Poker


- Royal Street Flash!
A voz tímida da moça quase não foi ouvida em meio ao burburinho da espaçosa sala.
Ela mostrou as cartas e rapidamente juntou as notas e moedas que estavam sobre a mesa. Atônitos, os companheiros de jogatina custaram a acreditar no que aconteceu. Batidos por alguém que parecia ser presa fácil.
Contrariando as expectativas, porém, aquela mão perfeita rendeu um belo dinheiro para a jovem loira de olhar profundo.
A um canto, jogado sobre uma poltrona e espantando o tédio como se fosse uma mosca, o artista plástico se interessou pelo que se passava na mesa de poker... mas por pouco tempo. Logo voltou a observar as reproduções de algumas obras que havia trazido de casa. Introspectivo e recluso, só levando aquelas pinturas para onde quer que fosse conseguia passar mais de uma hora em contato com outras pessoas. As obras são seu escudo. Mesmo na sua festa de aniversário.
Estranha festa. Resumia-se a isso; umas três ou quatro mesas de jogo, gente falando alto durante uma rodada de truco, o poker na mesa central, fumaça de cigarros. 
Atrás das portas que levavam a três quartos, separados da sala por uma fina parede, os mais novos se apertavam entre almofadas para assistir a seções de DVD. 
O telão da sala também foi ligado e passou a mostrar cenas de filmes antigos. Um homem se levantou da mesa onde estava e caminhou até a moça loira. Tocou-lhe o ombro e confidenciou algo em voz baixa. Logo depois os dois saíram, separadamente, tentando não chamar a atenção.

o.0.o

No ancoradouro da pousada o homem desfiava uma longa lista de argumentos e explicações. A moça apenas ouvia, a fina blusa branca acariciada de leve pela brisa marinha, os braços cruzados numa pose defensiva, o rosto impassível.
O homem, de dentro de uma lancha, falava com a mulher, no píer.
Explicava por quê não havia comparecido ao último encontro que tinham combinado.
- O barco ainda tem o remendo no casco, pode olhar - falou, apontando para a proa. - Eu estava a caminho do seu hotel quando bati em alguma coisa submersa. Abriu um buraco enorme, quase afundei. Mas consegui chegar ao cais e colocar a lancha pra consertar.
A moça, com os bolsos cheios do dinheiro ganho no poker, dava mostras de pouco ou nenhum interesse naquela conversa. Mas ela já sabia o que ia acontecer no final. Subiria na lancha e iria com aquele homem para onde ele quisesse, fosse como fosse. Seria feliz por algum período, até a próxima mentira.
Ela sabia que seria assim, como num roteiro escrito previamente. Por isso gostava tanto de poker. No jogo de cartas, não há garantias. Nada é certo. O final é sempre imprevisível. E o blefe não é defeito de um mentiroso contumaz - como o homem dentro da lancha - e sim virtude de um bom jogador.
Como quem segue o script de um filme ruim, a loira embarcou. O homem sorriu, deu a partida no motor… os dois se afastaram no meio da neblina do fim da tarde.


Pintura de Marcos Correia







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