Grandalhão

   Não importa o quanto desejemos que a vida seja poética e sublime: sempre haverá surpresas grotescas que, apesar de estranhas, encerrarão em suas entrelinhas as mais belas lições.
   E que época para maiores e melhores aprendizados senão a infância? A infância, retratada como um terrível pesadelo por Graciliano Ramos ou Maksim Gorky. A "doce" infância que tantos traumas conjura nas vidas ainda em formação. A "adorável" infância, onde nascem nossos piores monstros, aqueles que nos acompanham pela vida toda.
   Jorge estava enterrado na própria infância até o pescoço como um peixe moribundo no lodo ou um inseto no papel mata-mosca. Do alto de seus doze anos debatia-se valentemente contra aquela realidade aterradora que não permitia vislumbrar o menor sinal de melhora no futuro - se é que haveria futuro.
   Fila no pátio antes de entrar na escola. Hino Nacional entoado com voz forte e letras trocadas. Uniforme impecável… e os inevitáveis safanões dos alunos mais velhos, os chamados "repetentes", enquanto a turma seguia para a sala. Criaturas monstruosas os repetentes. Aqueles que não conseguiam avançar de série na escola e descontavam essa frustração nos alunos novos e franzinos - como Jorge.
   Nos seis primeiros meses Jorge se viu forçado a representar o papel de saco de pancadas nesse teatro de horrores. Infalivelmente jogado nas poças de lama que se formavam depois da chuva, chutado nos fundilhos durante a aula de educação física, ridicularizado pelas mais bonitas alunas da escola, que caçoavam dele com risinhos perversos e nada discretos. Em dia de prova, seus algozes se posicionavam estrategicamente em redor dele na sala. Um atrás, um de cada lado. Objetivo: colar. E "ai" do pobre Jorge se tentasse argumentar que aquilo não era direito.  Inocente, fez isso da primeira vez. Foi surrado como massa de pão  antes de ir para o forno. Depois daquilo até pensou em denunciar, mas qual! Não queria morrer!!!
   Quando chegava em casa o pai alcoólatra limitava-se a olhar para ele, mal notar o uniforme imundo e a cara cheia de hematomas. Resmungava algo sobre o fato das crianças não saberem se comportar e voltava à garrafa de cachaça. 
   "Estou perdido", pensava aquela alma infantil, tão precocemente desenganada. Não via à sua frente a menor possibilidade de fuga de um destino infeliz.
   Assim seguiram-se os dias, as semanas, os meses. De tapa em tapa, achincalhe a achincalhe, cambaleava Jorge na direção das férias escolares, desejadas como a última tábua de salvação. 
   Sim, há o descanso, por mais desgraçado que seja o condenado. Assim foi com Jorge. As férias de meio de ano chegaram e ele se sentiu estranhamente livre. A omissão do pai bêbado, tão pesada para ele durante as aulas, tornou-se uma bénção nas férias. Jorge se permitiu explorar possibilidades. Brincou, correu, vadiou pelas ruas da cidade com outros meninos desgarrados como ele. Sentiu-se o dono do mundo pela primeira vez. E decidiu: escola, nunca mais. 
   Numa dessas tardes de libertinagem infantil os moleques foram jogar bola com as crianças do bairro de cima. A rivalidade entre as duas turmas era histórica. No futebol, a bola era apenas um detalhe: o que mais contava era a capacidade de causar dor ao adversário. Um jogo de adultos numa versão pueril. A violência em suas primeiras manifestações. 
   O jogo daquele sábado era importante. A melhor de três entre os times inimigos. Jorge e seus companheiros logo notaram que os adversários estavam armando alguma coisa: além dos meninos sempre presentes, um perfeito gigante se destacava. Uma figura de mais de um metro e setenta de altura. Músculos desenhados nos braços e pernas. Pescoço robusto, força bruta em forma de pessoa. 
   Os meninos do bairro de baixo reclamaram. Não podiam enfrentar um adulto. "Adulto nada", responderam os do bairro de cima. "Ele tem 11 anos que nem todo mundo", garantiram. 
   Depois de muita discussão, acabaram  vencidos por seu orgulho. "Estão com medo? Podem entregar o jogo se quiserem". Jamais fariam aquilo. Foram à luta. E foram massacrados. 
   Jorge não se lembra do placar daquela partida. Só se recorda perfeitamente das caneladas, dos socos, empurrões, chutes desferidos por aquele colosso "de onze anos". Todos contundidos, os moleques do bairro de baixo foram humilhantemente derrotados.
   Acabaram as férias e, ao contrário das expectativas de Jorge, ele teve que voltar às aulas. Se não estudasse o pai poderia ser responsabilizado. Entre uma dose e outra o velho resolveu garantir que não fosse incomodado pelas autoridades mandando o filho para as aulas. 
   Na fila de entrada as cenas de violência se repetiram. Jorge estava entre os primeiros alunos da fila. Assim que começou o caminho para a sala, foi violentamente empurrado para trás por Danilo, um de seus carrascos mais frequentes. Desequilibrado, levou um tapão na orelha que o jogou ainda mais para o fim da fila. Quando buscava um ponto de apoio para não cair, tropeçou nos pés de Malaco, intencionalmente colocados em seu caminho para fazê-lo perder o equilíbrio. O garoto de cabelos pixaim e olhos grandes deu uma risada alta quando Jorge se estatelou no chão do pátio. 
   Acabrunhado, irritado, com lágrimas de ódio nos olhos, Jorge se levantou e assumiu seu lugar - o último da fila. Contrariado, foi à sala de aula como um condenado que vai à forca.
   Assim que o professor entrou na sala fez-se um silêncio absoluto e instantâneo. Mesmo Danilo, mesmo Malaco e os outros valentões ficaram calados e puzeram-se de pé, em sinal de respeito. 
   O professor Gumercindo colocou os livros sobre a mesa, apagou o quadro negro, ajeito os óculos e suspendeu as calças largas sobre a pança evidente. Virou-se para a turma e começou a explicar inalcançáveis noções de matemática básica. 
   No meio da aula, um toc-toc na porta. 
   "Pode entrar", disse o professor.
   Era a secretária da escola, informando que um novo aluno havia acabado de chegar. Jorge sentiu o sangue gelar ao ver de quem se tratava: "o gigante", pensou horrorizado. Sim, era o "colosso" que havia destruído o time do bairro de baixo como um elefante que esmaga amendoins. "Ele é mais alto que o professor", constatou Jorge, na certeza de que estava fadado a morrer depois de incontáveis sofrimentos. 
   O grandalhão tinha nome esquisito. Fenício. Claro que Jorge não dispunha de nenhuma base de história antiga para buscar alguma referência para aquele nome. 
   Fenício logo se acomodou perto dos outros valentões da turma. Olhou ferozmente para Danilo e Malaco. Ninguém nunca tinha visto aqueles dois intimidados - até aquele momento. Naquela troca de olhares ficou claro que um novo líder tinha surgido.
   Dia seguinte, Jorge se posicionou no último lugar da fila tentando imaginar uma forma de se tornar invisível. Malaco, Danilo e Fenício empurravam um garoto de um lado para o outro como bola de basquete. Jorge deu graças a Deus por não estar entre os alunos da frente.
   Depois de minutos que pareceram horas, a fila andou para a sala. Jorge achou que havia escapado milagrosamente de qualquer violência. Quando se julgava a salvo, esbarrou em Danilo na entrada da sala. "Te pego na saída", sentenciou com olhar divertido. Jorge engoliu em seco e foi até seu lugar, conformado.
  A primeira aula estava na metade quando um barulho de cadeira se arrastando e caindo sobre o chão da sala quebrou a tranquilidade. Jorge voltou-se na direção do barulho e viu Fenício com a mão no nariz, uma grande mancha vermelha na camisa. Os alunos mais próximos gritaram horrorizados. Fenício de pé, sangrando, parecia alcançar o teto da sala com a cabeça levantada. O sangue escorria por seus dedos e pingava sobre seus sapatos. 
   A professora também se levantou: "o que está acontecendo"?
   "Meu nariz tá sangrando, 'fessora' ". Foi a resposta óbvia de Fenício.
   "Deve ser o calor", pensou a mestra. "Jorginho"!
   O menino gelou. Olhou para a professora com as pulilas saltando das órbitas.
   "Ajuda o Fenício", mandou dona Sonia, num tom que não aceitava questionamentos.
   Mais pálido que o menino que sangrava, Jorge foi até Fenício e lhe estendeu a mão. Fenício a agarrou e, sem poder baixar a cabeça, foi guiado por Jorge até o banheiro. 
   Fenício lavou o rosto, mas o sangramento não parava.
   "Fica de cabeça levantada", falou Jorge com voz trêmula.
   Fenício olhou para ele… e obedeceu.
   Jorge então foi até os armários nos fundos do banheiro, procurou alguma coisa para ajudar. Encontrou uma velha toalha. Molhou-a na torneira e levou até Fenício.
   "Põe sobre a testa". Jorge já tinha ficado com o nariz sangrando tantas vezes em tantas surras aplicadas por Danilo ou Malaco que para ele aquelas técnicas não escondiam o menor segredo.
   Alguns minutos depois o sangramento parou. Jorge pegou um pouco de papel higiênico e estendeu a Fenício. Os dois voltaram para a sala de aula sem dizer uma palavra.
  Quando a aula acabou, Jorge engoliu em seco. Olhou para Danilo e notou a expressão do caçador que encurrala a presa. Seguiu para o pátio, sabendo que seu algoz estava logo atrás.
   Sentiu um golpe nas costas que o jogou no chão. Olhou para trás e viu Danilo se preparando para chutar de novo, ele caído. Encolheu-se na tentativa de aparar o novo golpe, mas… não foi atingido. Esperou alguns segundos, nada. Ouviu então a gritaria da molecada em volta, animada e divertida… Ergueu a cabeça. Não acreditou no que viu.
   Fenício erguia Danilo a uns dez centímetros do solo. O garoto esperneava, mas Fenício parecia ignorar qualquer esforço da sua vítima. Depois de algum tempo esperando Danilo parar de se debater, falou com voz firme: "cê num incósta um dedo no Jorge. Nunca mais. E isso vale procê tamém, ó Pixaim", concluiu olhando para Malaco.
   Jorge ficou surpreso com o que ouviu. 
   Fenício jogou Danilo longe, como um estivador que arremessa um saco de batatas sobre um pallet. Depois veio até Jorge, estendeu a mão e o ajudou a levantar. Sem dizer nada, pegou a mochila de material escolar e foi embora, deixando para trás Jorge, Danilo, Malaco e metade da escola de boca aberta. 
   Dia seguinte, Jorge notou algo diferente no pátio da escola. Todos olhavam para ele. Meio constrangido, foi até o último lugar da fila. Mas os colegas fizeram questão que ele fosse adiante. Danilo e Malaco sorriam amarelo, afastados e calados. 
   Quando entrou na sala, Jorge viu Fenício. O "gigante" olhou para ele com algo parecido com ternura - existe ternura entre os brutos? - e logo baixou os olhos para o caderno. Nada foi dito entre os dois. Mas foi como se daquele momento em diante um acordo estivesse fechado. 

(Inspirado livremente em fatos reais)

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