O primeiro caso de Sherlock


 

_ Très bien! Me respondam agora! Quem comeu todos os biscoitos do chá das cinco?

O forte sotaque francês, mantido apesar dos muitos anos em Londres, destacou ainda mais a irritação com que a pergunta foi feita.

Sobre a mesa na sala de jantar, um bule de chá fumegante, uma cesta de pães, meio bolo de chocolate remanescente da véspera e uma bandeja com nada além de alguns farelos de biscoito: a cena do crime.

_ Ninguém vai confessar? _ perguntou a mãe, pouco esperançosa. _ Bien, quem me apresentar o culpado - ou culpada - até o fim da tarde, será recompensado.

Os três irmãos se entreolharam desconfiados, cientes de que os laços fraternais entre eles tinham se dissolvido instantaneamente, como açúcar no chá.

Enquanto Mycroft e Enola se acusavam mutuamente com os dedos em riste e xingamentos rasgados, o irmão do meio sacou sua lupa de brinquedo que ganhara junto  com um estojo de química para as aulas do colégio. Observou a bandeja, os farelos amanteigados (dos quais experimentou um para fins de comprovação do que se tratava), e a toalha logo abaixo da bandeja. Percorreu toda a extensão da mesa com a lupa na frente do olho. Vasculhou embaixo da mesa e no curto espaço que a separava da janela. Examinou o peitoril da janela e a paisagem do lado de fora. Saiu correndo pela porta e retomou a investigação do lado externo da casa. Observou o gramado logo abaixo da janela e o pequeno caminho de pedras até o portão, estranhamente aberto àquela hora, contra os costumes da casa. Olhou para as tábuas do portão com a lupa e voltou para dentro. A essa altura, Mycroft e Enola já tinham parado de brigar para observar os movimentos extravagantes do irmão do meio. Ele se dirigiu aos dois:

_Poderiam por favor abrir suas bocas e colocar suas línguas para fora?

Mycroft empertigou-se  e fechou as mãos ameaçadoramente:

_ Isto está fora de questão, engraçadinho.

_ Arrá! Quem não deve não teme _ disse Enola, mostrando a língua para o investigador improvisado.

_ A resistência de Mycroft é lamentável, mas não compromete meus esforços _ sentenciou.

O menino sentou-se à mesa e inquiriu a mãe:

_ Qual seria a recompensa?

Surpreendida, a mulher foi enfática:

_ Estará dispensado de suas tarefas domésticas por uma semana!

_ Isto é satisfatório _ retrucou o menino.

_ Então diga! Quem é o culpado, Mycroft ou Enola?

_ Nenhum dos dois!

_ Mais comments est-ce possible? _perguntou a mãe.

_ Elementar, minha cara genitora _ respondeu o garoto sem esconder um certo orgulho. _ Se a senhora observar a toalha de mesa perto da bandeja, notará algumas manchas, na verdade cinco pequenas manchas avermelhadas, como digitais de dedos. Não são de geleia, o cheiro não é de frutas. Essas mesmas manchas se repetem no peitoril da janela que dá para o jardim. Logo abaixo da janela, no lado de fora, há afundamentos no gramado, como pegadas de um ladrão em fuga. Mais adiante as manchas aparecem novamente, bem gravadas no portão que  dá acesso à rua. Ora, por mais que meus irmãos sejam perspicazes, nenhum deles pensaria em usar uma técnica tão engenhosa de despistamento como simular a própria fuga pela janela. Seus intelectos não chegariam a tal nível de refinamento, garanto.

A mãe interrompeu os outros dois filhos, inteligentes o bastante para entender a ofensa, antes que eles despejassem sua ira sobre o arrogante irmão do meio:

_Très bien, mec intelligent! Mas isto apenas elimina suspeitos. Não apresenta o culpado.

_ Neste ponto, querida mãe, valho-me de duas das ferramentas mais preciosas em qualquer investigação: o poder de observação e a memória.

Fez-se um silêncio sepulcral enquanto o pequeno detetive andava pela sala de jantar, mãos nas costas, olhos baixos pregados nos próprios passos.

_ ... Então? _ gritou a mãe, impaciente.

_ Ah, sim! A resposta! _ disse o menino, como que saindo de um transe. _ Devo lembrá-la de que a resposta me valerá uma semana livre de arrumar minha cama, lavar a louça do almoço e limpar a lareira. Tarefas que, sugiro, distribua da forma que melhor lhe aprouver _ disse isso e olhou maliciosamente para os irmãos embasbacados.

_ Oui, Oui, diga logo antes que eu retire a oferta.

_Ocorre que, por acaso, mais cedo na escola, participei de uma aula de artes e notei que um dos colegas, particularmente desajeitado, atrapalhou-se todo com as tintas a óleo. Teve que usar terebintina para limpar as mãos mas, impaciente e desleixado, não o fez completamente. Deixou as pontas dos dedos sujas de tinta vermelha. Sim, a mesma cor das manchas na toalha, na janela e no portão, para as quais chamei a atenção dos senhores ainda há pouco. Se esta evidência não bastar, convido-os a aproximar seus narizes das marcas na toalha: o odor característico de terebintina quase não se percebe, muito suave - mas está lá sem dúvida. Lembrei-me do que ocorreu na aula de artes assim que vi as manchas, e desde então todos os outros esforços foram apenas no sentido de confirmar o que eu já sabia: o culpado é meu colega Moriarty, uma mente brilhante para ciências exatas, devo admitir, mas um tanto inapto para atividades manuais, como ficou claro neste episódio.

O menino tirou do bolso um pirulito de morango e o levou à boca, segurando-o como um cachimbo.

_ Claro como o dia _ concluiu.

_ E agora, se me permitem, vou fazer um passeio pelo parque com o tempo livre que conquistei ao me livrar da obrigação de limpar a lareira. Até mais ver.

A mãe e os dois irmãos ficaram parados por um momento, em choque.

_ Mon Dieu! _ exclamou a mãe. _ Às vezes eu me esqueço que Sherlock tem apenas onze anos!


(Algumas notas: o texto é uma brincadeira despretensiosa com o personagem imortal de Sir Arthur Conan Doyle. Enola Holmes não existe nos contos do detetive, mas fez sucesso nos livros de Nancy Springer e no cinema - recomendo os filmes. O sotaque da mãe de Holmes se deve à única referência a ela nos livros do detetive: que era de origem francesa. Finalmente, não há nada nos textos de Doyle que indique que Holmes e seu inimigo mortal, doutor Moriarty, tenham sido colegas na infância.)

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