Sebo

     Lugares assim têm uma atmosfera própria.
     Uma energia específica.
     Naquele amontoado de revistas do térreo, cercado por camisetas pretas em araras lotadas, havia uma desordem que bem poderia ser uma representação do Caos. 
     Não havia uma lógica, um método, um ordenamento preestabelecido. Os tamanhos, os temas e os formatos dos gibis, 
Graphic Novels e livros ilustrados se amontoam. Capas duras com revistinhas sem capa, lado a lado. Volumes protegidos por plástico compartilhando caixas com revistas emboloradas. 
     Para ser justo, a única ordem reinante ali era a imposta pelos visitantes: examinam, leem, folheiam, abandonam as publicações. E, onde o fazem, lá permanece o livro ou revista até que seja tomado por outro visitante curioso, e quem sabe deixado num outro canto da sala. Essa dinâmica faz do sebo um lugar vivo, que respira. 
     Uma primeira camada de "Tex" e suas aventuras do velho oeste cobre todos os outros gibis em pelo menos dois terços das mesas. Logo abaixo, encontram-se histórias policiais em quadrinhos de pouca repercussão. No um terço restante, o destaque fica para aventuras dos heróis Marvel, com o Homem-Aranha como carro-chefe. 
     A playboy não podia faltar e ocupa um espaço no chão, logo na entrada. Esse arranjo da sala permite viagens instantâneas de um universo a outro: dos super-heróis aos pesadelos de Neil Gaiman. Dos restos de gibis a 1 real às coleções completas em box de 150 paus.
Desta forma, navega-se neste lugar tanto pelos mundos paralelos como pelos preços variados. 
     Uma longa escada leva ao segundo andar, onde estão os livros, CDs, DVDs, e claro, os LPs de vinil. Nesta sala de estantes e caixas abarrotadas, os odores são um capítulo à parte. Os cheiros de papel velho se misturam, embora ainda mantendo uma teimosa individualidade. Sente-se o odor mais adocicado de uma brochura disputando espaço com o azedo perfume de um livro impresso em papel jornal. É sinestésico. Os cheiros parecem ter cores e sabores próprios. O resultado final é uma combinação estranha, pungente, agressiva mesmo. Um cheiro em que há tons deixados pela ração para o gato de estimação do dono, combinados com a serragem queimada de um velho alfarrábio de capa dura, a envelhecer no espaço dos russos.
     Não espere uma viagem lógica. Pode começar pelos livros de veterinária e logo ao lado encontrar a literatura nacional. Os contos policiais são encimados por uns três volumes do Jorge Amado - destaque para "Tenda dos Milagres". Num sebo como este é fácil descobrir que você fez um mal negócio no ano passado, ao encontrar um livro pela décima parte do preço que pagou quando foi lançado. Nota-se então que a urgência tem um preço, e que o sebo é o grande acusador da sua pressa. Da mesma forma, embora menos frequentemente, pode-se achar aqui ou ali alguma obra mais cara do que a que você comprou em outro sebo, semana passada. Mas essa confraria de donos de sebos parece contar com uma cartilha, um manual, uma lei que rege todas as características do lugar. Quem viu um sebo, viu todos, salvo pequenos detalhes que só confirmam essa regra. Um mundo   confuso, embriagador, misterioso e inquisitivo. "Decifra-me, ou te devoro", gritam essas paredes repletas de cultura. E, de fato, somos engolidos por esse monstro de papel, vinil e plástico. Envolvidos por esse portal multidimensional. E quando saímos do transe hipnótico que as velhas salas provocam, notamos assustados que aqueles aparentes quinze minutos observando os tesouros  ali amontoados na verdade foram duas, três, até quatro horas. 
     Se o sebo fosse asséptico e organizado como uma livraria, cheio de setas e orientações para guiar o visitante, não seria mais um sebo. Seria alguma outra coisa menos charmosa. Seria um lugar triste se não nos apresentasse esses desafios de prospecção de riquezas. 
     Há uma coerência inabalável nessa desordem sedutora. 

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