O caso do flaconete de cocaína

1

     Quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair, o inspetor Mário Russo sentiu-se agradecido por ter terminado a perícia da cena do crime. Deu mais uma olhada em volta, enquanto mastigava tranquilamente uma pastilha de menta. 
     O lugar até que era bastante bonito. Um grande descampado coberto por braquiária, um caminho estreito com duas marcas de terra separadas por um corredor de grama, uma cerca de arame farpado, uma porteira de mourões de madeira. A alguns metros, uma mata fechada e, do outro lado, um morro coberto de verde que terminava aos pés da Pedra do Baú.
     Era perto de um desses mourões da porteira que o corpo foi encontrado por um lavrador a caminho do trabalho. Um rapaz de camiseta roxa e bermuda preta. Negro, cabelo muito curto, braços e pernas de uma magreza musculosa. Estava de bruços sobre uma poça de sangue que tingiu a pastagem de vermelho. O primeiro exame identificou cinco buracos provocados por arma de fogo, no peito, pescoço, braços e nuca. O fato de quatro dos disparos terem atingido a parte frontal da vítima dava a entender que o atirador quis ter certeza da morte do jovem e disparou uma última vez na nuca, a queima-roupa,  quando o infeliz já estava caído. Atirador de sangue frio, Mário pensou.
     Perto do corpo havia um flaconete vazio, com resíduos de um pó branco. Mário não precisava do exame de laboratório para deduzir que se tratava de cocaína. Dívida de tráfico? Rixa entre traficantes? Algumas hipóteses começavam a surgir para explicar a motivação do crime. 
     Dentro do fusca da rádio patrulha que o conduzia de volta ao DP, Mário observava as gotas de chuva cada vez mais frequentes explodindo contra o parabrisa. Aquilo o relaxava e o ajudava a pensar. Pena que o PM que lhe deu a carona não parava de falar um minuto, a despeito de Mário não ouvir uma sílaba sequer do que ele dizia. 
     Na delegacia Mário foi direto para a sala de necropsia, onde o corpo já tinha sido examinado pelo legista. O óbito provavelmente ocorreu no início da noite anterior, umas quatorze horas atrás. O negro já estava morto antes de receber o tiro de garantia na nuca: um dos projéteis atingiu o coração. As digitais foram coletadas para uma tentativa de identificação. Numa caixa ao lado, os pertences do morto. Nenhum documento, nenhuma carteira. Roubo? Talvez, mas a ideia da vingança relacionada ao tráfico parecia mais coerente para o investigador. 
     O estranho era que numa cidade relativamente pequena como aquela, ninguém tivesse aparecido para notificar o desaparecimento do rapaz. Nenhum parente, nenhum amigo. Ou todos estavam acostumados a longas ausências do defunto, ou já sabiam o que tinha acontecido e não queriam problemas. Não havia muito o que fazer por enquanto. O primeiro passo era identificar a vítima, e o exame datiloscópico levava tempo. Era torcer para as digitais dele constarem de algum registro da polícia de Campos do Jordão. Senão a procura teria que ser estendida ao banco de informações de outros municípios, ou mesmo da capital do estado. 
     Mário decidiu ir para casa descansar um pouco. Tinha dormido mal por causa do cachorro do vizinho, que ganiu a noite toda. 
     Entrou em casa, colocou a arma e o distintivo sobre a mesinha e se esticou no sofá. Ligou a TV mas dormiu antes de entender o que estava passando. Foi despertado meia hora depois pelo telefone berrando.
     Era a escrivã Julia, a única capaz de acordar o velho policial sem acabar com o humor dele.
     - Mário, sabe o cara morto? O negro? Eu dei uma olhada no corpo e achei que conhecia ele de algum lugar. Batata! Tenho a ficha dele aqui na minha mão.

2


    Dez minutos depois Mário estava na delegacia lendo a capivara da vítima. João Carlos de Lima, 19 anos, duas passagens pela Febem e uma prisão quando se tornou maior. Assalto a mão armada, furto qualificado, agressão, tráfico de drogas. Um belo prontuário. Aquela ficha abria bastante o leque de possibilidades para o que teria acontecido ao rapaz.
     João era conhecido como Magrelo. Tinha cometido alguns delitos em companhia de um vagabundo velho conhecido da polícia, um mulato forte e violento que atendia pela alcunha de Tinoco. Ele andava meio sumido, o que estaria aprontando? Será que Tinoco tem alguma coisa ver com a morte do velho comparsa? 
     A polícia técnico-científica já estava trabalhando no flaconete encontrado perto do corpo, na tentativa de encontrar alguma digital que indicasse o autor do crime. Mas aquilo levava tempo. Resolveu procurar Tinoco no último endereço conhecido dele. Pena que a viatura da delegacia estava quebrada, no mecânico. Isso o obrigava a solicitar apoio da rádio patrulha de novo. Tomara que dessa vez viesse um policial menos tagarela. 
     A viatura da PM demorou a chegar, o que irritou bastante o inspetor. Ele entrou no veículo, murmurou um bom dia entre dentes e mandou seguir para o morro Santo Antônio, atrás do mercado municipal. 
     Chegando ao bairro avistou uma fonte. Um pilantra autor de pequenos golpes que conhecia bem o mundo do crime. Zé Ruela não escondeu o incômodo quando percebeu que tinha sido visto pelo inspetor Mário, e que este queria falar com ele. 
     - Pode parar Zé Ruela, cara feia é fome. Vamos bater um papo rapidinho.
     - Satisfação, doutor Mário. Pode falar!
     - O Magrelo tá morto - disparou o policial. Zé Ruela se contorceu num gemido… iiiiixxxxx - e fez cara de quem já sabia que aquilo ia acontecer algum dia.
     - Que é isso? Não tá surpreso não? Desembucha, Zé.
     - Aquilo ali era vaso ruim, seu puliça. Ia morrer mesmo, só não se sabia era quando e como. Muita encrenca grudada no couro dele. 
     - É? Que encrenca? Desembucha!
     - Seu puliça, não é bom verem a gente de papo aqui!
    Mário entendeu. Tirou as algemas do bolso e botou nos pulsos de Zé Ruela antes de jogá-lo no banco traseiro do fusca da PM. Tocaram adiante até uma ponte que atravessava o córrego e dava acesso à avenida Januário Miráglia. Pararam perto da agência dos correios, numa vaga transversal da avenida.
     - Chega de enrolar Zé. Vai falando aí.
     - O Magrelo tava devendo pra nego forte, doutor. Fazia tempo já. Só falava que ia pagar, ia pagar, e nada. O credor já tava puto.
     - Pra quem ele devia?
     - Se sabem que te falei tô morto.
     - Se não me conta espalho por aí que você contou. Que tal?
     Zé Ruela teria empalidecido diante da ameaça, não fosse tão preto como o piche mais escuro. Suou frio e acabou contando.
    - Ele devia quinhentos conto pro Tinoco. O Tinoco já tinha ameaçado ele uns par de veiz. Deve de tê resolvido cumprir a ameaça.
     - Deixa que as conclusões eu mesmo tiro, vagabundo. Vai, sai do carro. Vira aí pra eu tirar as algemas. Agora circula por aí, porque eu vou voltar lá na vila pra ir pra casa do Tinoco.
     - Perde seu tempo não, doutor. Ele não tá lá não. Nessa hora o senhor acha ele no buteco do Braz, ali na entrada da vila Albertina, sabe qual?
     Mário e o PM, que felizmente não era dado a conversações, seguiram direto para o local indicado. De fato encontraram Tinoco encostado no balcão com um copo de caninha entre os dedos nodosos. 

3

     O mal estar com a chegada da polícia foi geral. Dois sujeitos numa mesa de canto se encolheram e passaram a olhar insistentemente para as próprias mãos. Outros dois que jogavam bilhar tentaram manter a naturalidade mas só conseguiram se atrapalhar. O dono do buteco, um português com bigodão e um pano de prato sobre o ombro esquerdo, fez uma careta de amargura e tentou esboçar um sorriso falso.
     - Ora pois, o que vai ser, senhor doutoire?
     Mário não respondeu. Caminhou diretamente para Tinoco e o intimou.
     - Preciso bater um papo com você. Bem sério. Você vem comigo pra delegacia. 
     - O que foi que eu fiz, seu guarda? - perguntou Tinoco com os olhos arregalados.
     - Olha aqui, vagabundo. Você pode vir numa boa ou debaixo de porrada. Como vai ser?
     O mulato forte olhou de cima para baixo para Mário, e depois para o PM que esperava na entrada do bar com a mão sobre o coldre do revólver. Deduziu que a única opção era não causar problemas. 
    - Não precisa se irritar não, doutor. Vamos lá. - Disse isso e virou de um trago o conteúdo do copo que tinha na mão enorme. O cheiro desagradável de álcool irritou Mário, que fez força pra não dar um tapa naquele sujeito arrogante ali mesmo. Limitou-se a pegá-lo pelo braço em empurrá-lo em direção à porta.
     Na sala de interrogatório Tinoco continuou com a atitude arrogante.
     - Sei que você tinha uma rixa com o Magrelo. Quando foi a última vez que esteve com ele?
     - Sei lá, uma semana, duas
     - Sabe lá? Ele não te devia uma grana?
     - Quem te disse isso?
     - Não interessa! Quem pergunta sou eu, você responde. 500 cruzeiros, não era? 
     Tinoco ficou em silêncio.
     - Olha, Tinoco, é melhor você abrir o bico. Eu vou descobrir de qualquer jeito, e perder tempo só vai me deixar irritado. E você não vai gostar se eu ficar irritado.
     - Tá certo, eu vou contar. Não devo nada. Quem devia era esse traste. Morreu, né? Tá com a boca cheia de formiga. Bem feito.
     - Quem te disse que ele morreu? Eu não falei nada dele ter morrido.
     - Ah, doutor, a notícia corre lá pras bandas do Santo Antonio. A gente fica sabendo.
     - Quem te contou?
     - Não lembro, conversa de boteco, no ponto de ônibus, sei lá. Os mano fica sabendo do acontecido e logo esparrama a novidade por aí. 
     - A coisa não tá ficando boa pro teu lado não,Tinoco. Tinha um acerto pendente com a vítima, já sabia da morte dele antes de eu falar… porra, acabou de acontecer! Como é que ficou sabendo? 
     - Tá certo, vou contar tudo que eu sei. O Magrelo não devia só pra mim não. Comigo a pendência era financeira, mas tinha nego que tava muito mais puto com ele do que eu… o Magrelo andou invadindo terreno de uns traficantes barra pesada aí. Em vez de ficar na dele, começou a querer negociar a droga no espaço dos outros. E os caras não podem aceitar isso não. 
     "Eu conheço o Magrelo de outros carnavais. A gente estudou junto no Irene Lopes Sodré, na vila Sodipe. Naquela época eu morava por lá. O Magrelo era inteligente, mas não queria nada com o duro não. Vagabundo desde aquela época. Não fazia as tarefas, não estudava pras provas, só colava. Foi lá que ele começou a se envolver com droga. Primeiro experimentou.Depois se enrolou todo, fez dívida, e pra pagar começou a vender também. Lá dentro da escola mesmo, debaixo das vistas das professoras e da diretora. 
     - Foi lá que começou a sociedade com você? - perguntou Mário.
     - Que isso doutor? Tenho nada a ver com isso não, sou do bem. Acontece que os movimentos começaram a crescer e o negócio expandiu. O Magrelo tinha aquela jinga de malandro, cheio de palavra doce na boca, ficava logo amigo dos viciados e eles preferiam comprar dele, porque o safado era divertido e tinha jeito com as pessoas. Aí a malandragem botou o olho em cima dele. Antes mesmo dele sair da escola já tava recrutado pro tráfico. Sempre pegou do mesmo fornecedor, até onde eu sei. Um sujeito gordo chamado Raimundo, mas que é conhecido mesmo como Radiador. O cara tem esse nome porque uma vez fez um desafeto beber água do radiador de um carro, fervendo. Violento, o tal. Magrelo ficou trabalhando pra ele uns par de anos. Até que decidiu ir por conta própria. E a saída ficou meio engasgada na garganta do Radiador, mesmo o Magrelo se comprometendo a dar uma parte do ganho pra ele. Sabe como é, né, difícil fiscalizar o ganho do tráfico. Desde essa época que os dois não se bicavam muito. E aí eu fiquei sabendo que o Magrelo começou a dar seus pulinhos no terreiro do Radiador. Passou a vender nos pontos do outro. Os caras até avisavam, "Magrelo, cê é louco! Abre teu olho"! Mas ele só ria com aquele jeitão despreocupado dele. Tá me entendendo doutor? Tem gente com mais motivo pra querer dar um paletó de madeira pro Magrelo. 
     Mário já tinha ouvido falar muito de Radiador. Sabia que não seria nada demais pro bandido matar um sujeito. Teria que conferir essa história. Sem mais evidências, não tinha por que deter Tinoco na delegacia. Liberou o mulato avisando pra não sair da cidade. 
      Depois foi até a sala de necropsia dar uma olhada no que foi encontrado na cena do crime. Colocou um par de luvas e pegou o pequeno flaconete cônico, de plástico transparente, daqueles usados pra guardar remédio e que também são muito apreciados pelos traficantes para colocar a cocaína. Olhou o pequeno objeto com mais cuidado e notou uma pontinha de tinta vermelha perto da tampinha. Talvez fosse uma marca pra indicar a procedência da droga, como um selo de garantia de qualidade. Se fosse isso mesmo, era uma pista quase tão boa quanto uma impressão digital.


4

     Duas semanas depois do crime, o entardecer daquela sexta-feira se apresentou ao mesmo tempo belo e melancólico. Uma densa neblina vinda da serra da Mantiqueira se espalhava pelas ruas da cidade, depositando sobre tudo uma fina película de umidade. O ambiente ficou esbranquiçado, com as luzes prematuramente acesas das luminárias formando círculos dourados no topo dos postes. As pessoas nas ruas andavam encapotadas, encolhidas em guarda-chuvas, tiritando. 
     Aquele cenário tão comum no alto da montanha sempre deixava na alma do inspetor um sentimento incoerente e contraditório de aconchego. Lembrança das várias manhãs geladas em que essa mesma neblina o acompanhava no caminho para a escola. Agora ele não precisava mais ir pra escola debaixo de neblina - em compensação, tinha que sair de casa do mesmo jeito, para dar expediente na delegacia. As obrigações nunca se esgotam, apenas mudam.
     No DP Mário encontrou Julia fichando um pungista que atacara alguns turistas no Capivari. Ela terminou rapidamente o serviço e mandou o guarda levar o sujeito pro xadrez. Depois foi até a mesa do inspetor falar com ele.
     - Mário, teve uma ocorrência fora do padrão aqui. Uma senhora veio dar queixa do sumiço da filha. 
     - Quando foi isso?
     - Duas semanas atrás, segundo ela.
     - E só agora ela vem dar parte?
     - Ela disse que a moça sumir uns dias não é novidade. Já ficou até mais de uma semana sem notícia. Mas dessa vez começou a demorar demais pra dar sinal de vida. 
     - Trouxe foto da desaparecida?
     Júlia foi até o balcão e abriu uma gaveta. Pegou um retrato e o trouxe para Mário.
     Uma morena bonita, de sorriso largo, boca carnuda e cabelos de um negro profundo, levemente cacheados. Mônica, 19 anos, sem emprego conhecido, estudante. Saiu de casa como sempre fazia, sem dar mais satisfações… não voltou mais.
     - Alguma suspeita?
     - A mãe não soube dizer, não conhece as amizades da filha. Nem namorado,se é que tem. 
     - Vamos falar com ela.
     A casa de madeira ficava no alto de uma rua estreita da Vila Santo Antonio. Algumas ripas da fachada tinham buracos de carunchos, mas estavam todas impecavelmente pintadas de um verde água suave e bonito. A porta e a janela da frente eram vermelho-escuro.
     Na sala minúscula, poucos móveis. Uma TV numa mesa, um quadro do Sagrado Coração de Jesus, uma poltrona de couro marrom e uma cadeirinha de madeira. 
     Mário foi recebido por duas velhas. Uma delas sentou-se na cadeirinha. Usava um xale vermelho, uma blusa de lã verde, uma saia de brim. Tinha os olhos ocultos por grandes dobras de rugas. A outra velha era alta e magra. Era mais velha que a primeira, mas parecia ser mais nova. Mais vaidosa também, com batom nos lábios e brincos nas orelhas. A alta se chamava Zuleide, e a outra, Olimpia. Tia e mãe de Mônica.
     Embora Olímpia fosse mais nova, parecia ser bem mais velha que Zuleide. Ficou calada o tempo todo enquanto a irmã respondia as perguntas do investigador.
     - Mônica é uma desmiolada. Não quis saber de estudar, nem terminou o colégio. E não foi por falta de conselhos, que eu e a Olímpia lhe demos muitos e bons, todos os dias. Mas quem disse que ela dá a mínima? Desde menina só quer saber de festa. Primeiro eram as matinês no clube Abernéssia. Depois, festas à noite, sabe Deus onde, que demoravam cada vez mais. Algumas vezes ela chegava de manhã, com sol alto. E saía logo em seguida pra outra farra. Aí começou a não voltar, ficava dias sem dar notícias. Quando finalmente aparecia, tinha os olhos fundos de cansaço, os ombros caídos, parecia sem nenhuma enegia. A mãe falava com ela, mas ela nem parava pra ouvir. Batia a porta do quarto e só saía de lá à noite, totalmente transformada. Parecia uma lagarta virada borboleta. Toda cheirosa, maquiada, roupas curtas e decotadas, salto alto. Quem sabe o que ela aprontava? No dia em que sumiu, veio aqui em casa o Gustavo, um ex-colega de escola da Mônica que eu acho que gosta dela. Veio aqui avisar que viu a Mônica entrando num carro de luxo. Não sabia de quem era o carro porque tinha vidros muito escuros, não se enxergava nada lá dentro. Não, não perguntei pra ele a marca do carro. Também, não entendo nada dessas coisas de modelo de carro.
     Mário pediu para ver o quarto da moça. Olímpia continuou calada. Zuleide permitiu.
     O quarto era totalmente diferente do restante da modesta casa. Estava uma bagunça. A cama desfeita. Cobertores pelo chão. Numa cômoda, uma gaveta aberta com uma calcinha enroscada na maçaneta. Sobre a cômoda, inúmeros vidros de perfume e estojos de maquiagem. Um espelho grande encostado na parede. Mário se olhou no espelho rapidamente e logo abaixou os olhos para os objetos sobre a cômoda. Abriu as gavetas. Uma delas estava trancada. Mário foi até a cozinha e pegou uma faca de carne. Voltou para o quarto e arrombou a gaveta sem a menor cerimônia. Dentro encontrou um pequeno porta-joias com bijuterias, uns papeis amassados, e um caderno com algumas anotações. Mário se deteve sobre as inscrições no caderno. Alguns nomes conhecidos: um vereador, o gerente de um banco, o dono de um hotel famoso da cidade, até o vice-prefeito. Na frente de cada nome, algumas datas e horários. Uma agenda de compromissos, sem dúvida. Mas o nome que mais chamou a atenção estava na margem da última folha do caderno: "Magrelo". Na frente, nenhuma data ou horário. Apenas um coraçãozinho, desenhado com uma perícia quase infantil. 
     Mário ia devolver o caderno na gaveta quando notou algo que estava por baixo. Um pequeno flaconete transparente, cheio de um pó branco. Pegou o objeto e percebeu uma pequena marca de tinta vermelha perto da tampinha. Lembrou-se imediatamente onde tinha visto aquilo antes. 
     Ao sair da casa de Mônica, Mário foi até a borracharia onde Gustavo, o amigo da moça, trabalha. Encontrou o rapaz trocando um pneu.
     - Você viu a Mônica entrando num carro de luxo. Que carro era?
     - Um Mercedez preto. Rodas de liga leve, uma beleza.
     - Você não anotou a placa, por acaso…
     - Nem pensei nisso.
     - Mas pensou em avisar a família da moça. Por que?
     - Achei estranho um carro daqueles num bairro pobre como este. E a Mônica tava vestida de um jeito… me preocupo com ela. Somos amigos. Achei que ela tava se metendo em encrenca. 
     Mais tarde, na delegacia, Mário mostrou o flaconete da gaveta de Mônica para o escrivão Osvaldo Gomes. 
     - Me diz o que sabe disso aqui.
     - Produto novo aqui no mercado. Falei com uns investigadores da delegacia de entorpecentes de Taubaté. Eles estão atrás do cara que fornece isso aí. Um tal Fulgêncio Rosa. Se diz dono de hotel lá em Taubaté mas na verdade ganha mesmo a vida é como traficante. Atua em várias cidades da região e agora expandiu aqui pra Campos do Jordão também. Tá vendo essa marquinha vermelha? É a marca do produto dele. Diz que é mais pura, mais forte, melhor. E os drogados devem concordar, porque nos últimos meses isso aí aparece nas ruas o tempo todo. Faz o maior sucesso. 
     - Como a droga é vendida aqui?
    - Isso eu não sei.
     Mário resolveu pedir informações a alguém mais afeito ao assunto. Voltou para o boteco da vila Albertina onde encontrou de novo Tinoco, exatamente no mesmo lugar da outra vez, com o mesmo copo de pinga na mão. Mário mostrou o flaconete que tinha pego na casa de Mônica.
     - O que pode me dizer sobre isso?
     - Nada. - O mulato respondeu e deu as costas ao policial.
     Mário foi rápido. Agarrou Tinoco pelo pescoço e bateu a cabeça dele no balcão. O outro tentou reagir mas foi imobilizado. Mário deixou o flaconete sobre o balcão a poucos centímetros do nariz sangrando de Tinoco e perguntou de novo.
     - Já disse que não sei. - resmungou.
     - Tá difícil conversar aqui. Você vem comigo.
     - Não, espera, tudo bem. Tudo bem, vou contar. Isso aí é de um fornecedor novo. Traficante de fora, tá desbancando os caras daqui. Principalmente o Radiador, que tá perdendo clientes todo dia.
     - Quem cuida das vendas aqui na cidade?
    - Não sei.
     Mário apertou um pouco mais o pescoço de Tinoco.
     - Não tem jeito, vamos ter que dar aquela voltinha mesmo.
    - Não, para, eu conto! - gritou Tinoco. - O nome dele é Evaristo. Mora num casarão no Alto do Capivari. Lá é tipo a base do tráfico aqui na montanha.
     Mário organizou uma força-tarefa com o apoio da PM e entrou na casa de Evaristo no fim da tarde. O traficante ainda tentou pegar a arma embaixo de uma almofada no sofá, mas não teve tempo de fazer nada. Foi preso no ato. No porão, a polícia encontrou sacolas com milhares de flaconetes, todos marcados com tinta vermelha, e grandes tijolos de cocaína amontoados numa enorme pilha. Devia ter pelo menos quinhentos quilos da droga ali. Uma das maiores apreensões do estado.
     Na garagem da mansão, um carro despertou o interesse de Mário. Um Mercedez preto, com vidros escuros e rodas de liga leve.
     Na delegacia Evaristo contou tudo. Incriminou Fulgêncio Rosa como o cabeça da operação. Dedurou colegas, pontos de venda, depósitos e laboratórios. Tudo para conseguir alguma ajuda da promotoria.
     Depois que os policiais da Entorpecentes terminaram, Mário ainda tinha umas perguntas a fazer.
     - Você matou o Magrelo?
     - Não.
     - Achei que ia negar que conhecia ele…
     - Não tenho por quê. Quero colaborar, já disse.
     - Ele tinha um desses flaconetes perto do corpo, quando acharam ele crivado de bala.
     - Magrelo trabalhava pra mim. Foi difícil recrutar o cara, ele já tava comprometido com outro traficante, o tal do Radiador. Ficou com medo, mas eu fui bem persuasivo. Ofereci uma bolada, benefícios, até um carrão!
     - Carrão? Aquele que estava na sua garagem?
     - Isso mesmo. Encontrei aquele carro abandonado numa estrada rural uns dias depois da morte do Magrelo. Milagre ninguém ter roubado nada. Tirei o carro de circulação, achei melhor, depois do que aconteceu.
     No carro a perícia encontrou digitais de Magrelo, de Evaristo e mais duas pessoas não identificadas. 


5

     A investigação estava caminhando para um beco sem saída. O exame de balística no corpo de Magrelo comprovou que ele foi morto com uma pistola 9mm; a arma de Evaristo era um revólver calibre 38. Evaristo tinha álibis para a morte de Magrelo e para o sumiço de Mônica. Tinoco também não parecia ter algo a ver com a história. O tal Radiador estava fora da cidade quando Magrelo foi morto, o que não queria dizer que ele não fosse o mandante do crime. Mas as pistas estavam acabando.
     Sem mais ideias, Mário resolveu visitar novamente a mãe e a tia de Mônica. Pediu mais uma vez para ver o quarto da moça.
     Dessa vez fez uma inspeção mais minuciosa. Olhou embaixo da cama, onde só havia um par de sandálias. Procurou em cima do guarda-roupa, e achou uma caixa de sapatos com várias fotografias. Examinou as imagens e notou que Gustavo aparecia em várias delas. Em uma, Mônica o abraçava. Em outra, os dois se beijavam. Não eram apenas amigos, afinal. 
     A borracharia ficava perto da casa. Estava vazia àquela hora. Mário notou um certo desconforto em Gustavo quando se aproximou.
     - Alguma novidade sobre a Mônica? - perguntou o borracheiro.
     - Eu é que pergunto. - respondeu Mário, tirando uma pastilha de menta da caixinha que sempre levava no bolso.
     - Como vou saber, doutor?
     - Não sei. Por que não me diz? 
     - Eu não entendo…
     - Você e a Mônica não eram só colegas, né? Por que não me disse que eram namorados?
      - Quem te disse isso?
     - Eu vi fotos no quarto dela. Vocês dois juntos. Data recente no verso.
     Gustavo começou a chorar. Sentou-se sobre uma pilha de pneus velhos.
     - Me conta o que aconteceu. - Mário pediu com voz calma, encostando-se no batente da porta da borracharia. 
     - Eu amava aquela mulher. Aceitava tudo que ela fazia. Sabia que ela transava com uns figurões por dinheiro, sabia que andava usando drogas… aceitava tudo! Mas aí apareceu o tal do Magrelo, com aquela fala mansa, aquele carrão chique… Enrolou a Mônica direitinho. Um dia ela me disse que queria terminar, que estava gostando de outro. Brigamos, e ela acabou confirmando que era o Magrelo. Fiquei louco de raiva. Naquela noite, fiquei de butuca e vi quando ela entrou no carro do sujeito. Fui até a casa dela contar pra mãe e pra tia, mas elas disseram que não podiam fazer nada, que a moça era muito independente. Elas tinham que ter feito alguma coisa, tinham que cuidar da minha Mônica. Mas vi que não iam fazer nada. Fui pra casa, peguei minha arma e começei a rodar sem rumo pela cidade. Acabei achando o carro parado na frente de um restaurante chique do Capivari. Não foi difícil pra mim estacionar numa rua próxima e abrir a porta do Mercedez com uma gazua. Fiquei escondido no banco de trás do carro. Esperei um tempão. Finalmente eles voltaram, sorrindo, alegres. Quando Magrelo pegou o caminho mais afastado, ali pros lados do Horto Florestal, eu encostei a pistola na cabeça dele e mandei seguir pro vale, perto da Pedra do Baú. Chegando lá mandei ele sair da vida da Mônica. Mas o filho da puta riu na minha cara, disse que ela que queria ele, me chamou de covarde,que eu não tinha coragem de atirar. Fiquei cego de raiva. Atirei nele, acertei no braço. Quando dei o segundo tiro, a Mônica se jogou na frente do vagabundo. - Gustavo interrompeu o relato e chorou amargamente. Depois prosseguiu. - Acertei ela sem querer. Aí o Magrelo partiu pra cima de mim. Disparei mais vezes e ele caiu pra frente. Ainda dei um tiro na nuca dele pra ter certeza que tinha morrido. Deixei o corpo lá mesmo. Fui ver a Mônica. Tava morta - Gustavo segurou um soluço e continuou - peguei o corpo dela e enterrei numa mata ali perto. Depois peguei o carro do Magrelo e abandonei numa estrada rural. Voltei à pé pro Capivari, peguei meu carro e voltei pra casa já de manhãzinha. Mal deu tempo de chorar. Tomei um banho e fui pro trabalho como se nada tivesse acontecido. Eu só lamento ter matado a Mônica. Mas o vagabundo merecia morrer.
     Mário pediu a Gustavo que lhe entregasse a arma  que usou para matar Magrelo. Uma 9mm. Pediu também para ele indicar o local onde enterrou o corpo de Mônica. Uma equipe foi até a mata e encontrou a cova horas depois. O tempo chuvoso dificultou o trabalho de exumação. A noite já se aproximava quando o corpo da moça foi colocado num caixão de metal do IML.
     No dia seguinte o tempo virou completamente. As nuvens chuvosas se afastaram. O sol nasceu forte e quente, refletindo sua luz em todas as poças da chuva anterior. Mário acordou bem disposto e foi para a delegacia.
     - Bom dia doutor. O que vamos fazer hoje?
     - Hoje estou com vontade de conhecer pessoalmente um sujeito de quem tenho ouvido falar bastante. Quero ver com meus próprios olhos como é esse tal de Radiador. 
     Disse isso e saiu da delegacia com a chave da viatura na mão, mastigando uma pastilha de menta. 

FIM
     

     
     

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