no quintal, quando as noites estavam muito quentes pra ficar dentro de casa, e Bernardo aproveitava para conversar, naquele seu jeito de poucas palavras e muitas interjeições. Olhava para as estrelas sobre sua cabeça, Riquinho se lembrava como se estivesse diante do pai naquele momento, coçava o queixo, murmurava algo ininteligível e depois soltava algum lugar-comum, provavelmente lido em algum pára-lama de caminhão: "a vida é dura pra quem é mole", "não tenho tudo que amo mas amo tudo que tenho", ou, quando sua veia filosófica estava mais à flor da pele, "viajar é bom, mas voltar pra casa é ótimo"... Riquinho não entendia nada daquilo, mas se sentia bem ao lado daquele homem, ouvido o que pareciam ser fragmentos de uma grande experiência e sabedoria. Nem tudo o que o pai dizia ao filho era retirado de placas de caminhões ou folhetos ruins de pensamentos óbvios. Riquinho guardava com especial cuidado um ensinamento que lhe parecia mais importante que todos os outros, e que Bernardo repetia sempre que tinha oportunidade. "Não conte com ninguém, filho, nunca. Você é que tem que fazer por onde". Na situação por que estão passando, ele, a mãe, o avô e o irmão, aquelas palavras ganhavam um sentido profético. Pareciam indicar que os defensores da reabertura do comércio tinham razão, afinal de contas. Melhor "fazer por onde" do que ficar contando com o socorro do governo, que não vinha mesmo de qualquer jeito, olha só o desespero da mãe e do avô atrás dos benefícios.
Riquinho ia para as manifestações. Em parte por convicção pessoal, mas muito pelo barulho e agitação que sacudiam um pouco sua vida monótona. Numa delas, na Praça do Trabalhador, mais de 3 mil pessoas se aglomeraram. Eram na maioria pequenos comerciantes, lojistas de rua, alguns funcionários preocupados com os próprios empregos... nenhum grande empresário, daqueles que davam entrevistas defendendo o fim da quarentena mas não participavam das passeatas. Quando muito, foram a algumas carreatas sem sair de seus carrões importados; não iam aos seus escritórios nos curtos períodos de abertura, tampouco. Dedicavam-se ao home office na segurança de suas casas, bem longe dos ônibus lotados que levavam seus empregados ao trabalho. O presidente da Liga de Comércio e Indústria do estado acompanhava os acontecimentos pela TV e rádio, nos boletins noticiosos que narravam a manifestação. Ele não tinha por que se preocupar com coisas secundárias como ter o que comer. Não faltavam a ele alternativas. Poderia inclusive propor um convênio de emergência entre seus associados, com donativos a serem distribuídos aos comerciários e trabalhadores da indústria, para que estes pudessem suportar com o mínimo de dignidade vários meses de lockdown se fosse necessário, sustentando seus trabalhadores sem a necessidade de que estes se expusessem ao risco de contrair Dybbuk. Mas, se agisse dessa forma, os lucros reduziriam, e lucrar sempre foi motor principal de todas as suas atitudes.
Mas a grande massa reunida, gritando palavras de ordem e exibindo cartazes contra o isolamento social, não pensava na incoerência de seus líderes. Eram movidos pela necessidade, que embaçava o raciocínio lógico. A grande maioria sincera e bem-intencionada fazia volume para interesses não tão puros, de poderosos focados em manter os próprios ganhos. E o governo ia na mesma linha, preocupado com a popularidade e a viabilidade eleitoral de suas aspirações futuras. Chegavam mesmo ao ponto, alguns dos mais exaltados representantes do alto poder político, de comparecer a esses movimentos em sinal de apoio a suas demandas. Pareciam querer dizer que não tinham nada a ver com a crise econômica advinda da pandemia, ou a falta de suporte público para os desempregados e falidos.
Riquinho, do alto de seus 11 anos, não atinava com todas essas sutilezas. Ficava encantado com os brados pelos auto-falantes, os gritos da multidão, os aplausos e buzinaços. Era uma festa, uma anárquica manifestação de liberdade. Seguiam todos entusiasmados, convictos de suas razões, confiantes na vitória... esquecidos da letalidade da doença que atingia já mais de 10 milhões de pessoas em todo o planeta, matando centenas de milhares.
Quase no fim da passeata, quando já pensava em voltar para casa, Riquinho viu um grupo de policiais arrastando um homem enfurecido, um grande tumulto em redor deles, alguns exigindo que o sujeito fosse posto em liberdade, outros ameaçando agredir os policiais com os cabos dos cartazes que traziam... o menino ficou assustado, observando de longe, sem entender como tantos policiais podiam ter tamanha dificuldade em contar um único homem. O detido parecia fora de si, espumava pela boca, mexia-se com uma energia incontrolável, socando tudo que encontrava pela frente, chutando, gritando.
Naquele quadro patético, o que mais chamou a atenção de Riquinho foi a cor vermelha que cobria o rosto do manifestante. "Parece que tá com vermelhão", pensou ele.
O homem foi posto dentro de um camburão, estrebuchando, e foi levado dali, sob os protestos de outros manifestantes, furiosos com o que consideravam um abuso de autoridade. Outros policiais dispersaram o público que ainda se reunia na praça. Minutos depois todos os sinais da confusão tinham desaparecido, exceto uma mancha de sangue no asfalto, de um dos policiais, que teve um corte na testa provocado pelo preso fora de si.
Impressionado com aquele espetáculo degradante, Riquinho saiu em direção à Avenida Goiás, onde entrou num ônibus lotado para voltar para casa. Pelo caminho foi tentando imaginar o que poderia fazer uma pessoa se tornar tão furiosa.
9 - Mais de um ano se passou desde que Bernardo fez sua última entrega na Cooperativa de Produtores de Cana-de-açúcar, em Ribeirão Preto. Aquela empresa, que tinha ignorado as regras da quarentena recém-imposta e até rompido os lacres da Vigilância Sanitária para dar acesso ao caminhão de Bernardo com sacas de fertilizantes, se ressentia agora das consequências da própria irresponsabilidade. O depósito, que no passado foi um dos principais símbolos da opulência dos latifundiários e usineiros, agora está abandonado. As amplas janelas do galpão refletem nos cacos de suas vidraças quebradas os raios do sol poente, emprestando uma atmosfera lúgubre ao conjunto arquitetônico decadente. Ervas daninhas se espalham pelas frestas e rachaduras do pátio principal. Grandes moitas escondem parte da cerca e entopem as calhas nos telhados. Os armazéns de insumos agrícolas não guardam mais nada de útil, as poucas ferramentas que não foram furtadas se espalham pelos cantos, enferrujadas e esquecidas, destacanso-se entre os equipamentos abandonados um velho trator que, a essa altura, já foi totalmente depenado por marginais que furtaram o quanto puderam de peças que ainda fossem úteis. Todo o prédio administrativo descasca a olhos vistos revelando extensos espaços de blocos de concreto por baixo da pintura envelhecida. Dentro, móveis empoeirados, fichários de aço vazios e com as gavetas abertas fora dos trilhos, dejetos de drogados que fizeram daquele lugar seu esconderijo espalhados pelo chão. A ostentação da prosperidade do passado foi trocada pela decrepitude da miséria. Retrato da tragédia que se abateu sobre aquele lugar e todos que trabalhavam ali.
Nem um ano separa a fortuna da desgraça. As vicissitudes em série drenaram todas as reservas da cooperativa, minaram todos os esforços de seus sócios, implacáveis, quebraram qualquer resistência e espalharam desolação por toda parte. Tudo teve início naquele mesmo pátio, antes robusto como uma fortaleza e agora repleto de veias abertas como ramos de uma árvore seca, quebradiço e frágil. Vencido. Destruído, como a ilusão de superioridade que cega os homens.
Bernardo já estava internado em Uberlândia, a menos de 300 quilômetros dali, quando as coisas começaram a fugir do controle no depósito da Cooperativa. Reginaldo foi notificado do mal estar que afetava alguns dos carregadores da cooperativa. Apresentavam fraqueza, dificuldade para respirar, febre. O encarregado recusou-se a acreditar que a Dybbuk poderia ter se infiltrado entre seus funcionários; nada de pânico, está todo mundo muito nervoso com essa quarentena, agora qualquer resfriadinho está recebendo o status de epidemia assassina. Foi orientado pelo presidente da cooperativa a dar continuidade ao trabalho. Fiscais da prefeitura não apareceriam tão cedo para verificar se a interdição estava sendo respeitada. Bastava usar de discrição, reduzir um pouco o ritmo, marcar os recebimentos dos insumos em horário noturno ou mesmo de madrugada e, durante o dia, dedicar-se a serviços administrativos ou à organização interna das mercadorias nos armazéns, tudo sempre com o portão onde ainda se viam os dois pedaços do lacre da vigilância fechado, as portas de aço dos galpões abaixadas e a aparência de quarentena mantida. Nenhum trabalhador, apesar do medo de adoecer, denunciou aquela fraude ao sindicato ou mesmo às autoridades sanitárias. O medo de perder o emprego naquele momento delicado era maior do que o instinto de sobrevivência. A desinformação generalizada, muitas vezes alimentada pelos próprios boletins governamentais, também contribuía para a crença de que aquele vírus não poderia ser assim tão perigoso. Todos acabaram decidindo pagar para ver, arriscando-se num trabalho que gerava aglomeração de pessoas em ambiente confinado. Nem mesmo a máscara era um cuidado adotado por todos. Sempre havia um ou outro que se julgava mais "corajoso", mais bem informado que os outros, e dispensava qualquer cuidado com a própria saúde ou a dos colegas. Assim fermentava num caldeirão de ignorância e insalubridade o caldo de cultura ideal para a proliferação do novo influenza. E o vírus se instalava, naquele lugar, silencioso e calmo, sem pressa, provocando sintomas bem menos agressivos do que se costumava ver na maioria dos casos e aumentando com isso o engano dos funcionários e encarregados. Era mais de uma centena de pessoas naquele lugar. Alvos fáceis para a doença.
Sebastião, capataz da cooperativa encarregado de recrutar carregadores para o depósito, foi o primeiro a cair. Com ele a sutileza do vírus foi deixada de lado. Do primeiro sintoma até a morte por insuficiência respiratória aguda, passaram-se menos de três dias. Um avanço fulminante que terminou com o característico tom vermelho no rosto e nas mãos da vítima indefesa. Deixou mulher e três filhos. Pretendia se aposentar ainda naquele ano.
A morte devastadora e repentina espalhou finalmente o pânico entre os trabalhadores. Eram como formigas num labirinto, sem saber para onde ir. Reginaldo ainda se recusava a ver o pior. E como o corpo de Sebastião não passou por exames que comprovassem a Dybbuk, por uma falha muito comum da saúde pública carente de kits de diagnóstico, Reginaldo tratou logo de minimizar o episódio nas conversas com os subalternos, espalhando a versão de que o velho capataz tinha morrido de dengue. Não conseguiu convencer ninguém. Teve que apelar para a própria autoridade, ordenando que todos continuassem o trabalho a menos que quisessem procurar emprego em outro lugar. Mais uma vez a necessidade se impôs e ninguém optou por se arriscar no desemprego, algo tão assustador quanto o vírus.
Reginaldo não poderia ceder e exigir o uso de máscaras ou álcool gel na empresa. Seria como admitir que a morte de Sebastião tinha sido causada pelo vírus. O presidente da cooperativa exigiu a manutenção da produtividade ainda que dentro das restrições do trabalho noturno e secreto. Alarmar os empregados com medidas preventivas seria um tiro no pé e comprometeria os resultados. A ambição do supervisor falou mais alto. Ele desejava uma nomeação para o cargo de vice-presidente de exportações. Se conseguisse bons números mesmo em período de quarentena a promoção estaria praticamente garantida. Para alcançar seus objetivos não mediria sacrifícios, ainda que fossem medidos em vidas perdidas de subalternos. Reginaldo trataria a ameaça como costumava tratar tudo na vida: de forma pragmática e funcional; como um motor que não pode abrir mão de sua função de movimentar uma máquina, ainda que ao preço de muito combustível queimado. Se os funcionários tivessem que ser seu combustível, tanto faz.
Resolveu garantir que seus planos não seriam atrapalhados por alguma inspeção-surpresa da Vigilância em Saúde. Contatou Raimundo, um faz-tudo que conheceu ainda na adolescência na escola, quando começava a despontar seu caráter competitivo. Raimundo era um aluno apenas medíocre, mas sempre conseguia boas notas usando seu charme para colar das meninas bonitas e inteligentes nos dias de exames. Nunca foi pego, descobriu que havia um atalho para o sucesso, enveredou por ele e nunca mais saiu. Hoje na meia idade, Raimundo é o tipo do sujeito sem carreira definida ou emprego conhecido, sem família ou responsabilidades, mas com uma agenda valiosa. Ele é o cara que conhece as pessoas. Sabe a quem recorrer para solucionar os mais variados problemas sem suar a camisa. Reginaldo decidiu usar os serviços desse faz-tudo. Marcou um encontro com ele numa praça da cidade no meio da noite para uma conversa reservada. Perguntou se Raimundo conhecia um meio de garantir que os fiscais da saúde permecessem afastados dos negócios da cooperativa. Raimundo sabia exatamente como fazer isso acontecer, conhecia as pessoas certas, mas custaria muito dinheiro.
- Isso não é problema - respondeu Reginaldo.
Durante meses, com as mãos certas devidamente lubrificadas por notas graúdas, ninguém importunou as operações da Cooperativa no Armazém, nas usinas filiadas e nas lavouras de cana em redor. A imprensa arriscou algumas denúncias, mas causaram pouco mais que pedidos de informações do Ministério Público ou fiscalizações-surpresa da Vigilância Sanitária, que não eram surpresa para ninguém, sempre em horário marcado e pré-combinadas com Reginaldo por intermédio de Raimundo.
Nesse meio tempo alguns poucos funcionários apresentaram sintomas de Dybbuk. Dois ou três tiveram reações sérias e chegaram mesmo a ficar em casa com uma febre mais forte. Reginaldo exigia deles que não procurassem unidades de saúde, que se automedicassem com remédios para malária ou lúpus e evitassem alarde em torno do assunto. Pagava pequenas gratificações para comprar esse silêncio e dessa forma, tirando o tom vermelho na pele, nada parecia indicar que um surto da doença estava sendo construído lentamente dentro da empresa.
A grande maioria dos trabalhadores estava assintomática, para grande satisfação de Reginaldo e do presidente da cooperativa. As turmas de funcionários mantinham plena capacidade de trabalho e produziam bons resultados enquanto empresas de outros setores, respeitadoras das normas da quarentena, apresentavam crises financeiras dramáticas e ameaçavam falir. A satisfação com o desempenho de Reginaldo não poderia ser maior.
- Acho que em dezembro já sei quem vou indicar para meu vice-presidente de exportação - dizia o chefe, jubiloso, durante os happy-hours no próprio escritório do armazém, no fim do dia. Reginaldo sentia-se a um passo de dominar o mundo. Tudo porque teve coragem de "enfrentar a doença de frente". E os prejuízos em vidas humanas tinham sido praticamente nulos, nada mais do que meia dúzia de afastamentos por motivo de saúde. O ambicioso supervisor não poderia se sentir mais radiante.
Foi quando aquele castelo de cartas começou a desmoronar.
Numa noite, Gumercindo, o novo capataz desde a morte de Sebastião, encontrou-se com o supervisor no pátio da Cooperativa. Reginaldo odiava ir até a empresa e só fazia isso quando era absolutamente indispensável, mas o subalterno lhe garantiu que o assunto era grave e não podia ser tratado por telefone. Tinha relatos a fazer sobre a frequência dos empregados que estavam faltando demais, alegando febre e mal estar. Reginaldo logo pensou que as informações da pandemia, noticiadas diariamente pela imprensa, estavam sendo utilizadas para justificar faltas pelos mais diversos motivos: gente querendo simplesmente aproveitar um dia livre pra ir pescar no rio Pardo, fora da cidade, um simplesmente ficar à toa em casa, bebendo cachaça que não podia mais ser tomada nos butecos por causa da quarentena. Vagabundos oportunistas é o que são, na opinião de Reginaldo. Uns ingratos, nunca lhes faltou nada da empresa, mesmo assim matam serviço pra vadiar. Gumercindo garantiu que não era nada daquilo, naquela manhã mesmo, por exemplo, um dos peões foi até ele com a cara vermelha e a pele ardendo em febre, meio fora de si, avisando que ia para casa porque estava se sentindo mal. Era visível o estado lamentável em que o trabalhador se encontrava, Gumercindo garantiu que aqueles tipos de sintomas não se inventava. Reginaldo ficou de mau humor, ressentido do novo capataz que julgava ser seu homem de confiança e agora vinha com essa conversa de sindicalista, defendendo a preguiça de peão sem vergonha. Disse isso mesmo para o outro e avisou que não queria ouvir mais nada daquilo, e se na noite seguinte não aparecessem para trabalhar não precisavam voltar mais nem pra receber o contra-cheque. Afastou-se do subalterno de queixo erguido, pisando firme com seus sapatos envernizados sobre o concreto do pátio e fazendo seus passos ecoarem como tic-tacs de um relógio. Sentiu-se grandioso, e confessou a si mesmo que tinha nascido para aquilo: mandar, fazer as coisas funcionarem, não importa a dificuldade. Depois da vice-presidência que com certeza conquistaria, quem sabe que novos voos sua competência poderia empreender?
Mas as ameaças não surtiram o efeito esperado. Na madrugada seguinte Reginaldo foi acordado por uma ligação de Gumercindo. O capataz parecia realmente alarmado com o que estava acontecendo. Não só o peão da véspera não apareceu, como uma turma inteira de carregadores que tinha sido escalada para aquele turno faltou ao trabalho, deixando pelo menos 20 caminhões estacionados no pátio com os motoristas irritados praguejando pela demora pra descarregar suas mercadorias. Reginaldo não teve alternativa senão se levantar, dirigir sonolento até o armazém e verificar pessoalmente a confusão. Ao chegar deparou-se com os motoristas reunidos no pátio, discutindo em voz alta com o capataz e exigindo uma solução. Reginaldo quis saber o que estava acontecendo e ouviu de um temeroso Gumercindo que todos os 100 funcionários que tinham sido convocados para aquela noite faltaram ao trabalho. A maioria absoluta nem justificou a ausência, mas cinco comunicaram o mesmo motivo: estavam doentes, com a pele estranhamente vermelha e uma febre de 39º centígrados que não cedia nem com os remédios propagandeados como eficientes contra o Vermelhão.
Depois de ouvir isso Reginaldo ficou totalmente desperto. A confusão parecia fora de controle. Algum vizinho irritado chamou a polícia e uma viatura estacionou na frente do portão com a sirene aberta. Um policial usou o auto-falante para exigir que o portão fosse aberto. Reginaldo tentou argumentar mas foi inútil. Quando os policiais entraram ele tentou a abordagem que costumava dar resultados mais efetivos: ofereceu discretamente uma nota de cem reais para o comandante da equipe. Mas dessa vez o efeito foi desastroso. O policial deu voz de prisão por tentativa de suborno e algemou Reginaldo. O supervisor parecia não acreditar no que estava acontecendo. Passou dos agrados às ameaças, "vocês não sabem com quem estão lidando", "tenho amigos influentes", "vou sair da delegacia antes de vocês" e outros clichês de arrogância muito comuns nessas situações. De nada adiantou. A PM acionou a Vigilância Sanitária e os fiscais apareceram menos de uma hora depois. Fiscais da Receita estavam no escritório da cooperativa logo nas primeiras horas da manhã com mandados de busca para documentos relativos às atividades do grupo - atividades que não deveriam ter ocorrido por causa da quarentena. O depósito foi interditado, os funcionários foram encaminhados em ônibus da Prefeitura para o laboratório especializado em diagnóstico da Dybbuk. A previsão de Reginaldo, de que sairia da delegacia pela porta da frente, acabou não se concretizando. Ele ficou uma semana preso antes de um juiz arbitrar uma fiança. Passou então a responder em liberdade por uma série de acusações, entre as mais graves tentativa de suborno e ameaça à saúde pública por quebra de quarentena. Mais oito funcionários da cooperativa morreram nesse meio tempo e a pandemia se alastrou pelas propriedades rurais e usinas de cana dos cooperados, provavelmente transmitida pelas sacas de insumos distribuídas sem nenhum cuidado durante meses. Muitos lavradores morreram, assim como o dono de uma usina importante de Sertãozinho. As lavouras foram abandonadas, a cana-de-açúcar ressecou nos campos sem quem a cortasse, perdendo praticamente todo o teor de sacarose, fundamental para a produção de açúcar e etanol. A crise no setor sucroalcooleiro se arrastou naquele que era o maior centro produtor de etanol do país, fazendo o preço do combustível verde disparar por falta de produto. Isso aumentou o preço do frete de mercadorias, e o custo de vida foi para as alturas. Mais uma vez os caminhoneiros protestaram, mas dessa vez não receberam o apoio conquistado no passado, já que eram acusados de disseminar a nova doença ao longo das estradas pelo país afora.
Mesmo ciente das operações clandestinas de Reginaldo, o presidente da cooperativa agiu rápido. Demitiu o subalterno, fingindo-se indignado com o que chamou na imprensa de "uma grande traição" por parte do supervisor. Manipulou a opinião pública, fazendo com que a Cooperativa parecesse uma vítima da ganância de um homem, e acionou todo o corpo de advogados da empresa para blindá-lo pessoalmente contra qualquer tentativa de responsabilização pelo que aconteceu.
Para coroar essa triste derrocada, um grande incêndio atingiu o canavial próximo aos armazéns da Cooperativa. O fogo se espalhou e atingiu os prédios antes que os bombeiros pudessem fazer qualquer coisa. As chamas queimaram tudo por dois dias, elevando uma grande coluna de fumaça preta e barrando a própria luz do sol.
Quando o incêndio foi controlado, tudo estava destruído. Muitos produtores faliram. Pequenas cidades que dependiam das atividades da cooperativa para sobreviver ficaram sem recursos para os gastos mais básicos e essenciais. Comerciantes fecharam as portas, o desemprego naquele pedaço do interior de São Paulo bateu todos os índices históricos.
Reginaldo perdeu todo dinheiro que tinha guardado, depois perdeu o carro, a casa onde morava, tudo o que tinha. Ninguém queria dar uma oportunidade de emprego para aquele que era apontado como o grande causador da desgraça da região. No dia em que recebeu um aviso de execução de dívida, Reginaldo perdeu a última coisa que lhe restava: a saúde. Foi internado com Dybbuk, lutou pela vida por três longas e asfixiantes semanas, tossindo e com falta de ar. Ficou preso a um leito de UTI, com o tradicional vermelho marcando seu rosto como um estigma.
Depois de ouvir isso Reginaldo ficou totalmente desperto. A confusão parecia fora de controle. Algum vizinho irritado chamou a polícia e uma viatura estacionou na frente do portão com a sirene aberta. Um policial usou o auto-falante para exigir que o portão fosse aberto. Reginaldo tentou argumentar mas foi inútil. Quando os policiais entraram ele tentou a abordagem que costumava dar resultados mais efetivos: ofereceu discretamente uma nota de cem reais para o comandante da equipe. Mas dessa vez o efeito foi desastroso. O policial deu voz de prisão por tentativa de suborno e algemou Reginaldo. O supervisor parecia não acreditar no que estava acontecendo. Passou dos agrados às ameaças, "vocês não sabem com quem estão lidando", "tenho amigos influentes", "vou sair da delegacia antes de vocês" e outros clichês de arrogância muito comuns nessas situações. De nada adiantou. A PM acionou a Vigilância Sanitária e os fiscais apareceram menos de uma hora depois. Fiscais da Receita estavam no escritório da cooperativa logo nas primeiras horas da manhã com mandados de busca para documentos relativos às atividades do grupo - atividades que não deveriam ter ocorrido por causa da quarentena. O depósito foi interditado, os funcionários foram encaminhados em ônibus da Prefeitura para o laboratório especializado em diagnóstico da Dybbuk. A previsão de Reginaldo, de que sairia da delegacia pela porta da frente, acabou não se concretizando. Ele ficou uma semana preso antes de um juiz arbitrar uma fiança. Passou então a responder em liberdade por uma série de acusações, entre as mais graves tentativa de suborno e ameaça à saúde pública por quebra de quarentena. Mais oito funcionários da cooperativa morreram nesse meio tempo e a pandemia se alastrou pelas propriedades rurais e usinas de cana dos cooperados, provavelmente transmitida pelas sacas de insumos distribuídas sem nenhum cuidado durante meses. Muitos lavradores morreram, assim como o dono de uma usina importante de Sertãozinho. As lavouras foram abandonadas, a cana-de-açúcar ressecou nos campos sem quem a cortasse, perdendo praticamente todo o teor de sacarose, fundamental para a produção de açúcar e etanol. A crise no setor sucroalcooleiro se arrastou naquele que era o maior centro produtor de etanol do país, fazendo o preço do combustível verde disparar por falta de produto. Isso aumentou o preço do frete de mercadorias, e o custo de vida foi para as alturas. Mais uma vez os caminhoneiros protestaram, mas dessa vez não receberam o apoio conquistado no passado, já que eram acusados de disseminar a nova doença ao longo das estradas pelo país afora.
Mesmo ciente das operações clandestinas de Reginaldo, o presidente da cooperativa agiu rápido. Demitiu o subalterno, fingindo-se indignado com o que chamou na imprensa de "uma grande traição" por parte do supervisor. Manipulou a opinião pública, fazendo com que a Cooperativa parecesse uma vítima da ganância de um homem, e acionou todo o corpo de advogados da empresa para blindá-lo pessoalmente contra qualquer tentativa de responsabilização pelo que aconteceu.
Para coroar essa triste derrocada, um grande incêndio atingiu o canavial próximo aos armazéns da Cooperativa. O fogo se espalhou e atingiu os prédios antes que os bombeiros pudessem fazer qualquer coisa. As chamas queimaram tudo por dois dias, elevando uma grande coluna de fumaça preta e barrando a própria luz do sol.
Quando o incêndio foi controlado, tudo estava destruído. Muitos produtores faliram. Pequenas cidades que dependiam das atividades da cooperativa para sobreviver ficaram sem recursos para os gastos mais básicos e essenciais. Comerciantes fecharam as portas, o desemprego naquele pedaço do interior de São Paulo bateu todos os índices históricos.
Reginaldo perdeu todo dinheiro que tinha guardado, depois perdeu o carro, a casa onde morava, tudo o que tinha. Ninguém queria dar uma oportunidade de emprego para aquele que era apontado como o grande causador da desgraça da região. No dia em que recebeu um aviso de execução de dívida, Reginaldo perdeu a última coisa que lhe restava: a saúde. Foi internado com Dybbuk, lutou pela vida por três longas e asfixiantes semanas, tossindo e com falta de ar. Ficou preso a um leito de UTI, com o tradicional vermelho marcando seu rosto como um estigma.
Quando teve alta, Reginaldo pediu para continuar internado. Não tinha para onde voltar e ninguém lhe esperava do lado de fora. Os enfermeiros explicaram que aquilo não era possível, mais vítimas da pandemia precisavam do leito que ele liberaria. Acabaram por conduzi-lo, com delicadeza mas firmeza, para a rua em frente ao hospital, deixando-o na calçada, sem rumo ou esperança.
Reginaldo começou a andar sem direção. Quando deu por si, tinha atravessado quase a cidade toda. Diante dele estava o armazém da falida cooperativa, onde fizera fortuna e cultivara sonhos de grandeza. O esqueleto chamuscado de prédios da sede eratudo que sobrou daquela sucessão de horrores.
A essa altura ninguém se lembraria que tudo começou com um simples caminhoneiro que entrou no depósito rompendo o lacre de interdição da Vigilância em Saúde para descarregar fertilizantes trazidos do porto de Santos. Um homem que estava internado e inconsciente num hospital de campanha de Uberlândia. Naquele epicentro de morte e tragédia em Ribeirão Preto, Bernardo tinha sido o "paciente-zero".
Reginaldo começou a andar sem direção. Quando deu por si, tinha atravessado quase a cidade toda. Diante dele estava o armazém da falida cooperativa, onde fizera fortuna e cultivara sonhos de grandeza. O esqueleto chamuscado de prédios da sede eratudo que sobrou daquela sucessão de horrores.
A essa altura ninguém se lembraria que tudo começou com um simples caminhoneiro que entrou no depósito rompendo o lacre de interdição da Vigilância em Saúde para descarregar fertilizantes trazidos do porto de Santos. Um homem que estava internado e inconsciente num hospital de campanha de Uberlândia. Naquele epicentro de morte e tragédia em Ribeirão Preto, Bernardo tinha sido o "paciente-zero".
Quase ninguém se lembraria. Para Reginaldo, aquela era uma imagem marcada a fogo em sua memória.
10 - Quando Riquinho desceu do ônibus já perto de casa, Bacuré esperava por ele no ponto. Tinha um jeito meio nervoso de olhar para os lados, como quem esperava ser surpreendido de repente em flagrante delito.
10 - Quando Riquinho desceu do ônibus já perto de casa, Bacuré esperava por ele no ponto. Tinha um jeito meio nervoso de olhar para os lados, como quem esperava ser surpreendido de repente em flagrante delito.
- Qual é a boa, Bacuré?
- Demorou, Riquinho. Tá na hora de você fazer justiça ao seu apelido.
Riquinho não entendeu.
- Vamos fazer um ganho grande hoje, meu filho. Tenho tudo planejado direitinho. Vem comigo.
Riquinho passou a seguir o colega pelas ruas do bairro. Entraram numa viela, passaram por terrenos baldios com mato pela cintura, usando estreitas trilhas criadas pelos moleques da área para cortar caminho. Logo saíram na avenida principal de acesso ao setor e pararam num ponto de ônibus vazio àquela hora em que todos voltavam pra casa e praticamente ninguém procurava o centro, como eles fariam.
O coletivo chegou e eles embarcaram.
- Bacuré, tô com fome, cansado, querendo ir pra casa. Pra onde é que a gente vai agora?
- E por acaso tem o de comer na sua casa? Se você come o fedelho do seu irmão fica sem leite porque sua mãe tem que jejuar. Não dá pra viver desse jeito não, meu filho. Vamos mudar essa história é agora mesmo. Olha aqui.
Bacuré ergueu a camiseta furada e Riquinho viu o revólver rebrilhando em sua cintura, preso à bermuda. Uma onda de gelo tomou conta de sua garganta, e os pelos de seus braços se arrepiaram.
- Cê tá maluco, Bacuré, pegou o cano que a gente tinha escondido! O que você pensa que vai fazer com isso?
- Penso não! Vou fazer. Vou fazer não! Vamos.
O menino explicou para o assustado amigo o que tinha visto numa padaria no centro da cidade. Pouca gente frequentando, um caixa perto da porta de saída, um lugar meio escondido numa rua estreita perto do fórum velho. Era um labirinto de ruas e vielas perto da Assis Chateaubriand, cheia de possíveis esconderijos e rotas de fuga depois de um assalto rápido e sem maiores consequências.
- O povo é covarde, só de ver o berro já vão logo molhando as calças. Ninguém vai se meter a besta com a gente enquanto eu estiver com esse canhão apontando pras fuças deles, mano.
Riquinho sabia que aquilo era uma idiotice. Tentou demover o colega da ideia. Mas Bacuré tinha argumentos fortes, sabia da necessidade da família de Riquinho, tão grande quando a da sua própria. Sabia também que a esmola nos semáforos mal dava pra ele fazer o suficiente para voltar de ônibus para casa. E voltar de mãos vazias, para encarar os olhos fundos de desespero e de fome da mãe que já foi tão bonita e cheia de vida, como lidar com aquilo tudo? Até quando ser vítima das circunstâncias? Sem emprego, sem escola, sem ninguém disposto a dar uma chance de verdade, todo mundo só pensando na maldita enfermidade, só pensando no próprio rabo...
Aquelas verdades foram enfurecendo Riquinho. Ele pensou no rapaz que tinha sido preso no protesto e começou a entender de onde vinha tanta fúria.
- A gente age rápido, sai logo de lá com os bolsos cheios e puf! - ninguém nunca mais vê a gente por ali - ensinou Bacuré. - Hoje a gente vai jantar que nem reis, meu filho!
- Vamos nessa - respondeu Riquinho com voz firme.
A cidade formiga no fim da tarde como uma cãibra. Quando o sol vai se deitar, num lento mergulho entre os prédios e o amarelo do horizonte começa a perder terreno para o azul cada vez mais escuro da noite próxima, as pessoas ocupam as ruas em busca de um refresco. Os carros circulam como a água de um rio, grande parte tomando o rumo de Aparecida de Goiânia, outros se espalhando para as vias de acesso à periferia ou no caminho de outras cidades da região metropolitana. Parece que ninguém quer ficar na capital. Os que ficam, é mesmo porque não têm outro lugar para ir. E são esses a maioria, apesar do rio de carros buscando a saída. O ar é sujo, poeirento, quente. Os ruídos são urbanos e opressivos. Sirenes, buzinas, uma ou outra moto com o cano do escapamento deliberadamente furado. Todos lutando pelo seu quinhão de atenção enquanto mergulham no breu que se joga sobre eles como um manto. É uma festa sem alegria. Um alívio angustiado de quem sabe que no dia seguinte tudo volta a acontecer do mesmo jeito. É o mundo de Rangel, fora da delegacia.
Aquele foi um dia difícil. Na leitura diária do jornal, durante o café preto que era sua única refeição da manhã, Rangel encontrou notícias sobre fraudes com recursos da saúde que tinham sido reveladas recentemente. Havia novidade no caos. Os pistolões da política envolvidos no escândalo tinham conseguido habeas corpus e saído da cadeia pela porta da frente enquanto os seus denunciantes cumpriam rituais burocráticos em delegacias como aquela em que ele trabalha, tentando validar provas conseguidas com quebras de sigilo bancário e telefônico - provas que eram desconsideradas tão logo chegavam à justiça. Os suspeitos - um secretário de saúde de uma cidade pequena do interior, um lobista conhecido em Brasília e um alto funcionário do Ministério da Saúde, àquela hora estavam desfrutando do conforto de suas casas à espera do sepultamento completo das denúncias. Aquele ditado, "quem rouba um real é vagabundo, quem rouba um milhão é doutor" martelava na cabeça de Rangel. O desfile de tragédias humanas que normalmente faz parte da rotina de um detetive pareceu ganhar cores mais vivas desde muito cedo, quando chegou à delegacia e encontrou alguns colegas lavrando o flagrante de um homem acusado de furtar uma lata de extrato de tomate. O suspeito alegava que era tudo que sua família comeria no almoço. Este não pode contar com as benesses da justiça, nem com as chicanas de advogados caros.
Antes mesmo do início da tarde, uma mulher registrou queixa contra o marido por violência doméstica. Casados há 4 anos, um filho ainda bebê, nunca tiveram uma relação harmoniosa; mas com a pandemia e a necessidade de quarentena, o tempo juntos tornou-se um fardo insuportável. A mulher saiu da delegacia sem garantias da própria segurança. O delegado encaminhou um pedido de medida protetiva em desfavor do marido, mas a vítima não tinha para onde ir. Precisava voltar para casa, para dividir o teto com o próprio carrasco. E enquanto não saísse a ordem judicial de distanciamento, a polícia permaneceria de mãos atadas. Rangel pediu em silêncio que quando a burocracia fosse vencida não fosse tarde demais para aquela mulher.
Muitos outros casos semelhantes apareceram. Desinteligências, brigas, vias de fato... As pessoas insatisfeitas, impacientes, irritadas. O maldito vírus como pano de fundo, a lentidão das medidas governamentais como fermento daquele bolo de desgraças.
No fim do expediente, Rangel sentia-se aniquilado. Perguntava-se que sentido fazia o seu trabalho num mundo tão errado. Julgava-se um "enxugador de gelo". Poucas vezes considerou-se tão inútil.
Devia ser o estresse da Dybbuk afetando seus nervos também, pensou sem muita convicção.
O policial resolveu andar um pouco antes de tomar o rumo de casa - onde não era esperado por ninguém, de qualquer forma. Viu-se no parque dos Buritis, ainda ocupado por algumas moças bonitas em roupa de ginástica correndo pela pista externa, ou casais idosos fazendo suas caminhadas - alguns com máscaras, outros despreocupados com a norma sanitária. Rangel resolveu afastar-se dali, virando à direita rumo ao fórum.
Viu uma pequena padaria, com ares de boteco, aberta àquela hora. Lembrou-se de que não tinha almoçado e resolveu comer algum salgado para tapear o estômago. Preferiu ignorar que aquele estabelecimento deveria estar fechado em quarentena, e que ele, como agente da lei, deveria denunciar a desobediência do comerciante - e não se tornar seu cliente. "De que adiantaria enxugar mais esse gelo agora?" pensou amargamente.
- Essa coxinha é de hoje? - perguntou mais para ouvir a própria voz do que à espera de uma resposta sincera.
- Me dá uma. E uma cerveja - pediu.
A massa do salgado estava indecorosamente oleosa. O recheio se perdia no meio de tanta gordura. Rangel pegou o vidro de pimenta sobre o balcão na tentativa de tornar aquilo deglutível. Sabia que estava irritando a própria úlcera com aquele cardápio hediondo, mas não se importou. Não tem a pretensão de viver para sempre. Rebateu a gororoba picante com um longo gole de cerveja.
Enquanto mastigava lentamente, Rangel olhou para a rua. A noite tinha descido completamente. Uma luminária na esquina jogava um pouco de luz, que não chegava a alcançar a entrada da padaria. As sombras dominavam. Um ou outro carro passava rapidamente jogando a luz dos faróis para dentro do estabelecimento por alguns instantes. Um desses faróis mostrou dois meninos franzinos se aproximando da padaria. Ainda na calçada, pararam um pouco e pareciam combinar alguma coisa. Rangel notou logo que um deles parecia segurar alguma coisa na cintura. Rangel parou de mastigar e sorveu mais um gole da cerveja. Enfiou a mão dentro do casaco e sentiu a pistola encaixada no coldre. Isso o reconfortou e uma calma típica dos momentos críticos espalhou-se por sua expressão dura.
- Vai lá pra trás - disse ele para o balconista distraído.
- Como é? - perguntou o rapaz, alheio ao que ia acontecer.
Rangel não teve tempo de repetir a ordem. Os dois pivetes entraram na padaria e foram direto para onde ele estava sentado. O da mão na cintura ergueu a camiseta e apontou uma arma para o rosto de Rangel.
- Perdeu, perdeu! - gritou o moleque - Quero a grana do caixa agora. O menino desviou o cano da arma para o balconista que ergueu os braços e se desfez em suor.
Quantos anos teriam aqueles assaltantes? 11, 12 no máximo, pensou Rangel analisando friamente seus adversários. O menino de trás parecia estar desarmado, embora mantivesse a mão direita oculta dentro da camiseta.
- Vamo, vamo, rapá. É rápido! Passa a grana!
Valeria a pena reagir? Quanto o balconista teria no caixa? Dinheiro suficiente para cobrir a vida dele, ou a de Rangel, ou mesmo a dos meninos assaltantes? Melhor ficar ali parado, esperar tudo acabar e depois continuar a refeição de coxinha gordurosa com cerveja, na certeza de sair dali e chegar em casa são e salvo para aquele vazio que era sua vida pessoal.
Tudo isso passou pela cabeça de Rangel numa fração de segundo enquanto ele sorria por dentro, sabendo que aquilo não era uma opção.
O menino armado estendeu o braço com o revólver em direção ao balconista gritando cada vez mais irritado. O outro pivete olhou para a rua para verificar se alguém mais se aproximava. Era o momento. Rangel optou por não sacar a arma e se lançou sobre o menino armado. Bateu no braço dele com o porta-canudos do balcão e ouviu a arma caindo no chão com um baque surdo. O menino arregalou os olhos, surpreendido, mas se refez rapidamente e arranhou o rosto de Rangel. O policial se desquilibrou ao tropeçar no banquinho em que estava sentado e amaldiçoou a própria lentidão enquanto caía de costas, com o assaltante sobre ele. O menino se debatia totalmente alucinado.
- Pega o berro, Riquinho! Atira nele!
Rangel viu pelo canto do olho que o revólver estava a poucos centímetros do outro menino. Mas ele não se movia. Tremia convulsivamente, parecia petrificado de terror. Rangel usou os braços para afastar o menino, erguendo-o como se fosse feito de plumas. O pequeno agressor continuava tentando arranhá-lo, guinchando como um rato acuado, quando um estampido deixou Rangel surdo e encheu o ar de um cheiro seco de pólvora. O menino em suas mãos relaxou de repente como se tivesse sido tirado da tomada. O líquido escuro de cheiro adocicado respingou em suas mãos enquanto o corpo sem vida tombava para o lado.
Rangel ergueu os olhos e viu o balconista ainda apontando uma espingarda para ele. - Abaixa essa arma! - ordenou com raiva. Olhou para o outro lado e viu o outro menino ainda de pé, tremendo, olhos muito abertos, sem dizer nada. A seus pés, o revólver do parceiro morto. Rangel se levantou, pegou a arma do chão e colocou na cintura. Ficou alguns segundos olhando para o menino à sua frente. Notou nele o olhar de uma criança - que é o que era, afinal de contas. Notou o medo, a angústia.
- Liga pra PM - ordenou Rangel ao atônito balconista. Depois falou com o menino:
- Qual o seu nome?
Nenhuma resposta.
- Como você foi entrar nessa roubada?
Silêncio.
Rangel sabia qual o procedimento. Fichar, denunciar, mandar pro juizado. Já tinha visto aquilo acontecer com muitos meninos como aquele. Mas, que diabo, de que adiantava fazer isso? Algum desses moleques se emendaria nas instituições pra onde seriam mandados? E aquele pivete ali, na frente dele, decididamente não tinha olhar de assassino.
- Vai pra praça Tamandaré aqui perto e me espera lá. - ele disse, sem saber direito o que estava fazendo. Lógico que aquele menino desapareceria assim que saísse da padaria.
Rangel esperou os policiais, contou o que aconteceu, apreendeu a arma sem licença do balconista, que só não foi preso também porque alegou que a espingarda doze era do chefe dele - ausente no momento. Encaminhou o funcionário para prestar depoimento como vítima de assalto. O tiro que matou o assaltante foi encarado como legítima defesa. Assinou o termo de ocorrência e saiu para a noite. Por via das dúvidas, resolveu verificar se o menino havia feito o que ele tinha mandado, certo de que não encontraria nem rastro dele.
O pequeno assaltante estava num dos bancos da praça, perto de uma banca de revistas, oculto por uma grande árvore. Olhava fixamente para o chão e pareceu não se dar conta da aproximação do detetive.
Rangel se sentou ao lado do menino que continuava imóvel. Longos minutos se passaram até que a criança falou.
- O Bacuré tá morto?
Só podia ser o parceiro de assalto.
- Tá, sim.
Mais silêncio.
Rangel podia perguntar muita coisa, ou dar uma lição de moral no moleque antes de arrastá-lo para o conselho tutelar, de onde iria para o DEPAI ou algum outro buraco. Não saberia explicar por quê decidiu não fazer nada daquilo.
- Me diz onde você mora. Vou te levar pra casa.
"Seguinte, Riquinho. Fica de boa e faz o que eu digo. Esconde a mão debaixo da camiseta pra parecer que você também tá armado. Isso, desse jeito. Tá vendo ali a padaria? Só um cliente e o funcionário. Vai ser rápido e facinho. Hoje tu vai comer como um rei, meu filho".
Bacuré parecia tão confiante! Como tudo deu tão errado? Riquinho não conseguia entender como sua vida virou de cabeça para baixo tão rápido. Duas horas atrás ele nunca sonharia em participar de um assalto a mão armada, Bacuré estava vivo, sua meta era voltar para casa. De repente se tornou um criminoso, Bacuré tinha morrido com a cabeça estourada por uma espingarda, ele estava voltando para casa no carro de um policial, sem a menor noção do que aconteceria em seguida. Tudo saiu de controle. Se é que existe algum controle num mundo em que uma saída de casa pode ser uma sentença de morte. Morte invisível como a infecção por H5N2, ou uma morte barulhenta e cheia de sangue como a de Bacuré.
Riquinho certamente refletiria sobre essas situações todas, não fosse o pânico que atrofiava seu raciocínio. "Minha mãe vai me matar, ou vai morrer de desgosto", era tudo em que conseguia pensar a caminho de casa, ao lado daquele estranho policial que preferiu não denunciá-lo. "Certamente deve estar planejando algo pior pra mim, vai contar tudo pra minha mãe e depois me levar preso", pensava em pânico.
Ao seu lado no volante do carro Rangel divagava: por que simplesmente não deixou aquele menino aos cuidados dos PMs? Estaria ficando de coração mole àquela altura do campeonato? Começaria a acreditar em lendas como "segunda chance", "redenção", "recuperação"? Acharia "boas pessoas" mesmo entre os marginais?
Olhou para o pequeno a seu lado, no banco do passageiro. Ali encolhido, tremendo, ainda no choque do que tinha acabado de acontecer, aquele pedaço de ser humano parecia tudo, menos um bandido ameaçador. Qual seria a história daquele menino? Que caminhos teriam-no levado para aquela padaria, naquela noite, com aquele outro infeliz que encontrou o fim da linha num tiro de calibre 12? "Não é problema meu, não tenho nada com isso", pensou Rangel, tentando encontrar a velha indiferença que sempre o acompanhava no trabalho. A indiferença que mantinha sua lucidez, mesmo vendo muito da miséria humana todos os dias.
Mas hoje ela parecia ter se retirado silenciosamente.
O jardim Itamaracá ficava depois de uma esquina.
- Em que rua você mora?
Riquinho explicou.
- Qual o seu nome?
- Henrique - respondeu o menino.
- Quantos anos tem?
- Faço 12 em dezembro.
As ruas foram ficando mais escuras e estreitas à medida que Rangel penetrava no bairro. A iluminação de rua se tornava menos constante. Pouca gente nas calçadas àquela hora. Rangel reduziu a velocidade, a ponto de poder ouvir os pneus esmagando pedriscos no asfalto velho.
- Você já fez isso alguma vez? Assaltar.
Riquinho sacudiu a cabeça com ênfase.
- O que te levou a achar que hoje seria uma boa ideia pra começar no crime?
O menino, constrangido, baixou os olhos e não respondeu nada.
O carro avançava lento, se arrastando sobre as rodas. Depois de uma curva, Riquinho exclamou:
- A minha mãe!
Rangel viu uma mulher pequena junto a um portão, com um bebê nos braços. Ela tinha uma expressão que denotava tristeza e esgotamento, mais do que preocupação. Os cabelos estavam soltos e desgrenhados, mas mesmo assim Rangel percebeu que deviam ser bonitos, de um negro profundo, se fossem bem tratados.
Rangel parou o carro. Riquinho tirou o cinto de segurança e correu para a mãe.
- Onde você se meteu, peste? Estava morta de preocupação. Já são quase meia noite!
O menino não respondeu, entrou rapidamente de cabeça baixa, tentando evitar um sopapo da mãe que pegou de raspão em sua orelha, provocando um estalo.
- A senhora é a mãe do Henrique? - perguntou Rangel, percebendo imediatamente a inutilidade da pergunta.
- Sou sim. O que ele fez?
Amália perguntou com uma expressão angustiada, olhos muito abertos, boca trêmula, sobrancelhas unidas no meio da testa numa ruga de preocupação. Parecia esperar uma desgraça.
- Ele... não fez nada.
Rangel olhou para dentro da casa e notou Riquinho observando pela fresta da porta.
- Encontrei ele zanzando aqui perto e achei melhor trazê-lo logo para casa. Não é bom ficar na rua a essa hora, ainda mais sendo uma criança.
O alívio no rosto de Amália foi imediato, como uma transfiguração. As expressões se suavizaram. O olhar exibiu um sossego exausto.
- Obrigada. O senhor desculpe mas não tenho nada pra lhe oferecer, estou sem café ...pronto ...
- Não há de quê - apressou-se em responder. - Não me custou nada trazer o garoto - Depois de uma última olhada para a porta atrás da qual Riquinho se protegia, despediu-se: - Boa noite pra vocês.
- Obrigada de novo - disse Amália enquanto Rangel girava em direção ao carro.
Antes de dar a partida Rangel esperou a mulher entrar em casa. Na porta ela deu uma última olhada em direção a ele e pareceu quase sorrir. Naquele rosto castigado por uma rotina que Rangel podia apenas intuir, parecia ser coisa rara um esboço de sorriso.
Quando a porta da casa se fechou, o policial deu a partida e se afastou dali.
Só muitos dias depois Amália ficou sabendo que um menino tinha morrido ao tentar praticar um assalto. Puxou conversa sobre o caso com o filho mais velho.
- Você não conhece esse Carlos que morreu, Riquinho? Diz que era da mesma escola que você.
Riquinho ficou pálido e não conseguiu responder coisa alguma. A mãe percebeu imediatamente a reação do filho.
- Você sabe alguma coisa sobre essa história do assalto, moleque?
Foi como se um buraco tivesse sido aberto instantaneamente sob seus pés. A terra girou, mas o menino aguentou firme.
- Como é que eu vou saber, mãe? Tô sem ir pra escola por causa da pandemia, cê não lembra não?
Amália ficou desconfiada, mas achou melhor deixar a conversa pra lá. Talvez fosse só impressão, acostumada a ver malfeitos em toda parte.
A padaria tinha uma câmera de vigilância. Ficava sobre o caixa, voltada para a porta, mostrando a registradora, parte do balcão e a entrada do lugar. Na rápida investigação que se seguiu, o perito Danilo comentou com Rangel sobre o ocorrido. Um perigo danado reagir daquela forma a um assalto a mão armada. Por que diabos não sacou a arma?
- Era uma criança. Pra quê matar alguém jovem daquele jeito? Nem sabia direito o que estava fazendo.
- Antes ele do que eu, te garanto que eu sacava antes dele terminar a frase "é um assalto" e já mandava os miolos dele pro espaço. Mas veja que engraçado: hoje tudo quanto é lugar tem câmera de vigilância. Até uma espelunca como aquela em que você entrou, que diria. Mas naquele vídeo da padaria teve uma coisa que chamou atenção do Jorge. Você conhece o Jorge, o técnico encarregado de vídeos e áudios das investigações do D.P. Ele ficou cabreiro.
Rangel ficou calado esperando o que estava por vir.
- É que tinha outro menino na cena. Ele fica parado na altura da porta, o rosto escondido por um boné e pela máscara. Não tem a menor condição de ver o rosto dele, mas certeza que participou do assalto. Entrou com a mão embaixo da camiseta como se escondesse uma arma. Chegou junto com o assaltante e ficou se virando o tempo todo para a rua, como se estivesse de guarda. O problema é que você não fez a menor menção a ele no seu relatório. Nomeou um único assaltante. O balconista, apavorado como estava, não deve nem ter notado a presença do outro pivete. Mas você notou. Foi até ele depois que o outro foi baleado, parece que conversou com ele um pouco, antes do menino sair correndo dali.
Rangel ficou calado, frustrando a espera de Danilo por alguma explicação. O perito resolveu ir direto ao ponto:
- O que foi aquilo? O que aconteceu ali, Rangel?
- Está no relatório. Um bandido armado. Sozinho. Reagi. O balconista atirou. Fim da história.
Danilo balançou a cabeça, cismado.
- Cara, se essa ideia não fosse totalmente absurda, eu diria que você deu mole pra vagabundo.
Rangel fuzilou o colega com o olhar. Danilo ergueu as mãos em sinal de paz:
- Absurdo, já disse, eu sei. Não tá mais aqui quem falou.
A investigação foi concluída antes que o corpo de Carlos, vulgo Bacuré, fosse sepultado num túmulo modesto. Um menino que não tinha nenhuma passagem anterior pelo DEPAI ou Conselho Tutelar. Até aquele fatídico crime, era tão inocente quanto qualquer garoto entrando na pré-adolescência. Ninguém estava disposto a perder tempo investigando as motivações que o levaram a entrar armado naquela padaria - nem mesmo os pais dele, que já imaginavam que aquele encrenqueiro não daria boa coisa. Jogaram porções de terra sobre o caixão e deram as costas para a cova, já preocupados com o dia seguinte, como sobreviver.
- Corre aqui, Rose, me ajude. Esta tá muito mal!
A voz do médico entrou pelos ouvidos da enfermeira e sacudiu todos os seus neurônios. Antes de perceber o que estava fazendo ela já estava de pé, correndo em direção à urgência e deixando para trás uma caneca intocada de café.
- É uma crise respiratória. Dybbuk com certeza. Olha como a pele dela está vermelha.
Rose observou a vítima. Uma adolescente, pouco mais que uma menina. Foi intubada rapidamente e levada de maca até um dos leitos da emergência. As ações repetidas tantas vezes tornaram-se mecânicas. agulhas, catéteres, mangueiras de respiradores, aparelhos emitindo sinais de alarme e luzes assustadoras. Os equipamentos movidos com a precisão que se obtém pela prática, remédios administrados em doses de eficiência longamente comprovadas em duros serões no plantão médico. A garota não reagia, porém. Pressão arterial altíssima, atividade pulmonar mínima, convulsões.
- Cinco de fenitoína, rápido. Ela vai infartar!
Rose obedeceu mecanicamente e ajudou a reter os braços da paciente enquanto ela se debatia descontrolada. Finalmente o medicamento começou a correr por suas veias e a crise convulsiva arrefeceu. Rose enxugou o suor da testa e olhou para a jovem. O rosto ainda apresentava o terrível vermelhão, típico da Dybbuk, mas a expressão suavizara, parecia calma, dormindo. A maca foi rapidamente transportada para a enfermaria. Não havia leitos, de modo que a maca da ambulância foi requisitada pelo plantonista para manter a enferma deitada. Enquanto isso uma ambulância a menos estaria à disposição para atender os inúmeros chamados de emergência - supostos casos de Dybbuk, infartos, acidentes de trânsito, ferimentos com arma de fogo ... pois a despeito da pandemia, os outros infortúnios continuavam ocorrendo sem trégua. A enfermeira notou a expressão irritada dos paramédicos ao serem informados de que teriam que esperar para voltar às ruas. Debateram um pouco com o médico, provavelmente reclamando que aquela era a quinta vez que aquilo acontecia só naquela semana. Reclamação inútil, é claro, que em nada modificava a situação de penúria do hospital de campanha de Uberlândia.
Mais tarde, depois de se certificar que a nova paciente estava estabilizada, Rose voltou para a cantina do hospital. A sua caneca de café ainda estava lá exatamente como havia deixado, o líquido preto dentro dela transformado num piche congelante. Ela despejou o café na pia e experimentou a garrafa térmica. Vazia, claro. Àquela hora da tarde seria pedir muito uma garrafa de café fresco. Rose sentou-se resignada, e apoiou um pouco a cabeça entre as mãos. Se havia um lado bom em trabalhar de forma tão frenética, era justamente o fato de não sobrar tempo para bobagens, ou para remoer angústias como a agressão de que foi vítima no ponto de ônibus. O que aquela mulher estava pensando, agindo daquela forma tão odiosa? Rose sacudiu a cabeça tentando afastar a lembrança amarga. Olhou para a televisão ligada, sem som. Leu pela legenda do noticiário que a notícia era algo sobre a pandemia. Só podia ser. O assunto mais comentado do século. As imagens mostravam um hospital de campanha no nordeste, com freezers e caminhões frigoríficos do lado de fora. A manchete anunciava que não havia equipes funerárias nem vagas suficientes nos cemitérios para todos os mortos por Dybbuk. O enterro de uma vítima do H5N2 era uma operação de risco que exigia procedimentos específicos: não podia haver velório para evitar o risco de contágio. Os coveiros tinham que se paramentar como se fossem infectologistas em área de contaminação. Tudo aquilo demandava tempo e dinheiro, mas o vírus não se preocupava com nada disso e as mortes se sucediam numa espiral crescente.
Outra notícia: insumos para hospitais de campanha. A manchete avisava que a aquisição de novos respiradores tinha sido paralisada por uma ação do Ministério Público federal contra o SUS, por suspeita de superfaturamento nos contratos. Com a quebra da necessidade de licitação para as compras emergenciais de insumos contra a pandemia, alguém em Brasília devia ter achado que podia extrapolar. E como extrapolou. Um respirador custava dez vezes mais que o preço de mercado já inflacionado pela demanda gigantesca. A notícia também dava conta da falta de outros produtos indispensáveis, como sedativos para intubação e os bons e velhos aventais descartáveis, há tanto tempo indisponíveis para os profissionais de saúde. A tudo isso, o Ministério da Saúde respondia com evasivas e garantias de que "tudo estava sendo feito" para debelar a doença.
Rose ficou deprimida. Quando seu colega entrou na cantina com novidades este sentimento ficou ainda pior.
Romualdo trabalha como auxiliar de enfermagem e tinha acabado de ouvir um boato nos corredores do hospital sobre a inauguração de um novo hospital de campanha.
- Tá suspensa até segunda ordem! - sentenciou, com uma euforia equivocada na voz.
- O HCamp de Uberaba que aliviaria a carga aqui em cima da gente tá com o projeto engavetado. Falta material, profissionais e dinheiro. Acabei de saber pela Izilda da lavanderia.
A fonte não era das mais confiáveis mas a informação batia com o que Rose tinha acabado de ver na TV.
Estava na hora de voltar ao trabalho. Fim de intervalo. Rose devia agradecer por hoje ter conseguido parar pelos quinze minutos inteiros sem ser interrompida por alguma emergência. Saiu da cantina sem dizer nada para Romualdo. Foi até a ala de UTIs e preparou uma vasilha com água, esponja, sabão. Depois entrou no quarto onde o caminhoneiro permanecia num sono inabalável. Talvez o feliz fosse ele, dormindo profundamente em coma enquanto o mundo se dissolvia. A enfermeira começou a higiene do paciente, notando seu corpo esquelético e algumas escaras que começavam a vencer a diligência dos auxiliares de enfermagem. Começou a tratar delas e imediatamente se arrependeu do pensamento egoísta que teve. Qualquer coisa era melhor que aquele sofrimento alienado, sem chance de lutar. Fazia também um bom tempo que Rose não tinha notícias da família do paciente. Ligavam insistentemente pedindo informações; depois as ligações começaram a rarear, até que pararam completamente. Já fazia o que, um ano desde o último telefonema de algum parente dele? Rose olhou para o rosto magro, a boca levemente aberta com o tubo do respirador entre os lábios... Um esquecido. Na memória de seus entes queridos talvez ele já estivesse morto. Mas ainda estava ali, lutando. Um caso raro, alguém que permanecesse tanto tempo enfrentando a Dybbuk. Na verdade, até onde se sabia, era um caso único no mundo. Os últimos exames mostravam que o vírus continuava presente, embora numa espécie de hibernação, no corpo daquele homem. Seu sistema imunológico agiu em diferentes órgãos, como os pulmões e o coração, mas então os exames acusaram a presença do H5N2 em outras partes do corpo, como intestino e fígado. Parecia uma brincadeira de esconde-esconde, em que o organismo não conseguia criar anticorpos suficientes para destruir o vírus totalmente, com a rapidez necessária para impedir que se alastrasse por outros órgãos. Rose sempre gostou das aulas de microbiologia e infectologia na faculdade e, para ela, aquele caso do caminhoneiro em coma era uma aberração interessantíssima. Teoricamente, o estado vegetativo do coma induzido devia contribuir de alguma forma para a hibernação viral, impedindo que o corpo fosse aniquilado pela Dybbuk. Ao mesmo tempo, a falta de atividade contribuiria para a estabilidade do vírus, que mantinha o sistema de defesa do corpo sob controle, como uma ocupação após uma invasão.
O doutor Salomão entrou no quarto para sua ronda de fim de tarde e notou a enfermeira observando atentamente o homem no leito.
- Um desafio à ciência - disse ele, como se tivesse lido o que se passava na cabeça da inteligente enfermeira. Ele já conhecia sua curiosidade, conhecimento e talento para a infectologia. Aconselhou-a a fazer faculdade de medicina e se especializar na área. Mas soube que isto era um sonho praticamente impossível diante das obrigações da moça. Cuidar de um pai inválido praticamente sozinha certamente não facilitava as coisas.
- É como se se formasse uma ligação simbiótica entre o Bernardo e o H5N2. Um armistício que mantém os dois vivos, se preferir. Gostaria de saber o que aconteceria se um dos lados resolvesse quebrar este "tratado de paz". Tenho reportado em publicações científicas o que tem se passado com ele - comentou, olhando para o caminhoneiro. - Acredito que essa longevidade do vírus no corpo dele ainda trará alguma resposta importante sobre uma vacina ou remédio mais eficiente.
- Como pode um vírus que causava pouco mais que uma conjuntivite se transformar numa máquina de matar tão eficiente? - perguntou Rose, mais para si mesma que para o médico a seu lado.
- É da natureza desses microorganismos viver em constante mutação. Existem até agora pelo menos duzentas cepas do H5N2 capazes de causar os sintomas da Dybbuk. E este número não para de crescer. Nossa imunidade adaptativa não é tão versátil, nem tão rápida. Por isso é vital dar a ela alguma ajuda na forma de uma vacina eficaz. O quanto antes. Estudar o caso do Bernardo pode ser útil. Nunca o vírus ficou tanto tempo em atividade num paciente. As mudanças e adaptações por que passa nos darão um mapa detalhado do comportamento da doença. Conhecendo como ela funciona fica mais provável encontrar um jeito de pará-la ou evitá-la.
- O que acontece se a vacina não chegar? - perguntou Rose.
As sobrancelhas de Salomão se tensionaram e a testa ganhou rugas de preocupação.
- Não quero pensar nessa hipótese.
- Sabe aquela moça que chegou semana passada? - perguntou Romualdo. Rose olhou para ele com uma expressão irônica. Como se lembrar, quando recebem dezenas de novos pacientes por dia?
- Aquela adolescente, que está no leito 12 da UTI. Então, tem mais dois pacientes da família dela internados aqui. Um menino de 10 anos, irmão dela, na enfermaria, e um idoso, 70 anos, avô dos dois, na UTI também. Moram todos juntos e foi só uma questão de quem adoeceria primeiro.
Aquilo estava acontecendo com cada vez mais frequência. Famílias dando entrada em hospitais de campanha com Dybbuk. Algumas praticamente desapareceram, engordando os registros de óbitos. Pais, mães, irmãos, maridos, esposas, todos juntos naquela batalha que parecia perdida.
Rose foi ao almoxarifado tentar encontrar mais uma bolsa de soro, quando notou algum tumulto na entrada do hospital. O segurança tentava conter uma pessoa. Uma voz feminina se elevava, gritando, pedindo para entrar. A atendente tentava explicar que visitas eram proibidas para a própria segurança dos pacientes e dos parentes deles. Mas a mulher parecia fora de si. O rosto dela estava escondido por trás dos ombros largos do segurança.
- Meus filhos, meu pai. Preciso cuidar deles, preciso ver se estão bem.
Rose ficou intrigada e resolveu se aproximar. Viu o rosto da mulher histérica e a reconheceu imediatamente. Era aquela que a agrediu no ponto de ônibus, dias atrás. Um rosto que, por mais que tenha tentado, Rose não conseguiu apagar da memória.
A mulher desfalecia em meio a sua angústia:
- Por favor, vocês têm que salvar minha família. Não tenho mais ninguém no mundo.
- A senhora tem que sair - foi dizendo o segurança, enquanto a levava rumo à porta.
- Espere! - disse Rose, com voz firme. - Qual o nome da senhora?
- Maria de Fátima - disse a outra, com olhos arregalados. Certamente ela não reconheceu a enfermeira que tinha agredido de forma tão covarde.
- A senhora tem que ficar na sua casa, isolada em quarentena.
- Como é? - perguntou a mulher, ne defensiva.
- O quanto antes, a senhora precisa fazer o teste para Dybbuk. Se todos os seus parentes pegaram a doença é quase certo que a senhora também tem o vírus, ainda que sem apresentar sintomas por enquanto. A senhora fez o teste?
- Não... respondeu a outra, confusa.
Rose pegou um papel e uma caneta sobre o balcão e anotou um endereço.
- Vá a esta central de testes ainda hoje, e depois espere o resultado em casa, isolada. Se sentir algum sintoma de Dybbuk vá imediatamente a uma unidade de saúde. A senhora pode estar correndo perigo. Se confirmar o contágio e iniciar o tratamento bem cedo, a chance de se recuperar é bem maior.
- Eu estou ótima! - respondeu Maria de Fátima, arrogante. - Meus parentes é que estão mal. Em vez de ficar aqui cuidando da minha vida por que você não está lá tratando deles?
A mulher saiu do hospital batendo os pés com firmeza no chão e enxugando as lágrimas, sem pegar o papel com o endereço.
- Gente teimosa! - comentou a atendente.
Rose não respondeu. Ficou ainda um segundo com a mão estendida, oferecendo aquele socorro categoricamente recusado. Sentiu-se frustrada. A ignorância também matava, ela já tinha visto isso mais de uma centena de vezes.
Ficou observando a porta de saída que se fechava, ruminando a própria inutilidade de seu esforço em orientar a mulher que a agrediu. Virou sobre os calcanhares, jogou o bilhete na lixeira e se encaminhou para a ala de UTIs.
Muitos dias se passaram com a mesma rotina massacrante. Rose se inteirou dos nomes dos parentes de Maria de Fátima. Passou a encarar seus casos como um desafio pessoal. Dedicou-se a eles de perto. Fernanda, a adolescente; Bruno, o irmão mais novo dela; seu Gumercindo, o pai de Maria de Fátima.
Em poucas semanas Fernanda apresentou uma considerável melhora e juntou-se ao irmão na enfermaria. Era uma moça forte e, embora outros tão ou mais fortes do que ela tivessem perdido a vida para aquela doença, por motivos que a ciência ainda não explicava no caso dela o tratamento estava sendo eficiente. Contra as expectativas mais óbvias, o avô dos dois também se recuperava e teve alta da UTI. Isto dava a Rose uma dupla satisfação: pela recuperação dos pacientes e por vencer a maldita doença.
Numa tarde, enquanto os parentes de Maria de Fátima se recuperavam bem na enfermaria, Rose foi chamada à entrada do pronto-socorro para ajudar a atender mais uma vítima da doença.
Era Maria de Fátima. O vermelhão já tinha se espalhado por seu rosto e mãos. Ela estava intubada e inconsciente. Os médicos acudiram com agilidade, Rose fez os procedimentos iniciais de socorro com agilidade e competência.
- O caso é grave. Vamos já pra terapia intensiva - disse o médico de turno.
Maria de Fátima começou a convulsionar, tal como sua filha quase um mês antes. Sofreu uma parada cardíaca e foi reanimada com o desfibrilador. Mas não ficou estável. Seguiram-se uma parada respiratória e uma nova parada cardíaca. Rose injetou epinefrina na dose indicada pelo médico. Houve um momento de desespero.
- Vamos logo. Reaja - falou baixinho Rose enquanto administrava o tratamento de emergência.
Uma semana se passou depois da grave crise de Maria de Fátima. Entre um caso e outro, Rose sempre passava alguns momentos junto ao leito de UTI da paciente, até que ela apresentou melhora e foi transferida para a enfermaria.
Não peça lógica sobre este interesse por uma pessoa contra a qual teria motivos de sobra para antipatia, não é assim que as emoções funcionam. Talvez a dedicação se deva à família de Maria de Fátima, que nada tem a ver com o comportamento grosseiro da mulher; talvez seja uma curiosidade científica... talvez seja apenas cuidado profissional...
Numa destas visitas Rose estava perto do leito de Maria de Fátima quando a paciente começou a convulsionar. O tom avermelhado da pele tornou-se mais vivo. Os gestos descontrolados, a cabeça enterrando-se no travesseiro como se quisesse separar-se do corpo. A enfermeira agiu rápido. Deu o alarme, impediu que a mulher mordesse a própria língua colocando um protetor nos dentes dela; percebeu a falência respiratória e rapidamente fez a intubação. Num segundo o Ambu estava instalado e bombeando ar para os pulmões enfraquecidos.
Longos minutos depois os dedos das mãos de Rose estão na chamada "fase 5". Começou com uma leve sensação das pontas dos dedos contra a borracha do Ambu. Comprime, relaxa, comprime, relaxa, num ritmo permanente, não muito rápido, não muito lento, na velocidade certa, não muito forte, não muito fraco, na intensidade certa, o suficiente para manter a vida que se encontra presa ao balão. O corpo da enfermeira faz o que é necessário; a cabeça, porém, começa a sofrer uma tortura sutil e perniciosa. Como uma gota d'água que cai constantemente sobre a testa, parecendo causar um buraco como ácido na madeira. Alguns colegas acorreram ao alarme, viram que a situação estava sob controle e voltaram para seus pacientes, prometendo reaparecer tão logo um leito de UTI fosse liberado.
Rose notou depois da primeira meia hora que as juntas das falanges começavam a se ressentir daquele esforço repetitivo. Uma dor aguda, como pequenas agulhadas nas articulações dos dedos. Como quando as mãos ficam expostas ao frio por muito tempo e as extremidades começam a dar sinal de vida - ou de morte por congelamento. Era a fase dois.
A enfermeira pensou em pedir ajuda, mas para quem? O movimento naquela manhã estava acima do normal. Todos corriam de um lado para outro acudindo pacientes, muito mais numerosos do que as equipes destinadas ao socorro.
Comprime, relaxa, comprime.. velocidade certa, intensidade certa, uma vida ligada ao balão. A dor se transformou em cãibra, como se seus dedos enrijecessem a cada segundo. Fase 3.
Rose olhou para o rosto inconsciente da pessoa entubada. Uma mulher de meia idade, que talvez tivesse sido bonita na adolescência. Teria vivido tudo que podia? Teria alcançado seus sonhos, teria amado? Imaginou as pessoas para quem ela é especial: algumas delas estavam ali naquele mesmo hospital, separadas dela por uma simples divisória de vinil. Todos dependendo da força da mão direita dela para que aquela doente tenha alguma chance de voltar para casa. Pessoas que nunca saberão como aquele gesto de apertar o ambu é importante, que nunca saberão o quanto uma enfermeira se dedicou àquela tarefa por uma pessoa que a havia humilhado e agredido fisicamente.
Os dedos ficaram anestesiados; fase quatro.
Agora a paralisia começa a se espalhar pelos metacarpos. O macio ambu se transformou numa pedra. Quanto tempo já se passou? 45 minutos? Mais? A tarefa está se tornando impossível. O limite das forças de Rose se aproximam. Mas ela não vai parar. Não sabe como continuar, mas não vai parar. De alguma forma, não vai deixar aquela mulher arrogante, mal educada e insuportável morrer.
- Um respirador foi liberado. Tragam a paciente da Rose - anunciou o plantonista.
Aliviada por um segundo apenas, Rose logo se perguntou se o aparelho tinha sido liberado porque alguém recebeu alta ou porque a Dybbuk fez mais uma vítima.
Começou a massagear a mão paralisada enquanto corria para a emergência a fim de admitir mais algum paciente.
Muito mais tarde, Rose foi informada de que Maria de Fátima morreu logo depois de ser instalada no leito de UTI. Recebeu todos os recursos necessários, mas não reagiu. Rose sentiu como se ouvisse o sinistro apito no monitor, a linha sem ondulações que confirmava que o coração tinha parado de bater. Hora do óbito, 15h45. Rose não sabia o que estava fazendo àquela hora. Mas, fosse o que fosse, pareceu algo sem importância alguma.
Ela foi até o salão do necrotério nos fundos do hospital. Ficou alguns minutos olhando para o corpo da mulher, pensando na família dela que se recuperava rapidamente a poucos metros dali. Lágrimas de frustração surgiram em seus olhos. Pensou no desespero de Fernanda, Bruno e seu Gumercindo quando recebessem a notícia da morte de Maria de Fátima. Que alegria encontrariam na própria cura com uma notícia daquelas? Pensou nos próprios dedos endurecidos, ainda doloridos, depois de longos minutos que pareciam horas acionando o Ambu para que a pessoa que habitava aquele corpo pudesse respirar. Agora não há mais pessoa, apenas um corpo, uma coisa sem vida, vazia. Por que será que as perdas são tão mais marcantes que as conquistas? As derrotas tão mais presentes na memória do que as vitórias? A enfermeira se lembrava de cada paciente que viu morrer naquele hospital. Fantasmas que a assombram à noite, antes de dormir, perguntando se ela tem certeza que fez tudo a seu alcance para evitar suas mortes. E o fato é que ela não tem resposta para esta pergunta. Não terá resposta quando Maria de Fátima aparecer em suas lembranças fazendo o mesmo questionamento.
Rose ouviu o som de aplausos, assobios festivos, gritos de "viva" vindos do corredor. Algum paciente recebia alta naquele momento.
Era mesmo importante celebrar vitórias como aquela. Celebrar, para não esquecer que a maldita doença, mesmo com toda sua letalidade e violência, com todo seu arsenal de dores e angústias e desesperos... não ganha todas.
Os números atropelam a realidade, primeiro assustam e escandalizam. Milhões de doentes, milhares de mortos, "x" casos graves, "Y" casos mais leves, "n" assintomáticos que transmitem o vírus com seu descaso e egoísmo, julgando-se maiores que a própria vida.
Com o tempo, porém, depois de uma repetição inevitável, o terror matemático parece desvanecer, perder sua força. Mil pessoas mortas ao redor do país num único dia não escandalizam tanto quanto uma tragédia aérea, uma batida de trens, um afundamento de transatlântico. Logo a imprensa se vê com a dura tarefa de lembrar que cada número representa uma vida que se perde, uma dor para várias outras pessoas próximas do morto, parentes, amigos, colegas. Ainda assim, a atenção do governo parece mais voltada para o impacto econômico das medidas sanitárias, com fechamento de comércio e paralisação de obras. Os olhos do poder miram muito adiante, nas próximas eleições presidenciais, e ninguém quer arrastar para si a fama de "destruidor da economia". Mesmo que isso custe algumas vidas a mais, o pragmatismo manda "lamentar as mortes e seguir adiante".
Parece inevitável contar os corpos como quem conta ovos num cesto ou meias numa gaveta. Até que um desses números ganhe a cor, o cheiro, a personalidade e o sorriso de alguém querido. Aí a realidade se impõe, dolorosamente.
Chegou uma hora em que as inclinações da população começaram a se aglomerar em duas vertentes distintas. As duas convencidas do acerto de suas ideias e atitudes.
Uma delas enveredou pelo caminho perigoso do negacionismo, priorizando a "vida normal", a necessidade de trabalhar, interagir, fazer compras no supermercado, ir à escola. A grande maioria, bem intencionada. Preocupada com a fome que campeava sem freio estimulada pela pandemia que paralisava as atividades econômicas. Muitos tinham o argumento forte da necessidade. Tinham que alimentar os filhos, manter a família. Que lógica haveria em escapar da morte por Dybbuk apenas para morrer de fome?
O outro grupo achava que todo esforço era necessário para acabar com a pandemia. "Primeiro as vidas, depois a economia". Havia uma certa inocência em imaginar que fosse assim tão simples separar uma coisa da outra. Mas as pessoas adeptas desta ideia também eram, em sua maioria, bem intencionadas. Muitos perderam alguém para a doença, ou sofreram eles próprios a angústia de não conseguir respirar, sentir a pele queimar sem alívio... Eram poucos, mas alguns escapavam do vírus. E se tornavam arautos da "ciência", da resiliência, da prioridade no combate à Dibbuk, custasse o que custasse.
Outubro se aproximava, e com ele, a eleição. À medida que o dois de outubro se tornava mais próximo, a polarização se intensificava. Os diferentes entendimentos se materializaram em dois candidatos. A situação, pela economia; a oposição, pela "ciência". O presidente pleiteava a reeleição, tentando convencer o eleitor que agiu certo ao optar por manter a economia funcionando. Era chamado de genocida pelo opositor, que via no relaxamento das regras de combate à doença uma sentença deliberada de morte para milhares de brasileiros.
Uma minoria sufocada e sem voz se espremia entre essas duas forças políticas. Sem um candidato representativo com verdadeiras chances de vitória nas urnas, essa parcela da população sentiu-se pressionada - mesmo coagida - a tomar um dos dois partidos predominantes. Nem sempre essa pressão se fez apenas no campo das ideias e do debate. Houve cenas de violência e intolerância política, tanto entre os simpatizantes dos candidatos mais bem cotados, como contra os que se diziam neutros ou adeptos de uma insípida "terceira via". Estes eram acusados de omissos, irresponsáveis e até covardes. A insanidade coletiva não permitia um olhar diferente da média, um procura por alternativa menos radical. Nesse ambiente o isolamento social foi deliberadamente ignorado, principalmente pelos apoiadores do governo. Mas mesmo os do outro lado, incoerentemente, quebraram as regras de combate à doença para se agruparem nos comícios e passeatas do partido. O governo respondia com uma nova modalidade de manifestação, em que grandes passeios eram feitos de moto atravessando as principais cidades do país. A novidade logo foi batizada de "motociata".
Os confrontos tornaram-se mais frequentes, empurrados pelo ódio político, mas também pela fúria raivosa que se manifestava nos doentes de Dibbuk. E foram muitos os novos casos da moléstia, que era impulsionada pela quebra dos protocolos de combate à pandemia.
Um governista matou um opositor durante uma festa, diante da família da vítima, porque a fachada do evento ostentava as cores do partido contrário ao governo. Um simpatizante da oposição, por sua vez, matou um amigo de longa data depois de uma discussão, só por diferenças ideológicas e partidárias. O debate político ficou em segundo plano. A violência ganhou destaque na disputa. Houve confrontos de rua, badernas, prisões nem sempre justificadas. No pano de fundo, as campanhas seguiam com passeatas, motociatas, comícios e programas eleitorais na mídia. Os casos de violência eram explorados no horário eleitoral de parte a parte, cada lado tentando vender a imagem de vítima da intolerância do adversário.
A nação se dividiu ao meio.
A apuração dos votos revelou a necessidade de um segundo turno para decidir a eleição presidencial. Nos estados, cada facção ficou com metade dos governos. No legislativo, houve uma forte predominância da situação na Câmara e no Senado. Mas a oposição mais radical ficou com uma representação suficiente para promover o embate político e até o travamento dos projetos governamentais.
Definidos os cenários na maioria dos estados e no Congresso, as atenções se voltaram para a disputa do segundo turno entre os dois candidatos à presidência. Ninguém trouxe nenhuma novidade relevante, nenhum projeto inovador, nenhuma solução para os problemas do povo. As duas campanhas se limitaram a trocas de ofensas, disparos de fake news, denúncias de crimes, corrupção, perversões sexuais e até canibalismo por parte do candidato do governo, que aparecia num vídeo participando de um rito tribal no Haiti em que um corpo humano era preparado num grande caldeirão e, supostamente, participando do banquete antropofágico. Claro que esta, como todas as outras denúncias, eram refutadas com os argumentos de "montagem", "mentiras", "declarações fora de contexto".
Depois de muita sujeira e baixo nível, quem sobreviveu viu a oposição subindo ao poder por uma margem apertada de votos.
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