Sapatos

  



  A diretora entrou intempestivamente na sala abafada. A professora levou um susto. Os alunos se levantaram em meio a um trovejar de cadeiras se arrastando. Todos de mãos cruzadas atrás dos corpinhos mirrados, tentando imaginar quem teria aprontado alguma para despertar a ira da poderosa mulher.

     _ Desculpe interromper sua aula, professora Lygia. Mas soube que houve uma quebra inaceitável das regras desta escola.

     Lygia manteve-se calada, ciente do que se tratava.

     _ Exigimos dos alunos o mínimo de compostura em sala de aula, você sabe. E não podemos abrir concessões. - disse isso e jogou um olhar inquisitório sobre os rostinhos assustados diante dela. Fez-se um silêncio que pareceu eterno. Ninguém conseguia respirar naquele clima de suspense.

      _ João Marcos! -  disse afinal a diretora.

     O menino magricela, de camiseta puída e short desbotado pelo uso, empalideceu ao ouvir o próprio nome. Pareceu desfalecer por um momento. 

     _ Venha aqui na frente, João Marcos!

     O garoto relutava. Tentava atrasar ao máximo a breve caminhada até a diretora, esperando, quem sabe, um milagre. 

     _ Agora, menino! _ gritou a diretora. 

     João Marcos se precipitou para a frente, braços colados junto ao corpinho, mãos para trás, cabeça baixa espremida entre os ombros levantados. Estava encolhido como se quisesse entrar no próprio estômago para se esconder, aniquilado pelo medo. 

     Ao chegar à frente da classe, esperou a sentença condenatória. A diretora olhou para baixo, para os pés da criança, e depois, com uma expressão sardônica, encarou a professora, que a fustigava com um olhar firme e irritado.

     _ Sem sapatos, João Marcos. Ora, francamente, professora Lygia. Como permite que um estudante frequente sua aula sem sapatos? _ disse a diretora, sem se deixar intimidar pelo semblante contrariado da professora.

     _ Temos tradições a zelar. As famílias que matriculam seus filhos aqui esperam um certo padrão de comportamento, devoção à Pátria, a Deus, e claro, um mínimo de decoro na vestimenta! Venha comigo, João Marcos - disse a diretora virando-se para o aluno e agarrando-o pelo braço, com um sacolejão violento - você vai pra palmatória e depois de volta pra casa com um bilhete pro seu pai.

     O pai de João Marcos, lavrador, viúvo, pai de quatro barrigudinhos, pobre e trabalhador, não tinha dinheiro para calçar o filho. Mal conseguiu comprar a camiseta e o short do uniforme, já gastos e velhos. Para os sapatos nada sobrou. Era comprá-los ou pôr comida na mesa. Não havia opção. 

     A diretora já se aproximava da porta arrastando o desventurado garoto, enquanto os colegas riam baixinho, zombeteiros. Foi quando uma voz se ergueu.

     _ Tem razão!

     A diretora interrompeu o passo e olhou para trás. Era a professora que falava.

     _ Tem razão! Eu jamais deveria ter permitido que o Joãozinho assistisse à aula sem sapatos!

     O menino arregalou os olhos. A professora, sempre tão amorosa e compreensiva, traía sua confiança daquela forma vergonhosa! Quis chorar mas o espanto travou as lágrimas.

     Lygia caminhou a passos firmes até a diretora.

     _Solta ele! _ordenou.

     A diretora ficou estática, como se tivesse levado um tapa na cara.

     _Solta! _repetiu Lygia, afastando a mão que apertava o braço do menino. Depois tomou Joãozinho pela mão e saiu da sala.

     A diretora ficou olhando a professora se afastar pelo corredor, levando João Marcos com ela. Os alunos também não resistiram à curiosidade e foram até a porta, surpresos. Em caravana, resolveram seguir a professora, barulhentos e divertidos com o que estava acontecendo. A diretora seguiu o grupo a passos não tão rápidos, atrapalhada pelos saltos altos que usava e não combinavam com a rua batida de terra.

     Lygia não parou até chegar à venda de Nhô Dito. Pediu meias brancas e um par de calçados para o garoto. Fez João Marcos experimentar, ajudou-o com os cadarços. Serviu muito bem. Pagou tudo e saiu com o aluno, sem tomar conhecimento da diretora ofegante que assistiu a cena toda da porta da loja.

     _ Vamos, classe! _ convocou. E tomou o rumo da escola, seguida pelos alunos em festa.

   Naquele momento, aos olhos de João Marcos, a professora pareceu uma imperatriz liderando um exército.

     Lygia sabia da situação da família do aluno. Jamais passou pela sua cabeça deixar o menino sem aula por não ter dinheiro para comprar sapatos. De volta à escola, Lygia entrou na sala e mandou João Marcos se sentar. Terminou a lição sem mais incidentes. "Eu devia ter feito isso muito antes", pensou, enquanto rabiscava letras no quadro negro.

     No dia seguinte uma professora substituta apareceu.

   João Marcos, com os sapatos novos, escutava a aula sem ouvir. O pensamento estava com a professora Lygia, onde quer que ela estivesse.

     Dona Lygia também não apareceu no outro dia, nem no próximo, e assim por diante até a sexta-feira.    João Marcos se remoía de curiosidade, mas a timidez era maior do que a vontade de perguntar sobre a mestra. Os colegas pareciam sentir a falta da professora também. Comentavam sobre isso em pequenas rodas no intervalo entre as aulas, mas o menino "pobre e gafeirento" era excluído desses círculos e privado de qualquer informação.

     Naquela sexta-feira, a caminho da sala de aula depois do recreio, João Marcos ouviu a diretora passando uma descompostura em dona Expedita, uma das serventes da escola. 

     _ O chão não está brilhando, dona Expedita. Fui bem clara quando disse pra senhora que a nossa escola tem que ficar um brinco o tempo todo.

     _ Sim, senhora. _ respondeu a velha faxineira, constrangida.

     _"Sim, senhora, sim senhora"! No discurso é muito obediente, né? Mas na prática não faz o que eu mando. 

     _ É o fim do intervalo, dona diretora, as crianças ainda nem voltaram pras salas. Elas deixam o chão encardido mesmo, depois do recreio. Mas pode olhar! O balde e o esfregão já estão bem ali _ disse, apontando para os apetrechos de limpeza prestes a serem usados. 

     _ Que atrevimento! A senhora está querendo me afrontar, discutindo comigo dessa maneira? _ retrucou bruscamente a diretora.

     _ Não, senhora, eu só...

     _ Nem mais uma palavra, dona Expedita! Nem mais uma palavra! Ou quer acabar como a dona Lygia, aquela arrogante que botei no olho da rua? 

     João Marcos, escondido atrás de uma das pilastras do corredor, sentiu o sangue gelar nas veias ao ouvir o nome da mestra, ainda mais dito de forma tão aviltante. 

     Qual teria sido o motivo daquela injustiça?

     Quando a diretora se afastou, pisando duro e erguendo o nariz pontiagudo, o menino superou a timidez e foi até a servente alquebrada pelos insultos. Perguntou a ela, sem mais rodeios:

     _ Dona Expedita, o que aconteceu com a professora Lygia?

     Dona Expedita tentou desconversar, com medo de ser demitida também, mas diante da insistência do garoto acabou contando tudo:

     _ Ela foi mandada embora. 

    _ Isso eu entendi!_ respondeu João Marcos, impaciente. _ Mas por que?

      _ Ninguém sabe com certeza... Os funcionários aqui da escola falam muito e adoram uma fofoca, mas ninguém bate o martelo sobre o motivo... Parece que a dona Lygia quis peitar a diretora numa questão...

     _ Que questão, pelo amor de Deus, dona Expedita? _ o menino se agastava com aquela embromação.

     _ Não sei, menino, mas que insistência! Parece que teve a ver com os sapatos de um aluno!

     João Marcos engoliu em seco e olhou para os próprios pés bem calçados em sapatos novos que ele fazia questão de manter reluzentes como cristal. Mortificado, afastou-se correndo dali com os olhos cheios de lágrimas. Foi para um canto afastado do jardim da escola, esmagado pela culpa. Sua vontade era tirar os sapatos e jogá-los na cara da diretora, aquela bruxa. Chegou mesmo a desamarrar um dos cadarços, resoluto, mas começou a intuir que aquela vingança truculenta seria inútil e desastrosa. Ele seria expulso e não conseguiria vaga em nenhuma outra escola da cidade. O pai, que tanto se esforçava para que ele tivesse educação, morreria de desgosto. 

     Apesar da pouca idade, João Marcos teve o bom senso de se conter. 

     Naquele momento, decidiu que seria o melhor aluno da classe. Não, o melhor aluno de toda a escola! Seria a homenagem que faria à professora, punida por ajudá-lo. 

     João Marcos lutou contra a timidez como um tigre. Passou a erguer o braço na sala de aula sempre que a professora perguntava alguma coisa. Às vezes acertava as respostas, às vezes errava, mas, invariavelmente, aprendia. 

     Sua vitória sobre o temperamento tímido foi tão intensa que, na formatura, foi escolhido por todos os colegas como orador da turma. O discurso teve que passar pela censura da diretora, mas no dia da cerimônia ele incluiu de improviso um agradecimento especial à professora Lygia. 

     As feições da diretora se fecharam numa carranca azeda que deixou seu nariz ainda mais pontiagudo, apertado entre as bochechas inflamadas. Mas o que ela poderia fazer contra o jovem rebelde? João Marcos estava formado. No ano letivo seguinte iria para o colégio...

     Estava livre das garras daquela mulher. 

     O trecho mais aplaudido do discurso foi justamente o que não estava escrito, para escapar do crivo da diretora. Estava gravado, sim, mas no coração do estudante, com simplicidade e gratidão:

     _ Muito obrigado, professora Lygia. Sem a senhora eu não estaria aqui. Me ajudou mais do que seria a obrigação de uma professora. Sei que não pode ouvir isto, mas terá minha gratidão eterna.

     O jovem cresceu com o sentimento de dívida a ser paga. Todos os seus esforços no colégio, todas as longas horas de preparação para o vestibular, toda a dedicação nas aulas da faculdade de medicina - tudo tinha como imagem inspiradora a mão da professora Lygia, ajudando-o a calçar os sapatos que havia comprado para ele. O pai também era depositário de toda aquela garra. Mas a professora tinha um lugar de destaque na lembrança do rapaz. 

    Com o fruto do seu empenho, João Marcos conseguiu ajudar os irmãos mais novos em seus projetos de vida. Casou-se e formou a própria família. Garantiu ao pai, trabalhador incansável, uma velhice digna, até a morte. Despediu-se daquele homem consolado pela certeza de que tinha sido motivo de orgulho para o pai.

     Muitos anos depois, formado como especialista em geriatria, respeitado no meio médico e querido dos pacientes, João Marcos atendia num posto da rede pública quando uma senhora se aproximou. Apesar de tanto tempo transcorrido, imediatamente ele reconheceu a antiga mestra. Era dona Lygia, agora idosa, doente, sem dinheiro para os remédios. Os dois se abraçaram como velhos amigos. Conversaram bastante. O médico notou satisfeito que mesmo com a idade e a situação financeira difícil denunciada pelas roupas modestas, dona Lygia mantinha a mesma elegância e nobreza dos tempos de escola. "Estas qualidades nada têm a ver com dinheiro… ela é mesmo uma imperatriz", comprovou.

      No fim da conversa, tudo que João Marcos queria era fazer por dona Lygia mais do que seria sua simples obrigação de médico - a exemplo do que recebeu dela quando não passava de um menino magrinho e frágil.

     Ele levou a velhinha até o armário que mantinha no posto. Mostrou para ela, atrás de uma porta de vidro, ao lado do diploma de médico, um velho par de sapatos infantis. Estavam em bom estado, apesar do tempo decorrido desde a última vez que foram calçados. 

     Lygia se lembrou da compra que tinha feito, tanto tempo atrás.

     _Aprendi muita coisa com a senhora, dona Lygia._ João Marcos falava com calma, mas sem conseguir evitar um embargo de emoção na voz -  Mas a maior lição de todas, a senhora não me ensinou nem com giz nem com livros. Foi com este par de sapatos. Eu os guardo aí e olho para eles todos os dias. E sempre me pergunto, antes de começar a trabalhar:  "quem a professora Lygia gostaria que eu ajudasse hoje?". 

     Naquele momento a idosa solitária e sem recursos sentiu-se  muito rica.


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