Unidos

Cansado dos vapores tóxicos e das chamas eternas em que vivia, o demônio Malacoda resolveu sair do dantesco oitavo círculo do inferno e visitar pela primeira vez o mundo dos vivos.
Ficou impressionado com a variedade de cores, a pureza do ar, a riqueza de sons da natureza terrena. Tudo tão diferente do universo que conhecia, em que o único som era o dos gemidos dos condenados; as únicas cores, o vermelho do sangue e o cinza da fumaça.
Ocorre que naquele mesmo dia, um anjo de nome Dina também se aborreceu da vida entre as nuvens, ao som das harpas do paraíso - aquela monótona trilha sonora; decidiu dar uma escapulida até a Terra.

A delicada criatura celestial também se encantou com as mesmas coisas que impressionaram tão vivamente Malacoda. 
Talvez eles não fossem tão diferentes, afinal.
Os dois acabaram se encontrando numa estrada deserta em meio a um bosque de frondosos carvalhos, nas proximidades de um vilarejo.
Um forte sentimento de atração os envolveu imediatamente. Por todas as leis da lógica deveriam se odiar, mas o que aconteceu foi um fascínio recíproco. Não conseguiram resistir ao encantamento daquela situação. Sem dizer palavra, amaram-se sobre a relva durante toda a tarde.
Dina passou a achar que havia um certo charme na corrupção que marcava o amante. Malacoda convenceu-se de que os céus não podiam ser tão ruins, já que eram capazes de gerar uma perfeição como a que tinha nos braços.
Tão bizarra união, porém, não passaria impune, obviamente. Tanto os infernos como o céu se ressentiram do hediondo crime. As tropas de Miguel e Gabriel partiram imediatamente para aquela estradinha deserta. Da mesma forma as hordas de Lúcifer se puseram a caminho.
O encontro dos dois exércitos quase provocou uma batalha universal, como aquela do início dos tempos, em que os anjos rebeldes foram expulsos do paraíso para as profundezas do inferno. 
Naquele remoto bosque de carvalhos, houve um instante de tensão que pareceu durar uma eternidade. Miguel de um lado, Amon de outro; olharam-se com ódio e desprezo. 

Entre anjos e demônios, abraçados, Dina e Malacoda tremiam de pavor. Um arcanjo e um demônio se aproximaram. O arcanjo agarrou Dina; o demônio prendeu Malacoda. Sem dizer palavra, os dois se afastaram com seus prisioneiros.
- Que cada um cuide de seu problema - declarou Miguel.
- Assim seja - respondeu Amon.
E dessa forma evitou-se a guerra.
No céu, o castigo de Dina foi pior do que ela esperava. Se pelo menos fosse condenada ao inferno, poderia rever o amante. Mas não. Teria que vagar pelas brumas do purgatório por toda a eternidade.
Decidida a pena num tribunal sumário, Dina foi imediatamente destituída de suas asas e jogada no limbo. 
Em meio à névoa que não tem fim, tudo o que ouvia era o gemido das almas desgarradas. Tudo o que via eram sombras monstruosas vagando em meio a desfiladeiros profundos. Nenhum espaço para esperança, nenhuma luz que servisse de consolo.

Um segundo parecia durar uma vida inteira. A noção do tempo logo se perdeu. Cada momento era exatamente igual ao anterior. Dina percebeu que tinha sido condenada a uma existência sem perspectivas. Não poderia imaginar suplício mais devastador.
- Dina.
O anjo ouviu uma voz que imediatamente reconheceu. Era Malacoda. O tribunal de Lúcifer resolveu que o pior castigo para ele seria o exílio no purgatório. 
Nenhum dos dois lados poderia imaginar que, com sua decisão, dariam ao anjo e ao demônio tudo que eles poderiam desejar na vida. 
Enquanto se entrelaçavam num abraço apaixonado, Malacoda e Dina pensaram que aquele lugar vazio já não era tão ruim. 
O paraíso de Dina era Malacoda. O inferno de Malacoda residia nos lábios de Dina. 


(Pinturas de Marcos Correia)

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