Infância

Na avenida central da pequena cidade muita coisa mudou. A antiga padaria, onde íamos todo sábado depois da missa noturna para comer sonhos, agora dá lugar a uma dessas farmácias modernas de uma rede famosa.
Alívio é saber que a velha farmácia onde tantas vezes fui atendido continua aberta, com pouca ou nenhuma alteração. O dono permanece ali no balcão, orientando, vendendo, aplicando doloridas injeções.
Os pontos do bondinho mudaram bastante. Deixaram a arquitetura colonial e se transformaram em insípidos espaços modernos. Mas as luminárias ao longo da avenida estão todas ali, como há 40 anos. Clássicas e belas.
Na rua que leva para minha casa, os grandes pinheiros de antigamente existem apenas na lembrança. Sua ausência expõe sem pudor detalhes da igreja Matriz na rua de baixo, e de parte do centro da cidade mais afastado.
No fim da rua, uma cerca de grossos mourões e telas de alambrado. Um portão de madeira preso com um grosso cadeado. Atrás dessa barreira, um descampado em declive que desce vertiginosamente para a rua de baixo, coberto por grama rasteira. Mais nada.
Nem sinal das amoreiras que povoavam minha infância. Elas eram frequentemente saqueadas sem dó nem piedade por um enorme grupo de meninos e meninas - eu entre eles, sempre. Alguns vinham de longe pra se banquetear entre os espinheiros que mal protegiam os frutos negros e suculentos. Foram muitas as tardes em que nossas mãos, bocas, e para desespero das mães, nossas roupas ficavam impregnadas do sumo arroxeado de incontáveis amoras devoradas com gula.
O que sobrava desse ataque - sempre sobrava - era guardado em vasilhas e levado para as casas, onde se transformava em um saboroso suco de amoras. 

Nada mais disso existe. O tempo foi moldando o cenário da infância, transformando-o em outra coisa bem diferente. Hoje as brincadeiras de esconde-esconde seriam impossíveis. Todos os esconderijos deram lugar a vazios. Sumiram as moitas, as árvores, as ribanceiras do passado. Apareceram muros, pousadas, cercas, gramados sem graça. 
Às vezes acho que o choro das maritacas no fim da tarde é por sentirem falta das mesmas coisas que eu. O mato cheio de frutos, as árvores altas, o branco da geada cobrindo o pequeno mundo em que cresci.
Ao lembrar disso tudo,convenço-me de que a memória não é uma habilidade. É um lugar.

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