Palestra

 




Não lembro o nome dela. 

Não sei qual era sua profissão, nem sabia naquela manhã por que era importante ouvir o que ela teria a dizer. 

Foi há uns quarenta anos. Eu era um menino com mais vento do que ideias na cabeça, mais interessado em jogar bola no recreio do que ouvir uma palestra no refeitório. 

Mas era obrigatório. Fomos todos intimados. Então, lá estava eu no meio da fila, a caminho do evento. 

Ia com medo, assustado. Pouco antes, na sala de aula, a professora tinha avisado: 

_ A palestrante tem uma deficiência. Ela não tem braços nem pernas. 

Eu nunca tinha visto alguém naquelas condições. Nunca tinha parado para pensar nas pessoas com limitações físicas. Isso simplesmente não fazia parte da minha vida.

A caminho do refeitório, fiquei intrigado: como ela vai chegar ao local da palestra sem pernas? Vai ser deitada numa mesa para falar com a gente? Como vai segurar o microfone sem mãos? Como ela faz pra se vestir, pentear os cabelos? Aquelas perguntas aumentavam meu pavor mais do que atiçavam minha curiosidade.

Entramos no refeitório. A escola toda estava lá. Um burburinho de crianças, falando alto e rindo, dominava o ambiente. Eu, calado, angustiado com a expectativa de ver alguém tão diferente. A diferença incomoda e constrange, nos faz querer virar o rosto e fingir que ela não existe. Mas eu teria que confrontá-la ali naquele refeitório.

A religiosa responsável pelo prédio da escola tomou o microfone, pediu silêncio e falou algumas poucas palavras sobre a palestrante. Senti um gelo na barriga.

A moça foi chamada para a frente da multidão. Fim do mistério: um homem grande e forte a carregava. Não havia pensado naquilo. Tão óbvio! Ela precisaria da ajuda de alguém para chegar até ali. O mesmo deveria acontecer para tudo que ela precisasse fazer no dia a dia. Coisas tão rotineiras como se alimentar ou tomar banho dependeriam da colaboração de alguém. Mas naquela hora não pensei em nada disso. Estava apenas admirado.

A moça era muito bonita, de uma beleza suave, olhos expressivos. Os cabelos lisos e muito pretos estavam presos num rabo de cavalo. Um vestido de cores claras estampado com flores cobria seu corpo. As mangas de babados pendiam, vazias. 

Alguém segurou o microfone para ela. Quando começou a falar, o encantamento se espalhou. A voz era doce, firme e alegre. Parecia música. Eu já não estava assustado. Impressionado era a palavra certa. O que me impressionava não era o que faltava naquele corpo: era o que sobrava naquela personalidade. 

Logo no início ela fez um comentário, como quem conversa com um amigo na esquina:

_ Vocês poderiam ficar com pena de mim. "Coitadinha, não tem braços, não tem pernas". Mas não percam seu tempo com isso.  Vejam por outro lado: eu não gasto sola de sapato!

Não me lembro de muito mais do que ela disse. Mas aquela frase bem-humorada está entre as jóias da minha memória. Não houve um grande sermão, nem lições de moral, nem citações de filósofos, ou, se houve, não me recordo. Apenas uma frase nem tão engraçada assim, um convite para ver as coisas de um jeito diferente, um jeito corajoso. Convite feito por uma pessoa que tinha inúmeros motivos para reclamar da vida, mas preferia rir junto com crianças que não conhecia.

Aquela frase me fez entender porque era importante ouvir a moça.

Nunca mais tive notícias dela. Não faço ideia de como foi sua vida, ou do que ela realizou, mas tenho certeza que não foi pouca coisa. 


(Baseado em fatos reais) 



Comentários

  1. Márcio querido, observações claras e sinceras na pureza de um menino, que o tempo transformou em palavras de uma pessoa madura que , compreendeu as limitações de um ser humano com compaixão, respeito e admiração .
    Você é muito especial. Seu “olhar” a viu.’Bençãos o protejam hoje e sempre. Abraços. Ângela

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas