O Caso do Taxista Assassinado

1

    A estrada até a casa de campo era asfaltada por vinte quilômetros. Acabava numa porteira de madeira com uma corrente e um cadeado, destrancados àquela altura dos acontecimentos. Mas as folhas da porteira ainda barravam o caminho. O policial Mário Russo desceu da viatura, afastou a porteira e voltou pro carro, meio contrariado: "por que não deixaram essa porra aberta?" Era sua noite de folga depois de vários plantões em que nada aconteceu. Mas quando achava que teria um tempo livre pra si mesmo, "pimba!", aparece um cadáver do nada. Se pelo menos o sujeito tivesse a decência de ser morto num dia útil…
    Os faróis baixos da viatura iluminaram o caminho de terra cortado ao meio por um gramado esturricado. "Outono, tempo de mato queimado", pensou Mário sem saber por quê. O carro avançou lentamente pela estreita trilha irregular, cheia de buracos e pedras. Logo apareceu outra viatura parada no meio do caminho e, ao lado dela, uma van do IML. Perto dali, mais uma viatura, da PM.  Uma lanterna o cegou. "Caralho", pensou, colocando a mão na frente do olhos.
     - Mário, é você? 
     - Não, não! É o Papai Noel. Resolvi chegar mais cedo esse ano. 
     O policial com a lanterna na mão não riu do mau humor do colega. Apenas abaixou o facho de luz e esperou Mário descer do carro. Depois indicou ao inspetor o caminho a seguir. Uma  picada  coberta de mato e cercada de pinheiros, morro acima. Mário respirou fundo, contrariado. Não era propriamente um atleta. Os milhares de cigarros consumidos desde a adolescência ainda faziam cócegas em seus pulmões de ex-fumante. O inspetor tirou do bolso uma pequena caixinha de metal e, de dentro dela, uma pastilha de hortelã. Colocou a pastilha na boca, tomou a lanterna do policial  e começou a subir, resmungando baixinho.
    O frio era congelante. A trilha era pouco mais que uma linha no meio do mato. Em muitos trechos se confundia com caminhos abertos por animais silvestres, tornando aquela pequena viagem especialmente complicada. Um galho de pinheiro bateu no rosto do policial. Isso não colaborou em nada para o seu humor. 
    Depois de uma pedra enorme que margeava o caminho, finalmente Mário começou a ouvir vozes. Logo adiante, um grupo conversava imerso no bruxulear de lanternas que se moviam de um lado para o outro, como que procurando alguma coisa. Eram os peritos do IML, dois PMs meio afastados, um sujeito com uma pá e um homem usando um longo sobretudo. Osvaldo. Mário reconheceria o colega só por aquela peça de vestuário, mesmo que não visse seu rosto ou ouvisse sua voz. 
    - Ah, chegou! - disse Osvaldo - Já ia mandar perguntar por você.
    Mário não respondeu.
    - Homem, 45 anos, taxista. Genivaldo de Sousa. Saiu de casa depois do almoço há dois dias dizendo que pegaria um passageiro e não voltou pra casa. A mulher registrou a queixa na sexta-feira, provavelmente quando o marido já estava morto. Tiro no coração. 38.
    "Bom resumo", pensou Mário, colocando as luvas de látex. Foi até o corpo, deitado de costas no que parecia uma cova rasa, de menos de trinta centímetros. Observou a tonalidade da pele, condizente com um óbito de dois dias atrás. O ventre inchado, talvez por cervejas consumidas em vida, talvez pelos gases do pós-morte. A cabeça levemente calva, a camisa aberta no peito, a terra cobrindo as narinas, a boca, os olhos. Mário procurou nos bolsos. Nada. Osvaldo estendeu a ele a carteira do defunto. Apenas o RG. Nenhum dinheiro. Podia ser um latrocínio. Mas por quê deixar junto ao corpo algo que identificasse tão facilmente a vítima? Amadorismo.
    Mário se preparava pra inspecionar os bolsos da camisa do morto quando viu um flash de luz sobre o corpo. Olhou pra trás e notou um rapaz com uma câmera na mão, abaixando-se e vomitando copiosamente. 
    - Quem deixou esse cara subir aqui? - gritou Mário enquanto o outro ainda vomitava. 
    Osvaldo correu até o rapaz e ajudou-o a se erguer. Ficou sabendo que era repórter novato da Folha da Região. Mandou-o voltar por onde veio. 
    Mário fuzilou Osvaldo com os olhos. O outro só deu de ombros e pediu ao PM mais próximo que acompanhasse o jornalista na descida, e se certificasse que ninguém mais subiria até ali.
    - E arranca a câmera dele! - berrou Mário.
     O inspetor continuou procurando alguma evidência por longos minutos. Depois pediu ao pessoal do IML que removesse o corpo para a autópsia. Juntou-se a Osvaldo e os dois desceram. 
    - Quem achou o corpo?
    - Um caçador de passarinhos. - respondeu Osvaldo.
    - Cadê ele? 
    - Na delegacia.
    - Vamos lá ver no que ele ajuda.
    Na delegacia, uma caneca de café fumegava em frente à escrivã Julia Trindade. Os olhos um pouco vermelhos de sono, a mão amparando o queixo, o tédio recobrindo os sentidos. Num canto, no banco da frente da delegacia, o caçador de passarinhos esfregava as mãos sem parar. Parecia ansioso por sair dali e voltar pra casa. 
    A viatura de Mário jogou um facho de luz sobre os olhos do caçador, que se encolheu e cobriu o rosto, instintivamente. Mário e Osvaldo saltaram e foram diretamente a ele. 
    - Vamos conversar lá dentro - disse Mário.
    O jovem seguiu os dois policiais até uma sala austera. Uma mesa, duas cadeiras, um brasão da polícia civil com uma caveira e duas pistolas cruzadas na parede. Sala de interrogatório.
    Tinha pouco a contar, o rapaz. Estava caçando passarinhos com sua arapuca, como sempre fazia. Notou que naquele ponto a terra estava revolvida. Cavocou um pouquinho e quase morreu de susto quando achou um sapato e, dentro dele, um pé humano. Continuou cavocando, descobriu que ligado ao pé havia uma canela… foi quando entendeu que tinha achado um cadáver. Desceu correndo a ribanceira, foi até o telefone mais próximo e chamou a polícia. Não, não viu ninguém, não, não ouviu nada além do canto de um bem-te-vi, não, não sabe onde está o táxi do morto, nada mais a declarar. Assinou um depoimento: "Gumercindo da Silva". Deixou endereço e telefone. Foi liberado logo. Pouca ajuda, quase nenhuma.
    Ia amanhecer dali a pouco. Sonolenta, Júlia pegou a folha com a declaração da testemunha, colocou dentro de uma pasta suspensa  e guardou num arquivo de aço. Coçou os olhos, bocejando. "Pode ir embora, querida", disse Mário a meia voz. O policial só conseguia ser gentil com aquela bela escrivã de cabelos loiros. A moça lhe deu um beijo na bochecha e saiu pela porta sem olhar pra trás. 
     Depois de uns cafés amargos, Mário abriu o arquivo, tirou a pasta, releu a declaração do caçador de passarinhos, olhou as fotos já reveladas do cadáver. "Um roubo que acabou mal", pensou.


2

    Genivaldo nasceu na Paraíba. Veio pro sul de pau-de-arara, trazido pelo pai com seus dez irmãos e a mãe. Primeiro tentaram a sorte em São Paulo, onde o chefe da família se matava de trabalhar na construção civil enquanto a mãe tentava dar o mínimo de dignidade ao barraco que ocupavam, embaixo dum viaduto. Mas era difícil manter as margaridas vivas no vaso, borrifadas que eram de gás dos escapamentos dos carros o tempo todo. 
    Passaram-se alguns anos, Genivaldo cresceu, a muito custo conseguiu estudar até a quarta-série. Como sabia ler e escrever, arranjou um emprego de lavador de pratos num restaurante da Vila Madalena. Trabalhava duro. Sempre que voltava pro barraco onde morava, passava alguns minutos observando os carros que voavam baixo sob o viaduto. Aquilo o fascinava. "Vou ser motorista", dizia para si mesmo. E o dinheiro escondido debaixo de uma lata de Nescau, um belo dia, se mostrou suficiente pra pagar a autoescola. Se o pai soubesse que ele tinha tanta grana escondida, provavelmente apanharia até ficar manco. Mas Genivaldo fez tudo em segredo. Teve aulas de direção nos horários de folga. Logo demonstrou grande facilidade no trato com um automóvel. Era como se tivesse nascido para aquilo. 
     Tirou a carteira de motorista profissional com louvor, na primeira tentativa.
     A fase dois da realização do sonho foi procurar emprego nas companhias de transporte da capital. Mas o mercado estava abarrotado de candidatos a um emprego. Nada sobrava. São Paulo, de repente, ficou pequena pro sonho dele. 
     Um dia, na padaria, Genivaldo conheceu um taxista. Entre um café com leite e um pão com manteiga, o homem falou com entusiasmo sobre o trabalho de transportar pessoas: "nossa, muito mais simples do que carregar cargas pelo país afora. Rala menos, ganha mais, não fica longe de casa…"
     Entre os dois uma camaradagem natural se formou. O taxista fez o convite: "não consigo trabalhar 24 horas por dia. Eu fico com o turno do dia, você com o da noite, que acha?"
     Genivaldo aceitou na mesma hora. Foi até o restaurante, pediu as contas, e começou a dirigir um táxi naquela noite mesmo.
     Dentro daquele carro, conheceu muito sobre as pessoas, sobre os carros, sobre a cidade em que vivia. E foi guardando dinheiro, já pensando em outro sonho: comprar o próprio táxi. 
    Naquela altura, já tinha perdido contato com o resto da família. Os irmãos se perderam pelo mundo. A mãe já era morta, o pai um dia não voltou pra casa. Não tinha mais nenhum vínculo e, por incrível que pareça, isso lhe dava uma agradável sensação de liberdade. O que fazia, era por ele e mais ninguém. E manteve no coração a certeza de que conseguiria fazer o que quisesse. 
    Genivaldo descobriu que no interior o custo de vida era bem menor que na grande São Paulo. Nada o impedia de mudar pra outra cidade, onde conseguisse fazer mais economia pra subir na vida. Assim, somando dois mais dois com uma praticidade de dar inveja, resolveu se mudar para Taubaté. Um lugar movimentado, não muito grande, não muito pequeno, ideal pra ganhar dinheiro.
    No segundo ano que estava em Taubaté, já dono do próprio táxi, percebeu que ali perto havia mais oportunidades. Gente endinheirada gostava muito de passar o inverno em Campos do Jordão, no alto da Serra da Mantiqueira. Se ele conseguisse uma licença pra trabalhar ali, certamente os ganhos viriam. 
     E conseguiu. Mudou-se pro alto da serra e trabalhou como nunca antes. Notou que em julho ganhava quase o suficiente pra se manter o ano inteiro, transportando turistas de lá pra cá. Comprou uma casinha no Britador. Conheceu uma negra de ancas largas e olhar fogoso, apaixonou-se e mudou sua filosofia de tocar a vida sozinho. Casou-se logo com Mariana. Tiveram dois filhos. 
     A vida estava num bom caminho. O dinheiro entrava. O jeito austero de Genivaldo e Mariana fazia sobrar um bocadinho todo mês. Tudo guardado para um novo sonho: abrir uma companhia de táxis, contratar gente, se tornar empresário! E o sonho estava em vias de virar realidade. Só uma coisa incomodava: as longas ausências de Genivaldo, sempre trabalhando. 
   Numa quinta-feira, depois do almoço, Genivaldo recebeu um telefonema. Ouviu o que diziam do outro lado da linha balbuciando "uhum, uhum". Depois levantou-se da mesa e comunicou a Mariana que tinha uma corrida imprevista pra fazer. Dinheiro bom, valia a pena. Beijou a esposa com uma paixão incomum e saiu pela porta.
     Mariana começou a se preocupar quando Genivaldo não apareceu na hora da janta. Mais tarde, às dez da noite, estava desesperada. Ligou para o ponto de táxi onde o marido trabalhava. Outro taxista atendeu e disse que não tinha visto Genivaldo naquele dia inteiro. Mariana ligou para a delegacia e foi orientada a esperar até o dia seguinte para registrar o desaparecimento.
     Não dormiu a noite toda.


3

     Campos do Jordão era um lugar tranquilo. O último homicídio na cidade tinha ocorrido mais de cinco anos antes, quando um estudante foi encontrado com a cabeça quebrada dentro da bilheteria do campo de futebol do bairro Abernéssia. A arma do crime, um tijolo, estava ao lado do corpo. Nunca descobriram quem fez aquilo.
     No demais, o que ocorria de violento na cidade era uma briga de turistas com nativos. No máximo, um olho roxo, um dente quebrado e um b.o. por desinteligência. Nome muito adequado pra situação. Ou então alguns sopapos entre bêbados no boteco da avenida Januário Miraglia, perto da estação do bondinho. Crime de morte era um acontecimento.
     João Miguel  era um estudante de jornalismo da Universidade de Taubaté, mais entusiasmado do que competente. Conseguiu um "estágio" num jornal quinzenal de Campos do Jordão, como repórter. "Repórter"! Essa palavra parecia dançar em sua boca toda vez que a pronunciava. Era como uma chave, uma passagem secreta para um mundo de aventuras e glamour. Algo como um 007 com caneta e bloquinho em vez de uma semiautomática. 
      João Miguel estava há um mês na função. Já tinha coberto a abertura de uma nova loja de móveis, a inauguração de uma praça, a chegada de um novo carro para o corpo de bombeiros. Tinha feito uma matéria de uma coluna e 200 palavras sobre a falta de saneamento básico na vila Sodipe (seu grande orgulho profissional até aquele momento, em sua breve carreira) e o obituário de um vereador. 
     Os assuntos aparentemente insípidos não o desanimavam, pelo contrário. Encarava tudo com o prazer de quem descobre um tesouro, uma novidade. E foi com essa disposição que ficou sabendo que estava escalado para acompanhar o plantão policial na delegacia, naquele sábado. Ganhou uma câmera fotográfica, dois rolos de filme (economize nas chapas, colega!) um bloco e uma caneta. A pauta, "vida de policial". Mostrar como era o plantão naquela cidade pacata, madrugada adentro.
     A noite começou tranquila. Uma mulher apareceu com o marido escoltado por dois PMs. Acusava o homem de agressão e mostrava o olho roxo como prova. O homem tentou argumentar mas foi interrompido por um sonoro tapa desferido pelo escrivão Rivaldo. Rivaldo era um homem de ar sossegado e óculos redondos; mas sob a capa de benignidade era capaz de atos violentos como aquele. Sua imagem definitivamente não correspondia com sua postura. Tranquilidade por fora, violência por dentro.
     Rivaldo anotou a ocorrência, levou o sujeito pra uma cela e o trancou ali. Depois se dirigiu ao repórter assustado com o que viu, e falou: 
     - Não escreve nada sobre esse tapa não, tá?
     O pedido teve uma sonoridade de arma engatilhada, apesar da voz macia. João Miguel balançou afirmativamente a cabeça, lamentando por dentro que um dos fatos mais interessantes da noite não apareceria em sua brilhante reportagem.
     As horas se arrastaram sem novidades, até que uma viatura da PM estacionou em frente à delegacia. Dela desceram dois policiais e um jovem, talvez da mesma idade que João, usando roupas velhas e cobertas de pó. Um chapeu de palha na cabeça. O jovem foi levado pra dentro do DP. João quis segui-lo mas foi impedido pelo PM. "Assunto de polícia, desafasta!" O jeito foi se acomodar no banco da frente da delegacia.
     João já dava cabeçadas sonolentas no banquinho, mais de uma hora depois. De repente acordou sacudido pelo ombro. Levantou a cabeça e viu Rivaldo. 
     - Que sorte você tem, moleque. Não acontece nada há anos, e quando você tá de plantão aqui no DP, me aparece um caso de homicídio. Quer acompanhar?
     Sem entender direito o que ouvia, só respondeu que sim. Levantou-se e entrou na delegacia seguindo Rivaldo. Ele tinha acabado de receber um telefonema e ia até o local onde o corpo havia sido encontrado. Pegou a arma na gaveta e a chave da viatura. 
     - Prepara tua câmera, moleque. Vai ter o que mostrar na edição de segunda-feira.
     A caminho do local, Rivaldo contou a João que um taxista tinha sumido desde quinta-feira. Um corpo que correspondia à descrição do desaparecido tinha sido encontrado no Alto da Boa Vista pelo jovem que a PM tinha trazido. O morto estava num bosque perto da área das mansões. Era para lá que estavam indo.
     O caminho de asfalto terminava numa porteira de madeira, que estava aberta. Avançaram por um caminho de terra dividido ao meio por um canteiro de grama seca. Logo adiante encontraram duas viaturas da polícia civil e uma van do IML, paradas na estrada. Ao lado, outra viatura, da PM. Rivaldo recebeu o facho de uma lanterna diretamente nos olhos e gritou: "porra, abaixa essa merda!". O policial, dono da lanterna, obedeceu.
     Rivaldo explicou que o rapaz com ele era um jornalista e iria até o local do encontro do cadáver para escrever uma reportagem. Requisitou a lanterna do policial (a segunda que ele cedia naquela noite) e entregou a João Miguel com uma recomendação:
     - Segue essa trilha aí, morro acima, e não desvia do caminho.
     - Você não vai não? - perguntou João um pouco assustado.
     - Pra quê? Tenho nada pra fazer lá não. Cê num quer a notícia? Vai atrás!

     Mais por orgulho do que por convicção, João Miguel virou-se para a trilha e começou a subir. Tropeçou em algumas pedras, confundiu-se com as picadas abertas por animais silvestres, e de repente viu-se sozinho no meio da escuridão. Sabia que havia um morto por perto. A mente, sempre criativa, começou a fantasiar histórias terríveis de fantasmas e monstros. Uma coruja piou - ou, pelo menos, pareceu piar aos ouvidos de João. 
     Logo o medo se tornou uma bola de gelo no estômago do rapaz. A coisa só ficou pior quando ele divisou uma grande pedra na beira do caminho. Assim que a alcançou, retorceu a face numa careta de repugnância. Um cheiro que ele nunca havia experimentado invadiu suas narinas. Carne humana em decomposição. 
     João reuniu toda a coragem que lhe restava e avançou. Logo viu os policiais em volta de uma cova no chão. Aproximou-se mais. Estava difícil enxergar na escuridão. Foi quando uma das lanternas iluminou o rosto de um morto com terra nos olhos, no nariz, na boca… O cheiro ficou ainda mais forte. Por puro instinto, João ergueu a câmera e bateu uma foto. Depois virou-se para o lado e vomitou.
     Ouviu algumas palavras que não conseguiu entender, sentiu mãos amparando seus ombros, e ergueu-se. Um policial falava com ele. Esforçou-se e finalmente entendeu que devia sair dali, voltar por onde veio. Obedeceu com alegria.
     Quando já se afastava conseguiu ouvir outra frase, meio gritada com raiva:
     - E arranca a câmera dele!. 
     João Miguel olhou para trás e viu o PM que tomava o caminho logo atrás dele. Pensou rápido: tirou o filme da câmera e colocou o outro rolo no lugar. Quando o PM chegou a seu lado, nem teve tempo de pensar.
     - Me dá essa câmera!
     - Mas eu sou da imprensa! Tô trabalhando - argumentou.
     O PM nem respondeu. Arrancou a câmera das mãos do rapaz, abriu o compartimento do filme e arrancou o rolo, expondo todas as chapas virgens.
     - Vamos logo! - mandou o PM, empurrando João Miguel trilha abaixo. 
     Rivaldo viu o rapaz se aproximando e não conteve uma risada. "Chega de brincar de repórter por hoje, moleque? Te dou uma carona até sua casa, vamos." 
     João Miguel não discutiu. Horas depois, dormia um sono agitado, tentando a todo custo se livrar do cheiro de morte que lhe impregnava o nariz. 

4


     - Agora o pepino é seu, loira.
     Júlia limitou-se a encarar Rivaldo com um olhar irritado. Ela nunca se acostumaria ao turno da madrugada. 
     - Onde você tava? Deixou só o guarda aqui no DP, vigiando uma testemunha.
     - Fui até uma cena de crime e depois dei carona pra um foca. Assunto policial, belezura.
     - Não devia deixar a delegacia assim - protestou Júlia.
     - Ora, se você não contar, eu não conto! - riu-se Rivaldo.
     "Um dia ele ainda vai se dar mal", pensou a escrivã.
     Julia olhou de novo para o rapaz em pé no canto da delegacia. "Pode se sentar no banco ali fora se quiser", disse a ele. "Mas nem pensa em sair daqui", ameaçou.
     Logo depois Mário e Osvaldo chegaram para tomar o depoimento da testemunha.
     
5

     Na primeira hora da manhã, o inspetor Mário foi direto à casa do taxista morto. Deu a notícia com o máximo de delicadeza que sua índole seca permitia. Suportou por alguns minutos as lágrimas da viúva, notou os olhares assustados das crianças espreitando pelo vão da porta da sala, pegou mais uma pastilha de hortelã e jogou na boca: "porra, que vontade de fumar!"
     Depois dessas preliminares rotineiras e obrigatórias começou o trabalho propriamente dito. Mariana foi interrogada impiedosamente:
     - Então alguém ligou pra ele na quinta. Quem?
     - Não sei, um cliente.
     - Não sabe, ou era um cliente?
     - Era um cliente, ele disse que era. Não me disse o nome.
     - A que horas foi isso? Ele disse qual era a corrida? Ele costumava receber ligações de trabalho em casa? Tinha clientes que costumavam ligar? Quando deu pela falta dele? Quando avisou a polícia? Por que só registrou o sumiço no dia seguinte?
    - Ora, por favor! A polícia me orientou a fazer isso! Quase morri de angústia de tanto esperar!!!!!
     Mário logo percebeu que aquela conversa não daria em nada. Em meio ao pranto da viúva, levantou-se e tomou o rumo da porta. Ouviu então uma voz infantil: "o papai está bem?"
     Mário não respondeu. Limitou-se a sair.
     Na viatura, tomou o rumo do ponto de táxi onde Genivaldo trabalhava. Só um motorista estava por lá àquela hora. Mário perguntou como funcionavam as chamadas. Se os clientes costumavam ligar diretamente para os taxistas. "Claro que não, a menos que fosse cliente de longa data. Quem daria o telefone de casa pra um estranho?" Mário pensou que seria um grande avanço se cada pessoa pudesse ter um telefone pessoal, móvel, sempre consigo para onde quer que fosse. Quem sabe no futuro. 
     O inspetor telefonou do ponto de táxi para a delegacia. Pediu a Rivaldo, recém colocado no plantão do dia, que exigisse o registro de ligações telefônicas para a casa de Genivaldo na quinta-feira passada. Sabia que conseguiria a lista dentro de, no mínimo, um mês. Esperava resolver o caso muito antes disso.
     A necropsia começaria em dois dias (não havia legista de plantão). O resultado da balística levaria pelo menos uma semana. Mas o inspetor já sabia por experiência própria, adquirida depois de ver centenas de ferimentos a bala em sua função anterior como policial em São Paulo, que o buraco no peito da vítima era correspondente a um tiro de 38, como Osvaldo informara na noite passada. Demais laudos, perícias, exames, talvez todos prontos em dois meses. Trabalho ingrato. Investigar um crime é voar às cegas, de noite, na tempestade. Enquanto isso o assassino tinha todas as vantagens, livre e solto por aí.
     De volta à delegacia, Mário resolveu ler de novo o depoimento do rapaz que achou o corpo. Leu mais outras vezes. Levantou-se e foi até a casa do caçador de passarinhos. 
     Era uma cabana meio afastada, no bairro do Zé da Rosa, zona rural da cidade. "O rapaz andava bastante pra caçar…" o Alto da Boa Vista onde achou o cadáver ficava a quilômetros de distância, no alto de uma colina. Isso não passou despercebido do inspetor. 
     Mário bateu na porta. Nenhuma resposta. Bateu novamente. Nada. Resolveu forçar a maçaneta da cabana. Trancada. Tirou uma gazua do bolso e rapidamente abriu a fechadura primitiva. Entrou e verificou todos os cômodos. Vazios. Sobre uma escrivaninha na sala, uma foto de uma bela moça de cabelos encaracolados. Mário se aproximou da fotografia e ouviu um rangido sob seus pés. Deu um passo atrás e olhou para baixo. Notou que uma das tábuas do assoalho estava desalinhada. Foi até a cozinha, achou uma faca de carnes. Voltou à escrivaninha e usou a faca para forçar a tábua no chão. Ela saltou como uma mola. Embaixo, uma caixa de sapatos. Mário pegou a caixa e a abriu.

6
     No meio da tarde João Miguel estava de volta à delegacia, meio constrangido pelo espetáculo que dera na noite anterior, preocupado com a forma como seria recebido. Rivaldo, porém, quebrou logo o gelo. 
     - Moleque! Achei que não ia voltar! Você sabe, tem um caso de assassinato em andamento. 
     João só mexeu a cabeça em anuência. 
     Nesse momento Mário entrou na delegacia. 
     - Onde está o caçador de passarinhos?
     - Na casa dele! - respondeu Rivaldo.
     - Não está.
     - Então não sei, caçando por aí, sei lá…
     - Acha ele e trás aqui.
     - Que aconteceu, inspetor?
     - ACHA ELE E TRÁS AQUI!
     Mário saiu. João o seguiu, sem pensar muito.
     - Doutor, sou o João Miguel, repórter do…
     - Sai de perto, urubu. 
     - Mas doutor, eu tô no caso do taxista morto.
     "Ah meu Deus", pensou Mário. "O babaca do Rivaldo andou falando demais de novo". - Esse caso é da polícia, sai fora.
     - Só umas perguntas.
     Mário parou, olhou ameaçadoramente para o jornalista, virou as costas e saiu andando. João não o acompanhou mais. 
     Mário tomou o caminho do lugar onde o corpo foi encontrado. Parou na beira da estrada de terra e retomou a subida pela trilha. Notou no trajeto algumas luvas jogadas pelos peritos, restos de fita de isolamento, a grama pisada, o galho quebrado por seu rosto na noite anterior. Chegou à cova rasa. Procurou em volta, agora ajudado pela pálida luz do sol. Não encontrou nenhuma marca de corpo arrastado. A vítima tinha vindo até ali caminhando. Não fazia sentido. Seria muito mais prático roubar o taxista e fugir, sem matar. Ou matá-lo no mesmo lugar do roubo do táxi, onde quer que fosse. Não fazia sentido levar uma vítima pra um lugar tão desolado. A menos que o motivo não fosse um roubo. 
     O inspetor voltou para a delegacia. Nada do caçador de passarinhos. Sumiu, virou fumaça. O repórter ainda estava lá, incansável. Mário olhou para ele com desprezo e entrou na sala de interrogatórios, puxando Rivaldo pelo braço.
     - Que ideia é essa de deixar a imprensa aqui na delegacia?
     - Ué, os tempos mudaram Mário. Hoje em dia a polícia tem que dar satisfação pra sociedade.
     - Mas não contar pra um repórter fatos importantes de uma investigação em andamento. Foi você que levou ele até o lugar onde estava o corpo, não foi? E contou quem era a vítima, e tudo que aquele moleque sabe. 
     - Olha aqui, Mário. Se não gostou de alguma coisa que eu fiz, fala pra corregedoria. Caso contrário, não me enche o saco!
     Mário deu um murro na mesa e saiu deixando pra trás o escrivão de óculos embaçados. Foi até a sala de evidências e abriu um arquivo de metal onde havia uma caixa com os pertences de Genivaldo. Ali estava a carteira, o RG, a camisa, as calças… Mário resolveu examinar melhor a carteira do morto. Encontrou um compartimento secreto. Dentro dele, uma foto. Reconheceu imediatamente de quem se tratava.
     - Solta um mandado de busca contra o caçador de passarinhos, o tal de Gumercindo. É pra ontem, Rivaldo!

7
     O caçador de passarinhos foi encontrado na rodoviária, comprando um bilhete pra São Paulo. De lá, pretendia ir direto pra Bahia, onde tinha parentes. Foi levado à delegacia e colocado frente à frente com o inspetor Mário Russo.
     Acabou confessando a história toda. 
     - O desgraçado do Genivaldo seduziu a minha noiva Manuela.
     Mário colocou diante dele a foto encontrada na carteira de Genivaldo, a foto da mesma moça que ornamentava a escrivaninha na cabana de Gumercindo. 
     - É ela mesmo, doutor. A gente ia se casar, aí ela veio com uma conversa que tinha achado outro amor, e tal e coisa… eu pressionei e ela me contou quem era. Homem casado pai de dois, veja só como é o demo, desatinou minha noiva. Ela não queria ouvir a voz da razão, só dizia que o safado ia se separar, casar com ela, essas coisas. Eu fui tirar satisfação com o infeliz, liguei pra ele em casa, disse que se não viesse falar comigo eu contava pra mulher dele o que estava acontecendo. 
     - Foi na quinta-feira depois do almoço.
     - Sim, senhor. Ele foi. Entramos no táxi, fomos rodando até perto daquele lugar. Mostrei o revólver pra ele…
     - O revólver que você escondeu debaixo do assoalho da sua cabana, no Zé da Rosa.
     - Isso, isso - falou Gumercindo surpreso. - Apontei pra ele e mandei ele subir a trilha. Atirei, matei, enterrei cavocando com as mãos e a chave inglesa que achei no carro -ergueu as mãos com os dedos nodosos e as unhas gastas. - Depois peguei o carro dele, dirigi até o lago da Boa Vista e deixei correr pra dentro d'água. Foi assim.
     - Mas por que foi…- Mário se voltou para a voz que interrompia seu interrogatório. João Miguel ficou vermelho, engoliu em seco, mas continuou a pergunta - mas por que foi que você levou a polícia até onde estava o corpo?
     - Essa eu mesmo respondo - devolveu Mário, com irritação na voz. - Era a melhor maneira de despistar. A gente não ia achar que um assassino levaria a polícia até o local de um crime.
     - É isso. É isso. Eu até peguei o dinheiro que o canalha tinha na carteira, para acharem que era um assalto. 
     Mário pegou uma pastilha de hortelã da caixinha de metal. Colocou na boca:
     - Anotou tudo, "senhor repórter"? 
     João Miguel, de pé diante da porta da sala de interrogatório, fez que sim com a cabeça e saiu.

8
     No velório foi difícil evitar o constrangimento, já que Manuela fez questão de aparecer, chorosa e bela com seus cachos negros ornamentando o rosto suave, inconsolável. A viúva Mariana manteve a integridade. Não houve barraco ou cena de ciúmes sobre o caixão do defunto. Apenas a imagem da não menos bela viúva cercada dos filhos pequenos, que não entendiam a perda precoce do pai.
     Na noite de segunda-feira, num barzinho de Capivari, João Miguel comentava com os amigos como foi feita a reportagem que estampava a primeira página da edição daquele dia. Como conseguiu salvar a foto que ganhou quatro colunas do jornal, escondendo o filme no bolso. Lembrou-se do cheiro, do mal estar, da dificuldade para conseguir as informações. Omitiu o vômito… mas descreveu em detalhes o medo que sentiu na trilha, sozinho, à noite, perto do local onde o corpo havia sido enterrado. Falou também da boa vontade do inspetor Mário Russo, depois que o caso foi resolvido, deixando-o testemunhar a confissão de Gumercindo. A reportagem não deixava de ser uma comprovação da agilidade da polícia no caso.
    - Gente, acho que tenho mesmo estômago pra ser repórter - sentenciou.

(Livremente inspirado em fatos reais)
FIM
       


     
       

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