Xerife

_Tá tudo em ordem, Jair? - perguntou o delegado ajeitando a gravata na entrada da carceragem.
-Tudo, dotô. - respondeu o preso com um sorriso banguela.
-Bom… - o delegado resmungou um comentário ininteligível e deu as costas ao detento, voltando para sua sala com ar condicionado.
Jair também se mexeu, voltando para o longo corredor de celas. Foi caminhando lentamente, olhando para a frente, como se não ouvisse os apelos dos enjaulados.
"Jair, conseguiu a licença pra Lucinda vir me ver?", pergunta um…
"A cela continua com a latrina entupida", reclama outro.
"Pô, Jair, tá na hora de renovar o nosso estoque de cigarro", lembra um terceiro.
Jair vai andando, ignorando os colegas de prisão. Olha fixamente para o xadrez mais ao fundo. As grades abertas.
Entra, abaixa-se e descansa o peso do corpo sobre os calcanhares descalços, sandálias de borracha nos pés.
- Você tá legal? - pergunta pro detento recém-chegado.
Não há resposta.
- Cê parece inteligente. Vou te explicar como funciona. Cê confia em mim, eu confio em você, cê faz o que eu falo, cê fica numa boa.
Nenhuma resposta.
- Pra provar minha boa vontade já fui me informar. Tô sabendo do que cê gosta, trouxe até um pouquinho procê. Presente, pode pegar.
Jair estende um minúsculo embrulho para o rapaz franzino à sua frente, encolhido na escuridão da cela.
- Pode pegar, é da boa. Arranjei até uma bic usada. É só tirar a carga e usar o bastãozinho de vidro. Te juro, cê vai amar.
O outro estremece. Não resiste. Pega o presente e o consome de uma vez, espalhado numa pequena carreira sobre a cama de concreto.
"Esse é fácil de controlar", pensa Jair, saindo da cela em direção ao minúsculo pátio do banho de sol. 
Não vai haver problema. A ordem vai prevalecer no distrito trinta e dois. É só garantir o mínimo de "mordomia" pros condenados.
Uma visita íntima de vez em quando, um celular, e a principal moeda: a droga. Nesse serviço não remunerado, o grande prazer é a autoridade. Não a autoridade "de mentirinha", oficial e fraca. A autoridade de fato, aquela baseada na capacidade de oferecer concessões, burlar as regras e driblar o sistema. O mundo real por assim dizer. 
A autoridade baseada no poder supremo de cortar um pequeno privilégio daqueles que não são mais donos nem do próprio tempo.
Tudo por mais um dia tranquilo no paraíso.

(Foto de Marcos Correia)

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