Serviços

      

A nossa cidade é uma extensão da nossa casa


Nessa era pós-internet as relações são tão impessoais que só merecem esse nome - relações - com uma grande dose de boa vontade. Estão mais para "cyber-relações", "net contacts" ou algum outro neologismo tecno ainda não inventado. Isso se aplica também às relações comerciais e aos serviços.

     Acho que cabe aqui avisar ao leitor que este é mais um texto saudosista, daqueles que invocam doces lembranças de um tempo que jamais voltará.

     Criava-se um laço de simpatia, e em alguns casos até de amizade, entre os prestadores de serviços e os clientes. Chamávamos aqueles que nos serviam pelo nome, perguntávamos da família, das novidades... 

     Da farmácia que frequentava, não me lembro o nome. Mas o farmacêutico, não há como esquecer. Zé João, que ouvia as queixas dos clientes com paciência que poucos médicos demonstrariam, aplicava as doloridas injeções, aviava receitas, indicava ele mesmo algum xarope ou pastilha pra garganta... e funcionava! A dor ia embora, a febre sumia, a indisposição acabava. Tudo marcado por um forte cheiro de assepsia e um perfil de cabelos impecavelmente penteados para trás, ombros levemente arqueados - provavelmente de tanto se abaixar para aferir pressões, ouvir batimentos ou enfiar agulhas em traseiros de crianças chorosas. A farmácia continua lá, 40 anos depois. Já o Zé João, não sei que fim levou. 

     Na padaria, ocorre o inverso: não me lembro dos nomes das pessoas que me atendiam, mas ficou gravado na memória o nome do lugar: padaria Santa Clara. Era visita obrigatória todas as manhãs, em busca do pão quentinho ou do perfumado café torrado e moído ali, na hora. Aos sábados após a missa (nosso costume era ir à missa no sábado à noite, para garantir mais tempo livre no domingo - perdão, Senhor, por este pequeno pecado da preguiça), aos sábados, eu dizia, era absolutamente indispensável ir até a padaria e comprar um grande pacote de sonhos cremosos antes de voltar pra casa. Não conheço outro doce que mereça tanto o nome. Realmente aqueles pequenos pãezinhos recheados com creme nos faziam sonhar. A padaria Santa Clara não existe mais, a não ser nas minhas lembranças. O imóvel agora está desocupado ou abriga tristemente algum novo negócio, sem histórias de delícias para contar. 

     Cortar o cabelo era tarefa a se realizar na pequena barbearia num imóvel estreito e comprido de sala única, com duas cadeiras grandes como poltronas, estofadas para maior conforto, com ajustes para apoio da cabeça e descanso de ferro para os pés, que exibia o nome do ferragista que construiu aquela geringonça.  Dois barbeiros, sócios inseparáveis, um magro de cabelos curtos e bigode perfeitamente aparado; outro cabeludo, com longas madeixas onduladas e negras, barba abundante e porte corpulento. Este último atendeu ao meu pai quase a vida inteira, herdou a mim e a meu irmão como fregueses. Lembro que meu pai se divertia comentando: "como alguém que vive de cortar o cabelo dos outros pode ser assim tão cabeludo? É uma autopropaganda negativa", ria-se. Na época nem se sonhava com a profissão de designer de barbas, hoje em alta. 

     São figuras que povoam nossas lembranças. Você também deve ter seus personagens preferidos, que fazem parte da sua infância. Na época em que conviveu com eles, essas relações eram algo banal, corriqueiro, trivial. Hoje são fragmentos especiais que ajudam a montar o todo em que você se transformou. 

    Tornaram-se uma parte importante da sua vida.  

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