ENFERMIDADE - PARTE 2

     





     A ignorância, a teimosia e a falta de compaixão podem matar muito mais que uma doença sem remédio.



PARTE 2 - O COMEÇO DO FIM 



    1 - Bernardo acordou num quarto de hospital, com um tubo levando oxigênio para os pulmões e uma agulha acessando a veia do braço direito. Meio tonto, custou a se dar conta de onde estava. Abriu os olhos mas logo foi obrigado a fechá-los de novo, irritados com a luz no teto. Tentou se mover, mas uma dor aguda atravessou-lhe os membros e o pescoço, como um filete de chumbo derretido percorrendo suas artérias. À sua volta notou aparelhos luminosos emitindo um sinal sonoro discreto, um respirador que subia e descia no ritmo de lufadas de ar dentro de um cilindro de acrílico, uma pequena bandeja de metal junto à cama com uma seringa preparada. Ruídos de gente andando atarefada no corredor em frente ao quarto chegaram a ele. Com dificuldade ergueu um pouco a cabeça e viu gente vestida de branco com máscaras e óculos de proteção passando apressadamente em frente à porta. Algumas gritavam instruções para pessoas fora das vistas de Bernardo. 

     Deixou a cabeça cair sobre o travesseiro e arrancou o tubo que tinha enfiado na garganta. O esforço o exauriu de uma forma inexplicável. Ficou alguns momentos olhando para o teto, sem saber exatamente onde estava e como tinha chegado ali. Era um hospital ou pronto-socorro, não havia dúvida. Mas onde? Ficou pensando nisso até que uma enfermeira  entrou no quarto. 
     - O senhor acordou! Incrível! - ela estava completamente paramentada. Usava touca, óculos, máscara, luvas e um avental cobrindo todo o corpo. Mas mesmo por trás de todo aquele equipamento, Bernardo conseguiu notar o quanto ela parecia transtornada com o fato dele ter despertado. Aquilo o assustou. A moça aproximou-se da cama e apertou um botão vermelho sobre a bandeja de metal, perto da seringa que Bernardo já havia notado. Não houve qualquer barulho, mas logo um homem usando os mesmos equipamentos de proteção entrou. 
     - Os sinais vitais parecem em ordem, doutor Salomão.
     O homem parou perto da cama observando os sinais luminosos nos aparelhos em redor da cama. Sem dizer nada, puxou a pálpebra esquerda de Bernardo e iluminou o olho exposto, provocando uma dor lancinante no paciente. 
     - Sinais neurológicos também parecem ok. Impressionante... 
     Doutor Salomão olhou para  Bernardo e só então dirigiu-se a ele:
     - Como se sente, senhor Bernardo?
     A voz do doente saiu seca, rouca, quase um sussurro.
     - O que eu estou fazendo aqui?
     - O senhor teve um mal estar, precisou de socorro e foi trazido para cá. Não se lembra de nada?
     Bernardo sentiu-se confuso. Fez um esforço de memória para tentar reconstituir os fatos ocorridos antes daquela estranha situação. Tudo que conseguiu lembrar foi da descarga dos fertilizantes no galpão da Cooperativa de Produtores de Cana-de-açúcar, em Ribeirão Preto. Depois daquilo, tudo o que restou foi uma total escuridão. 
     - Eu... estava na estrada... eu tinha trazido uma carga... o protesto, o protesto tinha acabado. O protesto...
     O médico franziu o cenho. Notou a confusão do paciente. Algo esperado e natural, dada a situação. 
     - Senhor Bernardo, o senhor passou por um choque muito forte. Quando chegou aos nossos cuidados, sua condição era gravíssima. 
     Salomão pegou a prancheta no pé da cama e leu por alguns segundos antes de continuar.
     - Estava insconsciente, tinha sofrido duas paradas cardiorrespiratórias, tendo convulsões. Quando chegou aqui, já estava em coma induzido. Nossa equipe de emergência o manteve nesse estado por um bom tempo, até que se tornou possível deixá-lo voltar à consciência. Mas isso não aconteceu espontaneamente.. até agora. Eu assumi seu caso algumas horas depois que chegou a este hospital, portanto desde quase o início de sua crise. logo descobrimos que o senhor também tinha contraído o novo influenza H5N2. Dybbuk, como foi batizada a doença causada por ele. 
     - Onde... 
     - Uberlândia, hospital de campanha contra o H5N2.
     - Há quanto tempo... estou aqui...
     Uma breve hesitação precedeu a resposta. Mas ele tinha o direito de saber; que fosse naquele momento.
     - O senhor está aqui há 4 anos, senhor Bernardo.
     O caminhoneiro arregalou os olhos, tentou se levantar mas foi contido pela enfermeira. Quatro anos! Aquilo era impossível. Parecia fazer apenas alguns momentos que ele tinha tomado o rumo de casa, onde a esposa o esperava. Não podia acreditar naquilo.
     Um apito estridente começou a soar ao mesmo tempo que uma luz vermelha se acendeu num dos monitores do quarto.
     - Enfermeira, 50 mg de Dormonid, imediatamente.
     - Sim senhor. 
     - O senhor precisa se acalmar, senhor Bernardo. Está muito debilitado. Relaxe...
     - Eu preciso ir pra casa! Amália está me esperando, as crianças...
     - Descanse, senhor Bernardo. Descanse.
     O medicamento começou a fazer efeito. Bernardo sentiu os olhos pesados, os braços flácidos, e logo mergulhou novamente nas trevas. 
     - Batimentos voltaram ao normal, doutor.
     - Ele vai dormir agora. Não tinha esperança que ele fosse acordar. Sem dúvida é o paciente mais antigo de Dybbuk do mundo. Quatro anos sofrendo os efeitos da doença... Fique de olho nele, Rose - disse para a enfermeira. 
     - Sim, doutor Salomão.
     O médico infectologista voltou para sua sala e deu um telefonema, comunicando o despertar do paciente à direção do hospital, para que a família fosse avisada. Depois pegou um grosso livro da estante, com o título: "Dybbuk - formas de contágio, tratamento e prognóstico", de um médico americano chamado Harvey Rodmann. Foi ele o primeiro a notar que a nova variação do vírus influenza tinha potencial para se tornar uma pandemia, três anos e meio atrás. Judeu, decidiu se inspirar na mitologia judaica para dar nome à doença causada pelo H5N2.  Na verdade é impreciso dizer que se trata de um novo virus. O H5N2 é um velho conhecido da humanidade que atacava quase que exclusivamente aves e, nos humanos, não provocava mais do que um resfriadinho ou uma conjuntivite fraca. Mas o subtipo evoluiu, sofreu mutações e tornou-se um assassino monstruoso. Dybbuk, na cultura judaica,  é um espírito maligno que se apodera do corpo das pessoas e destrói suas personalidades, causando danos psíquicos e físicos. "Muito adequado", lembra-se Salomão de ter pensado ao saber da escolha do nome para aquela nova ameaça. Era exatamente aquilo que o vírus fazia com suas vítimas. Implacável, impiedoso e eficiente. Não sobrava nada do organismo em que se instalava. Tanto tempo depois do "paciente zero" aparecer, ainda não se encontrou uma vacina, e os remédios usados no tratamento são pouco mais do que improvisações com outras drogas usadas em doenças parecidas -  um coquetel eclético e volátil, que também causava danos aos pacientes - em alguns casos, quase tão graves quanto a própria doença. 
     Salomão não consegue deixar de pensar que o fato de Bernardo ter ficado em coma tanto tempo foi uma bénção para o motorista. Evitou que ele experimentasse alguns dos sintoma mais destrutivos da Dybbuk. Dybbuk... apesar do acerto na escolha do nome, o mal ficou conhecido mesmo pelo apelido: "a enfermidade", dando uma conotação sombria e específica para um termo tão genérico. Alguns também a chamam de "vermelhão", por causa da coloração da pele dos infectados durante as crises que marcam a doença.
     No começo imaginou-se que a mutação viral atacasse o sistema respiratório. As primeiras vítimas morreram de parada cardiorrespiratória. Foi assim com o estivador de Hong Kong que perdeu a vida em Santos logo no início da crise. Lin Jao era seu nome. Durante a viagem não apresentou nenhum problema de saúde. Depois de desembarcar no Brasil, morreu em menos de cinco dias. Outros tripulantes do navio em que estava também ficaram doentes. Cinco morreram rapidamente, outros três faleceram depois de um longo período internados. 
     Quase ao mesmo tempo começaram a surgir novos casos da doença misteriosa. Um caminhoneiro morreu em Florianópolis quando voltava do porto de Santos com uma carga de equipamentos eletrônicos que tinham chegado no mesmo navio que trouxe também Lin Jao. Em Belo Horizonte, a filha de outro caminhoneiro foi parar na UTI com crise respiratória grave; o pai dela também estivera em Santos poucos dias antes. 
     No Recife a estranha doença também fez uma vítima. Novamente, um caminhoneiro. Essa sequência de casos logo despertou o alerta da saúde pública, mostrando que o epicentro da moléstia seria o porto de Santos, e as rodovias, seu principal eixo de transmissão. "Gripe Rodoviária", foi o primeiro nome dado à doença. E a população reagiu de forma irracional, num pânico violento.
     Os caminhoneiros, que até muito recentemente tinham sido transformados em heróis nacionais depois da greve que tinha conquistado redução em pedágios e preços de combustíveis, passaram a ser vistos como párias transmissores de doenças. Algumas cidades chegaram mesmo a bloquear o acesso dos caminhões; em outros lugares, houve ataques aos motoristas. Um deles foi agredido por um grupo ao parar num restaurante de beira de estrada para almoçar. Por pouco não morreu linchado. Em menos de um mês, nada sobrou do sucesso conquistado na greve. Nem mesmo as promessas do governo foram cumpridas: os combustíveis continuaram subindo, os pedágios não reduziram suas tarifas. Foi como se nada tivesse acontecido. 
     O doutor Salomão se recordava dessas notícias enquanto folheava o livro sobre a Dybbuk. Ficou impressionado com a capacidade de desvario e irracionalidade que a população mostrava em situações de emergência. O pior era que os ânimos não se voltavam para medidas eficientes de combate à infecção: na verdade, todos buscavam um "culpado" e faziam dele seus alvos. No caso, os caminhoneiros eram a bola da vez. 
     O estado de coisas ficou ainda pior quando novos sintomas começaram a aparecer, e o que parecia ser uma doença respiratória mortal se mostrou muito mais agressiva, atacando outros órgãos do corpo humano - principalmente o sistema nervoso.
     Somados às crises respiratórias agudas e aos quadros de pneumonia generalizada, despontaram alguns surtos de demência e psicose; ataques de histeria e a perda do controle dos próprios atos por parte de vários pacientes. Estes passaram a atacar outras pessoas, invadir pontos comerciais, quebrar carros estacionados, num espasmo de fúria sem precedentes e sem nenhuma motivação aparente. Estavam fora de si. A violência desses surtos se tornou um efeito colateral da Dybbuk, que levou a inúmeras mortes em diversas cidades do mundo. E o número de infectados se expandia assustadoramente rápido. Três meses depois do primeiro caso confirmado da doença, a Dybbuk foi declarada uma pandemia. A mais agressiva da história da humanidade. 
     Os pensamentos do doutor Salomão foram interrompidos pelo interfone:
     - Doutor, o paciente Bernardo Faria teve uma parada cardíaca. Está sendo socorrido pela equipe de emergência.
     - Estou indo para aí - respondeu o médico.






     2 - Quando surgiram os primeiros relatos de uma nova doença se espalhando pelo mundo, a reação inicial das pessoas foi de uma preocupação negligente. Muitos pensaram que aquilo era algo a ser visto no noticiário da noite, longe da sua rotina, provocando comoção por vítimas da Ásia ou Europa, negando-se a imaginar que o vírus poderia bater à sua porta. Era como um filme assistido no conforto do lar, refestelado numa poltrona,  entre um balde de pipocas e uma garrafa de cerveja gelada. Como se fôssemos dotados de algum poder ou proteção sobrenatural, especial, que nos diferenciasse dos outros povos. Uma ilusão doce que substituía uma realidade monstruosa. 
     Não foi diferente na família de Amália. Ninguém ali se preocupou demais. Riquinho trazia alguns relatos confusos de professores e posts em redes sociais, fazendo alarde sobre a morte que se espalhava entre as pessoas. Também trazia junto com a lição de casa alguns folhetos explicando a importância de lavar as mãos... Para Amália eram medidas simples de higiene que se aprende mesmo na escola - não uma maneira de evitar a morte. Aquela história de um bicho-papão invisível não a assustava. Provocava no máximo uma curiosidade divertida dos relatos do filho excitado com as notícias que ouvia dos colegas. 
     - Diz que morreu um monte de gente no estrangeiro - ele contava à mãe. 
     - Não pode ser verdade, filho. Não dê ouvidos a esses contos de assombração.
     O menino não encontrava argumentos para discutir o mérito das novidades que trazia da rua. Abaixava a cabeça, pensativo e mudo.
     - Vai lavar as mãos pro almoço. Isso sim é verdade, tá naquele folheto que a professora de ciências te deu.
     O que preocupava realmente a moça não era essa "lenda urbana" surgida do nada. Era o marido.
     Bernardo já devia ter chegado em casa há muito tempo. Tinha ligado para ela na sexta-feira avisando que o protesto tinha acabado e tomava o rumo de Goiânia. Passou a sexta, o sábado, e nada do marido chegar. Veio o domingo e nenhum ruído de caminhão estacionando na frente da casa. Tudo bem, ele talvez tivesse resolvido aproveitar um pouco o fim de semana em algum puteiro de estrada... não seria a primeira vez. Ainda mais que ele e seus companheiros de profissão tinham conquistado a simpatia do país inteiro. Não faltariam comemorações ao longo do caminho. 
     Amália ficava se repetindo essas reflexões na esperança de se convencer de que estava tudo bem. Mas o calendário mudou de semana e nenhuma notícia chegou; nenhuma explicação para a demora, nenhum telefonema tranquilizador. A ansiedade da esposa só fazia crescer. 
      A porta da frente se abriu bruscamente e tirou Amália de seus devaneios. 
     - Chegou aqui, finalmente.
     Amadeu entrou batendo a poeira dos sapatos e tirando o boné da cabeça. 
     - Ele chegou, pai? - animou-se Amália. 
     Amadeu demorou um segundo para entender do que a filha estava falando.
     - O que, o Bernardo? Nada ainda daquele traste? Não, filha, não é dele que estou chegando. É disso aqui - estendeu um papel com um carimbo para a Amália.
     Havia muita coisa escrita nele. Mas o mais importante estava em letras grossas e pretas, no meio de um carimbo: INTERDITADO.
    - Tem um papel igual a esse pregado na porta do bar. Me tiram o pão da boca, os desgraçados. Me amarram as mãos!
     As ordens de interdição tinham começado na cidade logo no início da semana. Primeiro pela região da 44, onde floresce o comércio popular com feiras de ambulantes, lojas de roupas e galerias atacadistas. Tudo foi fechado. Na sequência as ordens de quarentena também se espalharam por outros pontos da cidade. Primeiro no comércio de rua, depois até os shoppings receberam ordem de fechar as portas. Amadeu tinha esperança de esquecerem seu pequeno comércio de bairro afastado, um barzinho com duas estantes de secos e molhados que nem merecia o nome de mercearia. Até então nenhum fiscal da prefeitura tinha se lembrado dos bairros mais afastados e a ordem de interdição geral era discretamente ignorada por todos. Mas aquilo mudou. 
     - O que vamos fazer, pai?
     Amadeu não soube o que responder. Já tinha sido difícil sobreviver durante o protesto de caminhoneiros, que deixou o comércio sem produtos e as estradas bloqueadas. As pessoas nem tiveram tempo de respirar e já estavam obrigadas a parar tudo de novo.
     As economias de Amadeu já tinham sido gastas para se manter e ajudar a filha há muitas semanas. Não era tanto dinheiro assim, mas serviu para evitar que todos passassem fome durante a greve. O problema é que não tinha sobrado mais nada. A filha, ocupada com duas crianças, mal tinha tempo para cuidar da casa. Que dirá prestar serviços de arrumadeira para as donas de casas chiques do setor Bueno. O quadro era desanimador, e a única resposta que Amadeu encontrou foi uma tentativa de dar esperança para a filha.
     - Nós vamos dar um jeito - disse enfim, tentando acreditar no que afirmava.
     A noite caiu quente e seca. Um céu estrelado cobria o mundo. Não havia sequer o alívio de uma brisa noturna para atenuar o calor escaldante. As vozes de alguns vinhos conversando em cadeiras colocadas nas calçadas se espalhavam pelo ar, misturadas ao odor agressivo de uma valeta repleta de esgoto na equina. O cheiro desagradável e as vozes desagradáveis pareciam duelar pela atenção dela. Frases soltas bailavam por alguns momentos no ar misturadas ao fedor, e depois desapareciam, incompreendidas e desconexas como murmúrios entrecortados de risos e gritinhos eufóricos. Os  pensamentos de Amália, de qualquer forma, estavam muito longe das fofocas da vizinhança. Nada do que relatavam poderia lhe interessar.
    Amália olhava para o alto, desalentada, pensando no marido. "Onde você está, Bernardo"? A cada dia que passava crescia nela a certeza de que algo ruim tinha acontecido. E como iria lidar com aquilo? Sozinha com duas crianças, uma delas um recém-nascido, enquanto o mundo parecia enlouquecer com histórias de terror que se repetiam de boca em boca. Não via uma saída para aquela situação.
     Ela olhou para os dedos dos pés em chinelos velhos, pisando o chão empoeirado do pequeno quintal na frente de casa. Há quanto tempo não fazia as unhas dos pés? E das mãos? Um corte de cabelos, uma maquiagem diferente... achou graça pensar naquilo quando tudo desabava em sua volta. Nunca deu muita atenção às exigências da vaidade feminina. Não começaria justamente naquele momento. Mas não custava sonhar com outra vida, em que as dificuldades não fossem tão massacrantes; onde houvesse um resquício de conforto, um espaço ainda que pequeno para a futilidade de um batom novo. Aquilo seria bom. Ela teria o que cortar em caso de necessidade. Não era assim no mundo real, no seu mundo. 
     Naquela noite o sono custou a chegar. 
     No dia seguinte, Riquinho voltou da escola com olhar arregalado e expressão assustada. Amália notou imediatamente que havia algo errado. Quis saber o que tinha acontecido. 
     O menino passou a atropelar as palavras, obrigando a mãe a pedir-lhe calma, e que começasse pelo começo.
     - Hoje aconteceu uma coisa bizarra na escola. Coisa de louco, nunca vi antes! 
     O garoto se sentou numa das cadeiras da cozinha e esperou a respiração voltar ao normal, sob o olhar curioso e já assustado da mãe. Então retomou a história.
     - A gente estava no intervalo, correndo e brincando no pátio. Uns meninos que gostam de mexer com os outros chegaram perto do Julinho. Já te falei dele, meu colega gordinho, que não conversa com quase ninguém e vive sendo xingado pelos brigões da turma. O Julinho não tem amigos, é tímido, nem reagia. Engolia os insultos e até um e outro safanão que tomava de vez em quando. Mas hoje aconteceu alguma coisa diferente com ele. O menino começou a ficar vermelho que nem um peru. Se levantou do banco do pátio, agitado, esfregando as mãos... quando o outro moleque, que a gente chama de Bacuré, tentou empurrar ele, Julinho pegou o braço do menino e torceu o pulso dele com toda força. Nem deu tempo do outro gritar, levou um soco do Julinho no meio da fuça. Depois que caiu no chão, ainda aguentou outros murros na cara, com os braços presos pelos joelhos do Julinho em cima dele louquinho, alucinado. O valentão ficou estirado no chão, inconsciente, sangrando pelo nariz e apanhando, apanhando. Julinho só parou de socar quando o professor de matemática chegou correndo e tirou ele de cima do Bacuré. E a senhora sabe, o professor é um homem grande... mesmo assim teve dificuldade pra segurar o Julinho. Se ele não tivesse chegado acho que o Bacuré tinha morrido ali mesmo. Depois de dominado, espumando de ódio pela boca, Julinho ainda ficou gritando totalmente despirocado, sem dar a menor bola pro professor falando pra ele se acalmar. Os outros alunos viram tudo, sem conseguir reagir. Nunca vi isso antes, juro. Ainda mais num menino moleirão e tranquilo como aquele. Parecia que tinha o diabo no corpo, cruz-credo!
     Riquinho interrompeu o relato respirando pesado. Foi até a pia e pegou um copo de água, que engoliu de uma tragada só. Amália ficou olhando para o filho. Sabia da capacidade de exagero dele, mas mentiroso o menino não era. Ela quis saber o que aconteceu com o pequeno agressor depois daquilo.
     - A gente voltou pra aula. Julinho e o outro menino não voltaram pra sala. Vi o que levou a surra na enfermaria, quando passei em frente depois do sinal pra ir embora. Ele parecia um boneco de cera de tão branco, quer dizer, menos pelas manchas de sangue no rosto e na roupa. No pátio, tinha uma ambulância parada e alguns alunos reunidos fofocando, com caras de assustados. Dentro da ambulância, a senhora não vai acreditar: o Julinho ainda tava estrebuchando, gritando, vermelho que nem um pimentão. Tinha passado mais de meia hora da briga, e o moleque ainda tava desvairado. Juro. Fiquei impressionado. Aí trouxeram o outro menino, ele não queria entrar na ambulância, parecia apavorado com o colega lá estrebuchando... mas acabou entrando junto com o professor. Fecharam a porta da ambulância e levaram os dois não sei pra onde. 
     Amália ficou olhando o filho quando a história terminou, sem saber o que pensar. Nunca tinha visto Riquinho tão assustado. Aquilo não tinha sido uma simples briga de moleques, foi algo bem mais grave. Parece que o mundo estava mesmo se tornando um lugar maluco. Se é que não era desde a Criação... 
     O celular começou a vibrar sobre a mesa da cozinha. Amália atendeu. Uma voz desconhecida falava do outro lado:
          - Alô, boa tarde. Por favor, a senhora conhece um senhor Bernardo Silva, caminhoneiro?
     Amália engoliu em seco. Imediatamente soube que receberia uma notícia ruim. 







     3 - A ambulância entrou com sirenes estrilando ao máximo. Os socorristas desceram a maca onde o menino continuava gritando, olhos arregalados, pele do rosto extremamente vermelha. Mesmo contido por tiras reforçadas de couro e velcro, forçava os braços e chegava mesmo a sacudir a maca com o peso do corpo. Estava em fúria. 
     - O que aconteceu com ele? - perguntou a enfermeira da emergência enquanto encaminhava a criança para dentro do pronto-socorro. 
     - Sinceramente? Não faço a mínima ideia. Nunca vi algo assim. - o socorrista do Samu parecia assustado. E ele já tinha visto muita coisa na profissão.
     O professor que ajudou a separar a briga também desceu da ambulância, um pouco trêmulo, esfregando os dedos das mãos. Estavam manchados de sangue, mas ele não tinha notado isso.
     - É seu? - perguntou outra enfermeira do plantão. 
     Só então o professor se deu conta de seu estado. 
     - Não... respondeu vacilante.
     - É dele? - continuou a enfermeira, apontando para o menino que se debatia na maca.
     - Não, também não, eu acho...
     - De quem então?
     - Do outro menino... o da briga. 
     - Ah, tem outro?
     O motorista da ambulância se meteu na conversa:
     - Ele está ali dentro, parece em choque.
     A enfermeira olhou para o interior da ambulância e viu um menino de cabelos encaracolados, de um ruivo desbotado, sardas nas bochechas e nariz vermelho de sangue. O olho direito estava bastante inchado, assim como um dos pulsos. Um exame mais detalhado mostrou que ele tinha perdido um dente. Estava ali, encostado numa poltrona do compartimento de transporte de pacientes, parecendo meio tonto, sem entender como tinha chegado ali. Um dos socorristas tentava estancar o sangue do nariz.
     - Eu assumo daqui - disse a enfermeira. 
     O garoto foi colocado numa cadeira de rodas, trêmulo, olhando para o chão. 
     - Como é seu nome?
     Nenhuma resposta.
     - Me mostre onde dói, por favor.
     Nada. o menino parecia desacordado, olhos vidrados no chão, confuso.
     - Professor, espere aqui enquanto a gente atende esses dois. Temos que conversar sobre o que aconteceu.
     A cadeira de rodas levando o ferido disparou pelo corredor da emergência, rumo a um dos leitos, levando aquele corpo inerte sem ânimo sequer para erguer a cabeça.  
     Depois que os meninos foram acomodados, Julinho dopado com uma dose de tranquilizante, a enfermeira voltou para conversar com o professor.
     - O que aconteceu com esses dois?
     - Uma briga - respondeu - Eu fui separar, mas quando cheguei o estrago já estava feito. E o Julio...
     - Julio?
     - ... o menino que chegou histérico. Ele parecia enlouquecido. Fora de si. Conheço ele, garanto que é um garoto tranquilo, meio tímido... nunca tinha se metido numa briga antes... mas ele parecia... possuído.
     - Eu vi. Sabe se ele tomou alguma droga?
     - Não acredito que tenha. Ele não é assim, não tem esses problemas...
     - Pode ter experimentado pela primeira vez, só por farra...
     - Duvido - sentenciou o professor.
     - De qualquer forma quando os pais chegarem vamos fazer um toxicológico completo. 
     - Ele... parece louco - disse o professor, olhando assustado para o aluno meio escondido por uma das cortinas da enfermaria de emergência. 
     O garoto dormia com o semblante carregado, as sobrancelhas unidas, os lábios meio abertos e os dentes cerrados. Mergulhou num sono agitado a poder de tranquilizantes. Só então um médico conseguiu examiná-lo.
     - E o outro menino?
     - Carlinhos, do quinto ano. Repetente, problemático, brigão. Ele sim, está sempre metido em confusões. Não faz sentido.
     - O que? quis saber a enfermeira.
     - Nem em sonho o Julinho levaria a melhor numa briga com esse marginalzinho. Quero dizer, Julinho é um menino doce, obediente, muito inteligente... adora matemática. Parece até gostar mais dos livros que dos colegas. A típica vítima de bullying numa escola pública como a nossa. Ele jamais teria capacidade de infligir um castigo desses a um cachorro, muito menos a um colega!
     - É , mas parece que foi exatamente isso que aconteceu - comentou a enfermeira. - Todo mundo tem seu ponto de ebulição.- A moça olhou para o professor antes de se afastar já preocupada  com novos pacientes da estranha gripe que se espalhava pela cidade e pelo mundo;  e resumiu o que achava daquela história da briga: -
    - Sempre tem o dia da caça...
     O professor olhou de volta para a enfermeira, sem ânimo para achar graça no comentário. 
     Duas horas depois, os pais de Julinho estavam na sala de espera do hospital, junto com o professor. Os pais de Carlos não tinham se dado ao trabalho de aparecer, achando que era só mais uma das muitas brigas do filho. 
     O médico que atendeu os meninos veio falar com eles:
     - O filho de vocês não se machucou na briga. Tirando algumas articulações das mãos luxadas e esfoladas, não sofreu nenhum arranhão. 
     - Graças a Deus - exclamou a mãe.
     - Mas...
     Os pais prenderam a respiração, esperando a conclusão do médico.
     - O caso dele é grave. A pressão está altíssima, assim como uma febre que não está cedendo aos antitérmicos. Ainda não achamos a causa, mas tudo indica que seja uma infecção séria. Ele está sob efeito de sedativos, e mesmo assim o batimento cardíaco está descompassado e acelerado. Vai ter que ficar aqui até descobrirmos o que há de errado com ele.
     - Meu filho! - chorou a mãe.
     - Mas ele tem uma saúde de ferro, doutor! -  comentou o pai. - Tirando o excesso de peso, não tem nenhum sinal de doença. Nunca fica gripado!
     - Vamos continuar investigando o que ele tem, e tratando a febre. Vou tentar antibióticos de alto espectro. Enquanto isso peço que fiquem calmos. Volto com mais informações assim que tiver novidades. 
     Os pais desfaleceram na poltrona da sala de espera, ao lado do professor. Ficaram ali, em silêncio por longas horas, tentando entender o que estava havendo. Sem sucesso.
     Por duas semanas, Julinho transitou entre a semiconsciência e as trevas absolutas. Não conseguia tranquilidade suficiente sequer para se alimentar, por isso passou a receber nutrição por uma sonda. No terceiro dia de internação acordou por poucos minutos. Tempo suficiente para reconhecer a mãe ao pé do leito, sentir os lábios dela sobre sua testa, os dedos em seus cabelos. Depois caiu no torpor da febre de novo. Os momentos de aparente sossego foram ficando cada vez mais raros, surgidos entre crises convulsivas e paradas cardiorrespiratórias. Nenhuma droga parecia fazer efeito consistente contra o mal que acometia a criança. Os médicos, atônitos, experimentavam de tudo, mas conseguiam muito pouco. Reduzir temporariamente a febre, estabilizar a respiração por alguns minutos, regular o batimento cardíaco... até que tudo voltava a desabar como um castelo de cartas no quarto de hora seguinte, como se nada tivesse sido feito.
     No fim desse longo calvário, o menino parou de respirar, sem reconhecer ninguém à sua volta. A pele do rosto ainda mantinha a estranha vermelhidão do dia do ataque ao colega na escola. 
     Julio Gonçalves tinha oito anos de vida. Queria ser engenheiro. 






     4 - Depois que a descarga do fertilizante terminou, Bernardo ficou ansioso por pegar a estrada e chegar logo em casa. Ainda tinha um bom pedaço de chão pela frente, e talvez a viagem fosse dificultada pela quarentena que fechava tudo ao longo da estrada. Mas ele tinha combustível, uns biscoitos na cabine, os indispensáveis rebites se o cansaço se estendesse diante de seus olhos. E o "trezoitão", caso precisasse se defender de alguma eventualidade. 
     Comprou o revólver depois que foi assaltado numa rodovia do Amazonas. Feito refém, ficou amarrado no meio da floresta por mais de 20 horas até que um caboclo o encontrou, libertou suas amarras e o guiou de volta à cidade. Bernardo não tinha bem certeza que a arma seria útil no caso de um novo assalto ou pioraria toda a situação. Mas estava decidido a não ficar nunca mais largado no mato, sem saber o que ia acontecer em seguida. 
     Depois de Ribeirão Preto, as cidades menores começaram a desfilar, a espaços regulares, pela janela do caminhão. Passou por viadutos, uma velha ponte da estrada de ferro, trevos de entrada com  letras de concreto identificando as localidades... 
     Pelo caminho recordava a bela imagem da esposa, antecipava a alegre algazarra que o filho mais velho faria ao vê-lo de volta, lembrava do recém-nascido, que mal teve tempo de conhecer antes de ter que viajar a trabalho de novo, e ser engolfado pelo protesto que mal conseguia entender e que o reteve longe de casa por muito, muito tempo. Seria bom rever seu pessoal. Até o sogro, rabugento, turrão, mas uma boa pessoa.
     Atravessou o rio Grande no horário que previa, sem dificuldades. Passou pela balança da divisa de estado entre São Paulo e Minas Gerais, desembaraçou-se da burocracia e retomou a viagem, ligeiro. O encontro com a família, pelos seus cálculos, seria no fim da madrugada. Talvez no amanhecer, se tivesse algum percalço na jornada. Seria um dia quente, típico de Goiânia. Um calor seco que parece incendiar o ambiente e bloquear qualquer brisa de alívio. Muito calor... só então Bernardo percebeu que estava com muito calor. Constatou, assustado, que tinha percorrido uma grande distância sem se dar conta do que fazia, num devaneio, como se tivesse sido teleportado. Surpreendeu-se de não ter causado nenhum acidente durante aquele apagão. Suava abundantemente. O pequeno ventilador colocado sobre o retrovisor não estava cumprindo a missão de refrescar a cabine. Abriu a janela mas logo se arrependeu. Uma lufada de ar quente invadiu o caminhão sem cerimônia, piorando o mal estar. Bernardo enxugou a testa com a mão trêmula, e notou que ela começava a apresentar manchas vermelhas e translúcidas. Olhou para o espelho e encarou os próprios olhos esbugalhados, injetados de sangue. Assustou-se com o vermelho de sua face... Tentou puxar o ar, mas não conseguiu. Sufocava. Era como se tivessem colocado uma tampa de bueiro sobre seu peito dificultando a respiração. Sem olhar pelo retrovisor, Bernardo jogou o caminhão para o acostamento num movimento brusco. Precisava parar o veículo antes de desmaiar. O pneu dianteiro do lado direito atropelou o meio-fio, seguido pelos três outros eixos do caminhão, causando um baque e uma violenta sacudidela. O caminhão só parou metros adiante. Ficou meio entalado no gramado que margeava a pista. Tentou abrir a porta da cabine, mas não conseguiu. Um acesso de tosse o fez engasgar, lutando bravamente para respirar. 
     O mundo inteiro começou a ficar escuro, girando velozmente diante dos olhos dele. Em segundos, estava desmaiado, sufocando ruidosamente. 
     Quando abriu os olhos viu sobre ele um homem de uniforme da polícia rodoviária e uma moça que tentava abrir-lhe a boca. Lutou para se desvencilhar mas foi contido por mãos fortes do policial e um outro homem, com macacão de socorrista. 
     - Ele está ardendo em febre - disse a moça com o tubo na mão.           
     Bernardo lutou um pouco, mas logo a exaustão se impôs e tudo rodopiou de novo, enquanto a luz o abandonava lentamente mais uma vez. 
    A partir daquele momento Bernardo ignorou tudo o que aconteceu com ele. O caminhão tinha sido encontrado pelo policial rodoviário, jogado ao lado do acostamento da rodovia. Bernardo estava quase morto, pulso fraco, temperatura elevada. O policial chamou a ambulância da concessionária que cuida daquele trecho de rodovia. Depois dos primeiros socorros no acostamento, Bernardo foi colocado na ambulância e levado para o hospital mais próximo, em Uberaba. 
     O médico que se encarregou dele observou o paciente por um momento e não demorou a arriscar um diagnóstico. "É a enfermidade", disse apenas, deixando alarmados seus companheiros de turno. O médico colocou luvas, máscara, óculos protetores antes de estabilizar   Bernardo. Logo que o perigo mais imediato se afastou, o chefe do plantão foi avisado da situação. 
     O estado de saúde de Bernardo era tão grave que ele precisou ser colocado em coma induzido. Foi removido para um quarto separado dos outros, longe da enfermaria, e isolado dos demais pacientes. Passou a ser monitorado com frequência, pelo menos de duas em duas horas. Nenhum sinal de melhora surgia, não importava o que os médicos tentassem. 
     O dia amanheceu, chegou a tarde, veio a noite, sem mudança no quadro do paciente. O policial rodoviário que socorreu Bernardo tinha deixado os documentos dele num saco plástico, com o chefe do plantão. Não encontraram nenhum telefone para aviso em caso de emergência. E na correria dos atendimentos que se seguiam, ninguém se lembrou de procurar uma forma de contactar os parentes do caminhoneiro. Só na manhã do terceiro dia de internação um enfermeiro se lembrou de verificar a situação daquele homem. Verificou os documentos, pediu à polícia que tentasse localizar sua família em Goiânia. Até que essa providência fosse tomada, passaram-se mais dois dias. 
     Finalmente, com Bernardo sem nenhuma mudança significativa em seu quadro de saúde, uma atendente pegou as informações levantadas pela polícia e ligou para um número de celular que lhe foi passado. Não sabia o nome de quem deveria atender, sabia apenas que provavelmente seria alguém que conhecia aquele caminhoneiro.
     O telefone tocou duas vezes. No terceiro toque, uma voz de mulher respondeu.
     - Alô?
     - Alô, boa tarde. Por favor, a senhora conhece um senhor Bernardo Silva, caminhoneiro?
     No dia seguinte Amália estava na recepção do hospital em Uberaba, conversando com um dos médicos. Em redor deles, um movimento constante de auxiliares de enfermagem carregando macas, pacientes chegando de ambulância ou a pé, lotando a recepção do pronto-socorro. Alguns eram levados às pressas para dentro, inconscientes. Outros davam sinais claros de dificuldade para respirar. Em um ou outro, notava-se uma tonalidade vermelha na pele, que começava a ser vista como sinal de condenação. 
     Amália foi levada a um pequeno consultório com uma mesa, duas cadeiras e uma maca. Pelo médico, ficou sabendo da crise respiratória do marido, a perda de consciência, o agravamento dos sintomas com uma febre irresistível, vermelhidão na pele...
     - Fizemos exames, dona Amália, e confirmamos que o senhor Bernardo pegou "vermelhão". A senhora ouviu falar dessa doença?
     Amália fechou os olhos úmidos de lágrimas e abaixou a cabeça, confirmando que sabia do que se tratava. 
     - O que eu devo fazer? - perguntou, atordoada.
     - O governo  montou um hospital exclusivo para pacientes com esta nova enfermidade. Um lugar com mais recursos e menos risco para os doentes. Foi inaugurado ontem em Uberlândia e acreditamos que já esteja recebendo pacientes. Achamos que o melhor é transferir o senhor Bernardo para lá, onde terá mais chances de uma recuperação rápida e completa. 
     Amália não conseguia ouvir o que o outro dizia. Apenas concordou com tudo, assinou autorizações, pegou as coisas do marido: um saco plástico com as roupas dele, uma carteira, uma aliança de ouro, um relógio digital. Amália foi informada de que alguns outros objetos haviam sido apreendidos pela polícia: um revólver 38 sem registro e cinco cartelas de comprimidos estimulantes, os chamados "rebites".  
     Na manhã seguinte foram de ambulância para o hospital de campanha em Uberlândia, a 70 quilômetros. A viagem foi feita com Bernardo isolado no compartimento de pacientes do carro, acompanhado de dois socorristas com macacão esterilizado, máscaras, toucas e óculos protetores. Amália foi na frente com o motorista. O dia estava radiante: sol alto, nenhuma nuvem no céu. O ambiente contrastava com o estado de ânimo sombrio da mulher. Viajava sem notar a paisagem do trajeto, a mente acorrentada a aflições de todo tipo.
     Logo na entrada do hospital em Uberlândia uma enfermeira se ocupou do paciente enquanto Amália preenchia a ficha de internação. Foi orientada sobre as regras do hospital pela balconista. 
     - O paciente vai ter que ficar isolado numa ala de UTI. Só pessoal médico vai poder se aproximar dele. A doença que ele tem é muito nova, pouco se sabe sobre ela. Mas já é sabido que é muito contagiosa. Qualquer deslize pode transmiti-la para outras pessoas. Essa é uma medida de segurança para a senhora e sua família também. 
     - Mas... eu não vou poder fazer uma visita de vez em quando?
     - Enquanto os médicos não liberarem, está fora de questão - respondeu a balconista, direta.
     - E quanto tempo será que isso vai levar?
     - Impossível dizer - disse a funcionária. 
     Amália sentiu uma ponta de angústia. Não teve tempo de se despedir, com o marido inconsciente. Não teve nem mesmo tempo de olhar para ele uma última vez. Agora era tarde, a maca que levava Bernardo já tinha desaparecido pelos corredores do hospital. Abraçando a sacola de plástico com as coisas do marido, Amália ficou olhando pateticamente para o balcão da recepção. Descobriu que ainda tinha lágrimas para derramar. 
     - Eu vou ficar aqui -  ela disse. 
     A balconista ergueu os olhos da tela do computador e a encarou. 
     - Não adianta ficar aqui. A regra não vai mudar e seu marido não está em condições de ver ninguém.
    - Vou ficar - insistiu. - Pode ser que ele acorde, pode precisar de alguma coisa. Não vou sair daqui.
     A funcionária tentou convencer Amália de que o homem estaria em boas mãos e receberia todos os cuidados de que necessitasse. De nada adiantou. Amália se dirigiu a um pequeno sofá da recepção e ficou ali parada, esperando algum milagre. 
     Horas mais tarde, na troca de turno na recepção, a balconista informou a colega da situação da moça que se recusava a ir embora. Decidiram avisar o diretor clínico do hospital. Ele ficaria contrariado, mas não havia outro jeito.
     O diretor clínico estava lendo, com o cenho cerrado, o último boletim epidemiológico da nova febre. Os números eram alarmantes. Em Hong Kong, apontada como o epicentro da praga, o número de mortos e infectados tinha disparado de um dia para o outro. O mal se espalhava também pelo sul da China, principalmente em Cantão. Outras partes do planeta sofriam com o vírus, transmitido provavelmente pelas rotas do agitado comércio de Hong Kong, escondido entre tripulações aparentemente saudáveis, até que se alastrou tão intensamente que ficou impossível descobrir a origem de casa nova infecção. Era a transmissão comunitária solidificando-se por todas as partes do mundo. Europa, África, Américas. Brasil, Uberlândia, aquele hospital. O diretor fez uma conta simples. Era o segundo dia de funcionamento do hospital, e quase todos 80 leitos de enfermaria estavam ocupados. Nas UTIs, metade das 40 instalações já tinham pacientes. Logo tudo estaria saturado e as equipes do hospital teriam que trabalhar no limite da capacidade. 
     As ponderações do diretor, analisando o documento da OMS e o relatório do próprio hospital que gerenciava, foram interrompidas pela funcionária informando sobre a situação da  esposa de um dos pacientes. Foi convencido de que não teria como resolver aquela questão sem interferir diretamente. Teve vontade de mandar os seguranças botarem a baderneira dali para fora, mas algo o reteve... Não era compaixão. Na verdade, precisava de uma desculpa para se afastar daqueles mapas de epidemia e relatórios de curvas de contágio. Respirar um pouco, ainda que fosse ouvindo os lamentos de uma esposa zelosa.  Pediu, cansado, que a mulher fosse levada à sala dele. Já que não havia outro remédio.
     - Dona Amália, o meu pessoal já lhe informou da situação do seu marido, já explicou que ele não poderá ter contato com ninguém de fora do hospital até ficar bom. O que exatamente a senhora espera conseguir ficando aqui?
     - Ele pode acordar e precisar de mim.
     - Não há chance disso acontecer. Ele está dormindo por indução medicamentosa. Traduzindo, nós estamos fazendo ele dormir para não sofrer com os sintomas da doença que pegou. 
     - Mas se ele melhorar...
     - A senhora será avisada imediatamente. 
     - Tenho que estar por perto. 
     - Não quer então se instalar em algum hotel da cidade? 
     Amália ficou em silêncio. Aquele gasto estava fora de questão. Disse enfim:
     - Vou ficar quietinha na recepção. Não estou incomodando ninguém. Juro que não vou atrapalhar em nada. 
     - Dona Amália, este é um ambiente hospitalar. Mais que isso, um hospital específico para lidar com uma doença nova, mortífera e altamente contagiosa. Ficar aqui é um risco, por mais que controlemos a esterilização dos ambientes. Já imaginou se a senhora pega essa doença e também fica internada? Quem vai cuidar do seu marido quando ele acordar? Quem vai cuidar da sua família? 
     Só naquele instante Amália se lembrou dos filhos deixados em Goiânia com o avô. A realidade se impôs.
     - Jura que vai me avisar de tudo que acontecer?
     - Tem minha palavra. 
     Dentro do ônibus, voltando para Goiânia, Amália esgotou todas as lágrimas que ainda lhe restavam. O que seria dela? Da família? O marido morreria, e a deixaria à própria sorte? 
     O medo do futuro a envolveu como o véu da noite sobre a estrada. 






     5 - O diretor clínico chamou seu especialista em infectologia para uma conversa de fim de noite, antes de ir para casa depois do longo dia. 
     O doutor Salomão entrou e logo notou o ar preocupado do seu supervisor. Sentou-se calado. O diretor estendeu para ele uma pasta com os números da epidemia. Sem abrir a pasta, Salomão deduziu o motivo daquela aparência apreensiva .
     - Tão grave assim? - perguntou, sem necessidade de resposta.
     - Meu amigo, em breve a OMS vai declarar que a febre vermelha é uma pandemia. 
     O termo pairou no ar da sala como um presságio. Pandemia. O pior desafio que a humanidade poderia enfrentar na área de saúde. Equivalente a uma guerra mundial. 
     Os papeis mostravam que o "descobridor" da epidemia tinha escolhido um nome oficial para a febre vermelha: Dybbuk, inspirado num monstro da mitologia judaica. O boletime epidemiológico apontava uma disseminação descontrolada, em todos os continentes. Menos de três meses depois do primeiro caso identificado em Hong Kong, a mutação do até então inofensivo H5N2 estava fora de controle, matando indistintamente entre todos os povos do planeta. 
     - A quarentena não vai impedir a tragédia -  pensou o doutor Salomão em voz alta.
     - Talvez torná-la um pouco menos trágica - concordou o diretor.
     - As pessoas não estão prontas pra enfrentar um inimigo desses sem uma vacina para dar segurança. 
     - Prontas ou não, a luta já se apresenta.
     O diretor abriu uma gaveta da mesa e tirou uma garrafa de uísque e dois copos. Serviu duas doses e empurrou um dos copos para o médico. Virou o líquido na garganta e ficou olhando para o copo vazio, como se procurasse nele a solução para aquele problema.
     - E pensar que tudo começou com um jovem criador de patos de Hong Kong, que reclamou de dor de garganta num posto de saúde local.
     O doutor Salomão ficou quieto. Não havia muito a dizer sobre o começo da pandemia que já não fosse amplamente conhecido.
     Salomão podia imaginar a reação das primeiras pessoas a terem contato com a febre. Um pequeno fazendeiro chamado Zhao Yun, cuidando tranquilamente da própria vida em sua fazenda em Hong Kong, acordando literalmente com as galinhas, cuidando da criação dia após dia. Uma tarde, sente um desconforto na garganta. Começa a tossir. A esposa e os filhos não dão grande importância àquilo; um simples resfriado que logo passará, afinal o pai sempre teve uma saúde de ferro. A família janta unida, compartilha vasilhas e talheres. Zhao vai para a cama, dorme mal, mas na manhã seguinte está disposto a retomar o trabalho deixado na véspera. A tosse o acompanha, os funcionários reparam nisso mas também não dão importância. Trabalham juntos, próximos, ao alcance dos perdigotos de saliva de Zhao, sem proteção alguma. Alimentam os patos, escolhem as aves para o abate, vistoriam a granja de ovos... Sabe-se hoje que Zhao ficou convivendo com os sintomas leves da febre por cinco dias pelo menos, antes de procurar socorro médico. Nesses dias, teve contato com dezenas de pessoas, de sua família e também no trabalho. E mesmo depois de procurar um médico, foi diagnosticado erradamente com uma gripe sem gravidade, medicado com antitérmicos e antigripais e mandado de volta para sua família, onde novamente teve contato com vizinhos, amigos, colegas e parentes. Dez dias se passaram desde o primeiro sintoma. Naquela manhã algo diferente apareceu: uma vermelhidão se espalhou pelo rosto e mãos de Zhao. Sua temperatura subiu bruscamente. Ele foi encontrado desmaiado numa das granjas da propriedade e levado rapidamente para o hospital. Finalmente internado, teve uma investigação mais detalhada da origem daqueles sintomas. Um infectologista analisou uma das amostras de sangue do criador de patos e localizou um vírus de influenza, do subtipo H5N2.  Mas algo estava errado. O vírus apresentava variações de DNA que indicavam uma mutação nunca vista antes. O material foi enviado para a Universidade de Xangai para análise. Lá o professor americano Harvey Rodmann fez novos testes, cruzou dados e disparou o alerta: havia um novo assassino no mundo. A essa altura, Zhao já tinha morrido no hospital, e muitas das pessoas infectadas por ele ainda nem tinham apresentado os primeiros sintomas da doença - tocavam suas vidas normalmente, em contatos com mais pessoas, que tinham contato com mais pessoas e se espalhavam por toda parte: até o porto de Hong Kong, e dele para o mundo, em navios mercantes. 
     Era esta a dinâmica mais provável da gênese da pandemia. Quando a ameaça começou a ser entendida, já estava muitos passos adiante dos cientistas, conquistando espaço mundo afora. 
     - A humanidade já enfrentou inimigos mortíferos antes - disse Salomão, sem tocar no uísque. 
     - Mas nunca antes a humanidade teve esse nível de globalização - ponderou o diretor, enchendo de novo o próprio copo. - As relações são próximas, as distâncias encurtaram barbaramente, praticamente desapareceram. Por conta disso, uma doença que levaria meses para atravessar um oceano há cem anos, agora pode percorrer o planeta inteiro em algumas semanas. E ainda há outro complicador: a arrogância humana chegou a níveis assustadores. Achamos que somos indestrutíveis, senhores absolutos da natureza. Essa arrogância pode matar. 
     Salomão entendeu o que o colega queria dizer com aquilo. E concordou. Muito da possibilidade de salvação estava depositada numa variável simples: a nossa capacidade de aprender uma nova lição.
     E para aprender é preciso humildade.
     Os dois se olharam em silêncio enquanto pelo corredor ecoavam os ruídos do pronto-socorro, onde mais um paciente acabava de chegar. 

     

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